INTRODUÇÃO
É muito provável que você já tenha ouvido falar na profecia dos três dias de trevas. Segundo ela, depois de guerras e revoluções na sociedade, com o triunfo humanamente irreversível do mal, Deus mandará do Céu um grande castigo sobre os homens, que consistirá em cobrir a terra inteira, por três das, das mais espessas trevas.
Neste tempo, diz a profecia, os demônios, assumindo as formas mais horrendas, virão à terra e matarão todos os que acharem pelo caminho, principalmente os ímpios. As pessoas devem ficar em suas casas, com as cortinas fechadas, para que não venham a morrer com a terrível visão dos seres infernais, e a única luz que se poderá utilizar naqueles dias é a que sai das velas bentas. Em consequência desse castigo, os ímpios serão destruídos, os poucos que sobrarem, logo se converterão e a Igreja, purificada e renovada, gozará de grande prestígio entre as nações da terra. Inglaterra, Rússia e China se converterão à fé católica e, em alguns relatos, São Pedro e São Paulo, em pessoa, aparecerão para converter os homens e anunciar a eleição de um novo Papa, que reinará gloriosamente sobre uma multidão de fiéis, que edificarão o mundo com o seu exemplo.
Essa é, em linhas gerais, a profecia dos três dias de trevas, largamente difundida na internet, ora com mais, ora com menos detalhes, e objeto da apreensão e expectativa de muitos. Ao mesmo tempo, a mesma profecia é matéria de não pouca controvérsia e paira, ela mesma, em grande obscuridade.
Por um lado, não é clara a sua origem e relação com as grandes profecias sobre o fim dos tempos, contidas na Sagrada Escritura e nos Santos Padres. Por outro, pelo menos em alguns casos, é inegável que ela tenha sido divulgada por servos de Deus ou, no mínimo, por pessoas dignas de fé, que os conheceram de perto. Desta forma, cumpre examinar a questão mais detidamente do que, até o momento, têm sido feito, lançando luz sobre a verdadeira natureza dessa profecia, de modo que, ao final deste estudo, saibamos de onde ela veio e o que devemos pensar sobre ela.
I. INVESTIGAÇÃO TEOLÓGICA: UMA REVELAÇÃO PRIVADA
Primeiramente, é um ponto pacífico entre os estudiosos que a profecia dos três dias de trevas encerra-se no gênero das revelações privadas ou particulares, isto é, no número daquelas revelações que Deus faz a pessoas religiosas, geralmente em momentos de oração. Esses fenômenos se distinguem claramente da revelação pública e universal, que se encontra na Bíblia e na Tradição Apostólica e que nos é transmitida pela Igreja como tal. Ao tratar das revelações privadas, o Papa Bento XIV ensina o seguinte, em sua conhecida obra sobre as canonizações:
Não é obrigatório, nem mesmo possível, dar-lhes o assentimento da fé católica, mas apenas da fé humana, em conformidade com os ditames da prudência, que as apresenta como prováveis e dignas de crença piedosa. Cf. De Canon., III, liii, xxii, II apud Catholic Encyclopedia, v. Revelation.
Muito embora seja óbvio que dita profecia não esteja explicitamente na Bíblia e não seja uma doutrina obrigatória, muitos desejam ver, em certas passagens da Escritura, uma clara alusão aos três dias de trevas.
No entanto, a única menção de três dias de trevas na Sagrada Escritura encontra-se no livro do Êxodo, capítulo 10. Trata-se da nona praga que Deus manda sobre os egípcios, em razão de sua dureza de coração ao não permitirem a saída dos hebreus de sua terra. Assim lemos no relato bíblico:
Êxodo, capítulo 10:
21 Disse pois o Senhor a Moisés: Estende a tua mão para o céu, e formem-se na terra do Egito umas trevas tão espessas que se possam apalpar. 22 Estendeu Moisés a sua mão para o céu: e umas horríveis trevas cobriram toda a terra do Egito por três dias. 23 Ninguém viu a seu irmão, nem se moveu do lugar, onde estava: mas em toda a parte, onde habitavam os filhos de Israel, era dia claro.
