OS ERROS DE OLAVO DE CARVALHO:
- Publicado em 06/04/2018
- Por Diogo Rafael Moreira
A ênfase do cristianismo cai evidentemente no eixo vertical, nas relações diretas entre a alma e Deus. A sociedade e a natureza perdiam, de um só golpe, seu papel de interlocutoras entre a alma e o divino. O homem singular, novo Adão, era elevado a senhor do mundo, em luta aberta com as divindades da natureza - os
dijmons de que fala a tradição islâmica - e os poderes sociais, que a Bíblia havia condenado numa sentença sumária: "Os deuses das nações são demônios."
É evidente, portanto, que a relação básica conta o cristianismo assume desde logo a forma de uma luta pela restauração da natureza e da sociedade em seu estrato anterior - de uma luta, portanto, contra o indivíduo humano, contra a alma, contra a consciência autônoma. Seria errôneo, porém, identificar diretamente essa luta como uma luta contra a Igreja, contra o Papado, contra a Instituição Romana. Ao contrário, a própria consolidação da autoridade romana se fez, em grande parte, romanizando o cristianismo, ressacralizando a sociedade: a Igreja conquista o mundo, mas deixando-se em parte conquistar por ele. O conflito entre o expansionismo catequético e conservação da fé inicial acompanha toda a História da Igreja - em contraponto com a perene ambiguidade das relações entre Fé e Império, autoridade espiritual e poder temporal, que Dante simbolizou na luta entre a águia e a cruz.
O cristianismo, de fato, não quis destruir o Império, mas não podia submeter-se a ele; nem quis restaurá-lo, mas não podia subsistir e expandir-se senão sob a proteção dele. René Guénon, que sempre deve ser ouvido nessas matérias, explica o fenômeno dizendo que o cristianismo não tinha, originalmente, o espírito de uma lei religiosa, no sentido judaico ou islâmico de uma regra para a ordenação do mundo, mas de um esoterismo, de um caminho puramente interior: "Meu reino não é deste mundo." A exoterização do cristianismo, sua transformação numa lei religiosa para o conjunto da sociedade, teria sido causadas por circunstâncias externas: a decadência da religião romana e do judaísmo deixavam o mundo greco-romano sem qualquer lei religiosa - e o cristianismo, mesmo a contragosto, mesmo ao preço de trair em parte sua vocação interiorizante, teve de preencher providencialmente uma lacuna que ameaçavam alargar-se num abismo e engolfar a civilização. O cristianismo salva o mundo antigo, absorvendo-o num novo quadro, mas, para isso, tem de se deixar absorver nele e transformar-se, mediante adaptações bastante deformantes, numa nova Lei exterior, na religião do Império.
Não precisamos endossar por completo a tese de Guénon para admitir o fato patente de que o cristianismo, malgrado sua imensa força de renovação espiritual, não estava muito bem dotado para reorganizar a sociedade civil e política. No Evangelho não se encontra uma indicação, uma linha, uma palavra sequer a respeito da organização política e econômica da moral exterior, do direito civil e penal, como se encontram com abundância na
Torah, no Corão ou nas Escrituras hindus. O cristianismo era essencialmente uma "via de salvação"
(p. 196s)