Esse castigo conserva suas semelhanças com a profecia mencionada, tanto pela duração, quanto pelo fato dos justos serem poupados dele, havendo claridade na casa dos hebreus, como haverá na casa dos bons católicos, que consigo terão velas bentas. Contudo, não se deve perder de vista a diferença: de um lado temos a narração de um acontecimento passado e limitado a um país específico, do outro temos a previsão de um acontecimento futuro e universal.
Além disso, é certo que os profetas do Antigo Testamento falaram também de um tempo de trevas como um sinal característico do castigo divino, ora contra os judeus infiéis, ora contra os inimigos de Israel.
O profeta Isaías, por exemplo, fala das trevas que cairão sobre o povo, indicando assim a terrível vingança de Deus contra os israelitas infiéis (cf. Is 5, 30; 21, 22). Neste caso, porém, julgando pelo contexto, “trevas” significa uma figura para designar a grandeza do castigo e tribulação pela qual passará o povo de Israel nas mãos de seus inimigos.
Já o profeta Joel fala em trevas físicas, no contexto do que normalmente se entende como o que vem imediatamente antes do Juízo Final:
E darei a ver prodígios no céu, e na terra, prodígios de sangue, e de fogo, e de vapor de fumo. 31 O sol converter-se-á em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande, e terrível dia do Senhor. Joel 2, 30-31 da Vulgata; 3, 3-4 do texto hebreu.
Mas esse estado do mundo em trevas aparece, mais claramente, no Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e no Apocalipse de São João, onde surge como um sinal inequívoco do fim do mundo.
Por exemplo, no Evangelho segundo São Mateus, c. 24 lemos:
29 E logo depois da aflição daqueles dias, escurecer-se-á o sol, e a lua não dará a sua claridade, e as estrelas cairão do Céu, e as virtudes dos Céus se comoverão: 30 E então aparecerá o sinal do Filho do homem no Céu: E então todos os povos da terra chorarão: E verão ao Filho do homem, que virá sobre as nuvens do Céu com grande poder, e majestade. 31 E enviará os seus anjos com trombetas, e com grande voz: E ajuntarão os seus escolhidos desde os quatro ventos, do mais remontado dos Céus até às extremidades deles.
No Apocalipse, c. 6 lemos:
12 E olhei quando ele abriu o sexto selo: E eis que sobreveio um grande terremoto e se tornou o Sol negro, como um saco de cilício: E a Lua se tornou toda como sangue: 13 E as estrelas caíram do Céu sobre a terra, como quando a figueira, sendo agitada dum grande vento, deixa cair os seus figos verdes: 14 E o Céu se recolheu como um livro, que se enrola: E todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares: 15 E os reis da terra, e os príncipes, e os tribunos, e os ricos e os poderosos, e todo o servo e livre se esconderam nas cavernas e entre os penhascos dos montes. 16 E disseram aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós e escondei-nos de diante da face do que está assentado no Trono e da ira do Cordeiro: 17 Porque chegou o grande dia da ira deles: E quem poderá subsistir?
Nessas passagens proféticas do Novo Testamento, fala-se de um tempo de escuridão que antecede imediatamente à segunda vinda de Cristo e ao Juízo Final (cf. Mt 24,29; Mc 13, 24; Lc 21, 25). Isso é verdade inclusive no caso do Apocalipse, que segue a mesma descrição feita por Cristo nos Evangelhos, o sexto selo referido sendo as calamidades cósmicas, posteriores às sociais, e o sétimo as trombetas tocadas pelos Anjos (cf. Mateus 24, 31, citado acima).
Se for para relacioná-la com essas passagens, seria necessário supor que a profecia dos três dias de trevas acontecerá depois da apostasia e do reinado do Anticristo e até mesmo depois de um primeiro triunfo da Igreja, decorrente da vitória sobre o Anticristo e da conversão dos judeus. Com efeito, segundo os Padres e teólogos, só depois dessas coisas ocorrerão os fatos escatológicos que levarão ao fim do mundo, inclusive o obscurecimento do sol e da lua (veja-se isso nos comentários à Segunda Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses, ou nas obras dos teólogos sobre o Anticristo e o fim do mundo, referidas na obra O Papa e o Anticristo de Cardeal Manning e no livro El Fin del Mundo y los Misterios de la Vida Futura de Padre Charles Arminjon, primeira e segunda conferência.
Porém, o que normalmente se procura fazer é puxá-lo para antes desses acontecimentos e até confundi-lo com eles, como se a conversão dos judeus e o triunfo da Igreja decorresse da exterminação dos ímpios nos três dias de trevas e não da grande perseguição dos mártires nos tempos do Anticristo. É o que parece indicar um livro um tanto lisonjeiro ao Estado de Israel publicado por um biblista chamado Benjamin Martin Sánchez e divulgado pelo site Tradition in Action (cf. Ana Maria Taigi: um grande castigo e os Três Dias de Trevas).
Então, chegamos aqui há duas alternativas: ou os três dias de trevas sucedem depois da apostasia e do Anticristo, e – neste caso – não ocorrerá de forma iminente. Ou os três dias de trevas se passarão antes da apostasia e do Anticristo, o que parece se harmonizar melhor com os relatos dos místicos, mas que tem a desvantagem de não ter fundamento bíblico ou patrístico. Além disso, neste caso, criam-se dois triunfos da Igreja, um depois dos três dias de trevas e outro depois do Anticristo, do que não se há nenhuma pista na Escritura ou na Tradição da Igreja.
Mas, cientes de que a primeira alternativa não é muito bem uma opção, pois a profecia dos três dias de trevas apresenta-se como algo iminente e anterior aos eventos escatológicos mencionados, devemos procurar a sua origem inteiramente no âmbito das revelações privadas, feitas aos místicos em tempo posterior à promulgação do Evangelho pelos Apóstolos de Cristo.
INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA: UMA PROFECIA MODERNA
Não é fácil determinar sua origem no tempo e no espaço, mas é relativamente simples estabelecer quando e em que contexto essa profecia assumiu proporções verdadeiramente grandes. De fato, é no começo do século XIX, em tempos de convulsão social e política por toda a Europa, mas principalmente na Itália, invadida pelas tropas de Napoleão, que a profecia de um grande castigo do céu, por vezes atribuída também a Santa Hildegarda de Bingen e ao venerável Bartolomeu Holzhauser, começa a circular em Roma, centro do cristianismo, passando depois para Paris, centro da cultura católica, e daí irradiando-se para os quatro cantos do orbe.
É assim que um dos grandes divulgadores dessa profecia, Monsenhor Raffaele Natali, descreve o surgimento e o conteúdo essencial dessa mensagem:
Quase todas as almas heroicas que resplandeceram em Roma na primeira metade do século XIX, desde o Venerável Pallotti, até o Beato Del Bufalo, desde o Venerável Clausi até a Venerável Canori-Mora, profetizaram que depois da tempestade que no seu tempo se formava sobre a Igreja, depois das perseguições, que afligiam então ao Papado, teria chegado o triunfo do Catolicismo, triunfo luminoso, solene e completo.
Desde os tempos de S.S. o Papa Pio VII, quer dizer no ano 1818, a Serva de Deus [Anna Maria Taigi] descreveu para mim a revolução de Roma e tudo o que aconteceu, e a seguir falou-me muitas vezes, aliás, de um modo muito mais espantoso, dizendo que tinha sido mitigada pelas orações de muitas almas caras a Deus, que se ofereceram a Ele em satisfação da Justiça Divina… Ela me disse que o flagelo da terra tinha sido mitigado, mas não o do céu que era horrível, espantoso e universal.
Manuscritos originais do Mons. Natali conservados sob a classificação MS. 337ª no Arquivo de San Carlo alle Quattro Fontane dos padres trinitários de Roma, Vol. VII, pág. 468 apud Príncipe dos Cruzados, Vol. I, parte I, 3a edição, Cap. V.
O dito castigo do céu também é mencionado, com mais detalhes, em uma biografia autorizada da Beata Taigi, publicada em francês, na segunda metade do século XIX, pelo Padre Calisto da Providência, e que para tanto também se serve do testemunho do Padre Raffaele Natali:
Anna Maria falava frequentemente com o padre, seu confidente, sobre a perseguição que a Igreja atravessaria e sobre o período infeliz, onde se veria cair a máscara de muita gente que se cria digna de estima... Por vários dias consecutivos, ela viu uma escuridão excessivamente espessa se espalhando por todo o mundo, depois caindo ruínas de paredes e vigas, como se um grande edifício tivesse desabado. Esse flagelo havia se manifestado a ela várias vezes no sol misterioso. Aprouve a Deus revelar-lhe também que a Igreja, depois de ter passado por várias provações dolorosas, obteria um triunfo tão brilhante que os homens ficariam maravilhados; que nações inteiras retornariam à unidade da Igreja Romana e que a face da terra mudaria.
R. P. Calixte, de la Providence. La Vénérable Anna-Maria Taigi… 3.ª ed. (Paris, 1872), pp 238-239.
Na nota, onde mais uma vez aparece o testemunho de Monsenhor Natali, o biógrafo trinitário comenta:
É de se presumir que se trate aqui de trevas físicas. Mas a Venerável não fixou nem a duração, nem a natureza desta escuridão, nem a hora em que chegará. Mons. Natali, questionado a esse respeito por um grande número de pessoas, deu a todos a garantia de que as trevas durarão por três dias. Além disso, Anna Maria não estava só em prever esse evento. Elisabete Canori-Mora, cuja vida abreviada damos abaixo, também fala de uma época em que reinará espessas trevas. Outra pessoa, favorecida com dons sobrenaturais, a senhora Palma Maria Mattarelli, nascida em Oria, e agora na casa dos quarenta anos, conveio com Anna Maria no anúncio das trevas. Ela fala da infecção do ar por demônios e das velas bentas como meio de preservação. O jornal Univers (14 de março de 1869) fala, em sua correspondência de Roma, desta nova extática e sua grande influência sobre o povo. Ela frequentemente aparecia em Nápoles, às vezes em Roma, e carregava os estigmas. Ela suporta, especialmente nas sextas-feiras, o suor de sangue e todos os sofrimentos da agonia do Salvador. A autoridade civil fez uma investigação severa sobre o assunto e, em 8 de dezembro de 1869, precisamente uma sexta-feira, médicos e magistrados, certamente não muito crédulos em milagres, testemunharam as várias impressões dolorosas da extática de Oria. Pode-se ver no Messagiere dei Sagro Cuore de Florença (março de 1871) o atestado de um honrado eclesiástico que também o testemunhou.
[Nota de Diogo Rafael Moreira ao sobredito: Essa senhora, Palma Maria Matarelli d’Oria é provavelmente a verdadeira autora da versão posteriormente atribuída à Beata Taigi, que – diferentemente do relato original que acabamos de ler, nesta sua biografia – acrescenta também a infecção do ar por demônios e a necessidade de valas bentas. Pois bem, esta senhora foi discretamente condenada pelo Santo Ofício, que considerou-a uma pessoa suspeita, de santidade afetada, sem oferecer indícios certos de possuir dons sobrenaturais. Mais sobre essa história pode ser encontrado nos seguintes artigos: The stigmatized Italian visionary and the devout French physician: Palma Mattarelli d’Oria and docteur Imbert Gourbeyre e Catholicisme intransigeant et culture prophétique : l'apport des archives du Saint-Office et de l'Index.]
O autor de outra Vida de Anna Maria - continua o autor da biografia - parece surpreso por contarmos aos nossos leitores sobre as trevas e outros eventos extraordinários, relatados a seguir, e cujo anúncio é atribuído a Anna Maria. Poderíamos nos contentar em responder que nossa segunda edição, que já as citava, foi cuidadosamente examinada em Roma e considerada conforme em todos os aspectos aos processos apostólicos, mais completa e mais exata do que qualquer outra das Vidas da Venerável dadas até hoje ao público. (Vide Aprovações).
Compreendemos que essas previsões podem assustar, talvez desnecessariamente, a algumas almas moles e sensuais, mas também sabemos, por outro lado, que fazem outras pessoas refletirem sobre suas desordens, se recolherem e orarem. Ora, é absolutamente necessário que aí cheguemos para deter o braço de Deus, pronto para nos golpear novamente. A França perece porque está enervada. Ela está irritada, porque há muito tempo lhe foi dado um caminho suave na educação da juventude e na direção das consciências. Recebemos esta observação de um erudito padre jesuíta alemão.
Ibidem, nota.
As vidas da então Venerável e depois Beata Anna Maria Taigi, principalmente as publicadas em francês, alcançaram grande sucesso e popularizaram a profecia dos três dias de trevas. Como se viu, o seu confidente, Monsenhor Natali, e um de seus melhores biógrafos, Padre Calisto da Providência, convém em atribuir-lhe essa profecia, se bem que não o fazem da maneira como ela aparecerá posteriormente, em obras como The Prophets and Our Time de Padre Gerald Culleton e Catholic Prophecy de Padre Yves Dupont. Nelas o que encontramos é uma versão muito mais detalhada e que parece reunir o que autores mais antigos atribuíam a outras místicas do mesmo período:
Deus ordenará dois castigos: um, na forma de guerras, revoluções e outros males, terá origem na terra; o outro, será enviado do Céu. Virá sobre toda a terra uma escuridão intensa que durará por três dias e três noites. Nada será visível e o ar estará carregado de pestilência, que reivindicará principalmente, mas não exclusivamente, os inimigos da religião. Durante essa escuridão, a luz artificial será impossível. Apenas velas bentas poderão ser acesas e fornecerão iluminação. Aquele que por curiosidade abrir a janela para olhar para fora ou sair de casa, cairá morto na hora. Durante esses três dias as pessoas devem permanecer em suas casas, rezar o Rosário e implorar a misericórdia a Deus.
Cf. Padre Gerald Culleton, The Prophets and Our Time, ed. de 1974 pela TAN Books, pp. 193-194 e Padre Yves Dupont, Catholic Prophecy, ed. de 1973, da mesma editora, pp. 44-45.
Ora, esses autores foram corretamente criticados como mal documentados em uma matéria de edição italiana do site Aleteia, na qual se afirma categoricamente que a profecia dos três dias de trevas é falsa (cf. “Arriveranno tre giorni di buio sulla Terra”. Ecco perché la profezia non è vera.
Ao mesmo tempo, não é menos falsa a alegação do site, ao dizer que, no processo canônico dos santos e beatos a quem se atribuem essa profecia, negou-se que eles a tenham proferido. Ao menos no caso de Anna Maria Taigi, que pude examinar mais a fundo, isso é totalmente falso. Com se viu, uma testemunha íntima da mística e um biógrafo autorizado, que parte das atas de seu processo canônico, afirmam categoricamente que ela havia profetizado os três dias de trevas. Depois de sua beatificação, o Cardeal Carlo Salotti, que tomou parte diretamente no processo, e Padre Bessieres S.J. compuseram biografias críticas e muito bem documentadas que, embora nelas tenham sido muito mais comedidos e seletivos na narração das profecias relatadas, jamais negam sua autenticidade. Portanto, fique claro: o que é falso não é a profecia em si, mas o modo sensacionalista e inescrupuloso com o qual se tem distorcido e exagerado o seu conteúdo.
Aliás, também são corretamente criticados os que atribuem a Padre Pio a profecia dos três dias de trevas, coisa negada por ele mesmo e seus superiores, com consta na Revista Voce di Padre Pio e na obra The Reign of Antichrist de Padre Culleton, à página 224: A longa profecia atribuída ao Padre Pio é omitida, porque é repudiada pelo Padre Pio e seus superiores. Informação esta que colhemos de um artigo do site O Catequista.
III. O QUE PENSAR DESSAS PROFECIAS
As versões da profecia dos três dias de trevas atribuídas a Anna Maria Taigi e ao Padre Pio são de longe as mais conhecidas, uma – como vimos - parece ser a primeira de todas as profecias modernas sobre a matéria, enquanto a outra é sua versão mais célebre, por alegadamente provir de Padre Pio. O que se disser sobre elas servirá como de modelo, o qual facilmente poderá ser aplicado às outras versões da mesma profecia, que pouco diferem de ambas.
A versão de Padre Pio provou-se inteiramente falsa, pois nem sequer é dele. Resta estabelecer o nosso juízo sobre a profecia da Beata Taigi, que é a que está mais bem fundamentada. Então, uma vez que é humanamente certo que ela teria dito algo sobre os três dias de trevas, até que ponto seria prudente dar-lhe credibilidade? Essa é a grande questão que se deve resolver.
Em primeiro lugar, temos o relato do Papa Pio IX a esse respeito, que inclusive – como lemos nas biografias da beata – é um dos objetos de suas visões. O Papa, em discurso do dia 16 de julho de 1871, dirá o seguinte:
Havia um bom e velho sacerdote, Mons. Raffaele Natali, grande zelador e promotor da Causa da Venerável Anna Maria Taigi (a quem seu Presidente Príncipe Chigi muito conheceu e muito ajudou), contou-nos coisas maravilhosas sobre aquela serva do Senhor, entre outras várias previsões sobre os tempos que correm. Não confiamos muito nas profecias que são ditas [Noi non ci fondiamo troppo sulle profezie che si dicono]; porém estão entregues nos Processos e a Santa Sé os julgará. Nós não as lemos; mas aquele bom padre repetiu várias vezes que a Venerável, prevendo os acontecimentos que vemos, disse que chegaria um tempo em que a Santa Sé seria obrigada a viver das esmolas do mundo inteiro, mas que o dinheiro nunca faltaria... De fato, seria difícil não reconhecer a exatidão dessa previsão.
Pio IX, Discorso LXXXIX, pp. 253-254 in Don Pasquale de Franciscis (org.). Discorsi del Summo Pontifice Pio IX. Vol. 1 (Roma, 1882).
No juízo do Santo Padre nota-se um certo equilíbrio, de um lado não acredita imediatamente no que se circula, mas ao mesmo tempo não nega a possibilidade das coisas se verificarem. Essa atitude é realmente a mais prudente, porque em se tratando de revelações privadas não temos nenhuma garantia de que o vidente ou o confidente não possa ter se equivocado em alguma coisa.
Mais tarde, em seu discurso de 9 de abril de 1872, ele dirá coisa semelhante sobre uma profecia a respeito da França. Enfim, em discurso do dia 6 de julho de 1872, com certa melancolia, falará o seguinte:
Há muitas profecias que circulam, mas só uma é verdadeira: É a resignação à vontade de Deus; é esperar o seu socorro, e no esperar que ele venha, fazer todo o bem que for possível para agradar a Deus e procurar a glória de sua Igreja.
Pio IX, Discorso CC, p. 563 in op. cit. A tradução acima baseou-se na versão francesa, fiel em substância ao original italiano, encontrada na obra Les Prophéties Modernes Vengées de Padre Chabauty, à página 30.
Aliás, nesse caso em particular da Beata Taigi, há razão adicional para pensar-se assim. Com efeito, das profecias da vidente, com relação ao Papa Pio IX, mais de uma coisa não se cumpriu.
Na obra que acabo de mencionar, publicada pelo Cônego Chabauty em 1874, ainda quando vivia Pio IX, o autor admite que:
Segundo Anna Maria Taïgi, Pio IX reinaria por 27 anos e aproximadamente 6 meses. Ora, passaram-se os 27 anos e 6 meses, e em mais dois meses Pio IX completará 28 anos de reinado. Que ele veja todos os anos do pontificado total de São Pedro! Não temos que justificar Anna Maria, ela pode ter se enganado, ou melhor, como não temos o texto autêntico de suas previsões, seus confessores, os únicos que relataram algo delas, ou então aqueles que ouviram suas histórias, podem ter se enganado ao repeti-las inexatamente. Les Prophéties Modernes Vengées, p. 50.
Um erro mais grave dos repetidores é apresentado na biografia da beata escrita pelo Padre Albert Bessières S.J.: Ao justificar-se do porquê nem sempre é possível confiar cegamente no que diz Padre Calisto da Providência e Monsenhor Natali, ele diz o seguinte:
Na página seguinte (407) há uma nota em que Padre Calisto cita, extraídas de Monsenhor Barbier de Montault, outras palavras de Monsenhor Natali pronunciadas em 1869 (32 anos após a morte de Anna, na mesma véspera do confisco dos Estados [Papais]): ‘A Itália devolverá ao Papa o que lhe tirou e se submeterá a ele. Pio IX verá o triunfo da Igreja. O Papa está unido em intenção a Ana Maria, que vela por ele. Pio IX será santo. As profecias de Ana Maria se estendem até o Anticristo, cujos tempos se aproximam... Haverá ainda muitos papas, mas não viverão muito.’ Eles não viverão muito! Aí estão Pio IX, Leão XIII, Pio X, Pio XII! Sei muito bem que as profecias atribuídas a São Vicente Ferrer sobre a chegada iminente do Anticristo não impediram seus milagres, nem sua santidade. Mas a memória de Ana Maria não teria perdido nada, creio eu, com um pouco mais de discrição por parte de seus historiadores e de seus confidentes. A Beata é rica o suficiente para nos contentarmos com suas verdadeiras riquezas. Já em 1869, o Padre Calisto acredita poder tirar esta conclusão das palavras de Ana: A hora da libertação completa e do triunfo completo do Papado não pode demorar a soar. Sessenta e sete anos se passaram. Não forneçamos livremente armas às ‘almas moles e sensuais’ que pretendemos converter. Lembremo-nos, por outro lado, que a Igreja não toma por sua conta todas as profecias e visões dos santos, nem mesmo aquelas que se supõem serem autênticas.
Edição digital da versão espanhola (Buenos Aires, 1942), à pág. 73.
Enfim, por conta desses e outros problemas, a divulgação das visões de Anna Maria Taigi por parte de Dom Bosco foi uma das objeções que o procurador da fé, mais conhecido como advogado do diabo, levantou contra sua beatificação.
Naqueles anos, Mons. Verde teve que lidar com personagens quase contemporâneos a Dom Bosco, como Anna Maria Taigi (1769-1839) e Bernardo Clausi (1789-1849), para os quais o próprio Dom Bosco chamou a atenção ao publicar algumas profecias sobre a Igreja na revista ‘Galantuomo’.
No que diz respeito a Taigi, Mons. Verde havia apontado nas «Animadversiones» do processo apostólico a falta de confiabilidade das profecias que prenunciavam «triunfos» durante o pontificado de Pio IX; além disso, ele havia lamentado a falta de credibilidade da maioria dos textos colhidos no restrito círculo de devotos e admiradores: todos eles afirmavam enfaticamente virtudes superlativas na serva de Deus, em contraste com o que algumas testemunhas mais independentes revelavam sobre Taigi [...].
Pietro Stella, Don Bosco nella storia della religiositá cattolica, vol. III: La Canonizzazione )1888-1934), p. 131.
Essas acusações do advogado do diabo foram posteriormente resolvidas, em favor da beata, pelo Padre Carlo Salotti, que mais tarde se tornaria Cardeal e Prefeito da Congregação dos Ritos. O mesmo escreveria na década de 1920 uma biografia intitulada La Beata Anna Maria Taigi secondo la storia e la critica (Libreria Editrice Religiosa, Roma, 1922), que o Padre Bessières qualificaria como o trabalho mais bem documentado depois de sua beatificação.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, vê-se que é justo olhar para esta profecia dos três dias de trevas, que não está ancorada no depósito da fé e nem pode nos conceder garantia infalível de sua realização, a mesma cautela que teve o Papa Pio IX. Não crer muito nela, para não se inquietar e iludir inutilmente, e evitar a estranha passividade dos que acham que, nestes tempos de martírio, basta ficar em casa às sete chaves, com suas velas bentas, e deixar que Deus faça o resto. Não, devemos imitar antes a resignação à vontade de Deus de um mártir, como o foi, a seu modo, em martírio branco, o Papa Pio IX, prisioneiro no Vaticano, que buscou usar o tempo que lhe restava para fazer todo o bem que lhe fosse possível, a fim de agradar a Deus e procurar a glória da Santa Igreja.
REFERÊNCIAS
ALETEIA. “Arriveranno tre giorni di buio sulla Terra”. Ecco perché la profezia non è vera, publicado em 29/09/2017.
ARMINJON, R. P. Charles. El Fin del Mundo y los Misterios de la Vida Futura.
BESSIÈRES, Albert. La Beata Ana María Taigi: Madre di Familia. Buenos Aires, 1942.
CHABAUTY, Cônego E. A. Les Prophéties Modernes Vengées. Paris, 1874.
CULLETON, Padre Gerald. The Prophets and Our Time. TAN Books, 1974.
____. The Reign of Antichrist. TAN Books, 1974.
DE LA PROVIDENCE, R. P. Calixte. La Vénérable Anna-Maria Taigi… 3.ª ed. Paris, 1872.
DUPONT, Padre Yves. Catholic Prophecy. TAN Books, 1973.
DE FRANCISCIS, Don Pasquale (org.). Discorsi del Summo Pontifice Pio IX. Vol. 1. Roma, 1882. Disponível em:
FIGUEIREDO. R. P. Antônio Pereia de (trad.). Bíblia Sagrada.
KLANICZAY, Gábor. The stigmatized Italian visionary and the devout French physician: Palma Mattarelli d’Oria and docteur Imbert Gourbeyre. Publicado em 25/03/2019.
MANNING, Cardeal Henry Edward. O Papa e o Anricristo: A Crise Atual da Santa Sé à luz da profecia. Controvérsia Católica, 2021.
MULTON, Hilaire. Catholicisme intransigeant et culture prophétique : l'apport des archives du Saint-Office et de l'Index. Publicado em Revue Historique, 2002/1.
O CATEQUISTA. Três dias de Trevas: o que há de certo, de falso e de duvidoso sobre essa profecia, publicado em 04/02/2021.
O PRÍNCIPE DOS CRUZADOS. Beata Taigi profetiza o triunfo da Igreja no Reino de Maria depois da crise: “será desmascarada uma multidão tida como digna de estima”, sine data.
SALOTTI, Carlo. La Beata Anna Maria Taigi secondo la storia e la critica. Roma: Libreria Editrice Religiosa, 1922.
STELLA, Pietro. Don Bosco nella storia della religiositá cattolica, vol. III: La Canonizzazione) 1888-1934).
TRADITION IN ACTION, Ana Maria Taigi: um grande castigo e os Três Dias de Trevas, publicado em 29/01/2021.