São Tomás de Aquino era terraplanista? Essa é a primeira questão que eu gostaria de responder em uma série de estudos históricos e teológicos sobre o terraplanismo e, de uma forma geral, sobre a relação entre ciência e religião, segundo os princípios da sã doutrina católica.
A necessidade de tratar-se deste tema é a seguinte.
Primeiramente, ao longo dos anos, fiz muitos amigos queridos, bons católicos e dignos da máxima estima, que – mediante seus estudos e investigações sobre o formato da terra – chegaram à conclusão de que a terra é plana, e não raro me exortam a examinar a questão por mim mesmo e dar o meu parecer a esse respeito. Essa seria, pois, a causa remota destes estudos que ora publico, os quais - desde já gostaria de salientar -, não pretendem se inserir no âmbito da física e da geografia, pois não sou perito nestas matérias, mas se confinarão aos limites de um exame histórico e teológico da questão, trazendo sempre a posição dos autores eclesiásticos e do Magistério da Igreja sobre essa matéria. É o melhor que eu tenho a vos oferecer.
Em segundo lugar, mais recentemente, o Frei Tiago de São José produziu uma série de vídeos, onde propôs argumentos de caráter teológico e histórico, em favor desta mesma teoria, sendo esta apresentada como a posição mais tradicional e defendida pela Igreja, ao ponto de invocar em seu favor, inclusive, o testemunho de ninguém menos que São Tomás de Aquino. Esse fato, que posso chamar de causa próxima de nossa série, moveu-me a investigar a questão mais a fundo, pois não é de pouca importância esta descoberta, se ela for uma verdadeira descoberta.
A princípio, causou-me admiração essa possibilidade de haver algum terraplanismo em São Tomás, porque essa visão entrava em conflito com o que eu até então tinha aprendido sobre o seu pensamento. Sem jamais ter me aprofundado nos escritos da filosofia natural do Santo Doutor, que hoje são de um interesse bastante secundário e relegado aos especialistas, em face da contribuição maior e mais significativa deste no campo da metafísica, da moral e da teologia, nunca me pareceu verossímil que São Tomás pudesse ser terraplanista.
Isso por uma dedução muito simples: sendo São Tomás um aristotélico em matérias de filosofia, era de se esperar que ele partilhasse das opiniões de Aristóteles a esse respeito, do contrário saberíamos. Digo saberíamos, porque ninguém que tenha estudado o tomismo ignora que São Tomás diverge de Aristóteles sobre, por exemplo, a origem do universo. Aristóteles crê que ele é eterno, São Tomás defende que é criado, estando neste ponto mais alinhado com Platão, embora – é verdade - não deixe ele de tratar da hipótese do mundo ser eterno em um de seus opúsculos. Quanto ao resto da cosmologia, porém, até onde sei, não há traço de nenhuma grande divergência entre São Tomás e Aristóteles. Pois bem, este mesmo Aristóteles é um dos principais proponentes do geocentrismo, depois aperfeiçoado por Ptolomeu, segundo o qual a terra é uma esfera que se encontra imóvel no centro do universo. Como, até segunda ordem, nada indica que São Tomás tenha divergido do Mestre nesta matéria, parecia-me justo pensar que ele acreditava na esfericidade da terra.
Aliás, apesar das obras físicas de Aristóteles serem uma grande novidade naquele tempo, pois o que se conhecia até então era principalmente os escritos lógicos de Aristóteles, que chegaram ao medievo por meio de Boécio, ainda assim não seria surpresa alguma seguir o modelo esférico, pois Platão e o platonismo, que sempre foi muito popular e bem conhecido, já apresentava a terra como uma esfera, como se pode ler no Fédon (108e-109a, 110b) e Timeu (62c-d), ambos diálogos de Platão bem-conhecidos por São Tomás e pelos autores medievais em geral. Portanto, minha segunda dedução era, há dois grandes sistemas de filosofia natural mais ou menos assimilados pelos autores eclesiásticos, a saber, o platonismo e o aristotelismo. Ora, ambos apresentam a terra como uma esfera. Logo, qualquer exposição filosófica da questão, seguirá por essas linhas. Caso contrário, a diferença será conhecida por tratar-se de coisa notável demais para ser ignorada.
Uma terceira e última dedução que me inclinava ao mesmo entendimento da coisa vinha do fato de São Tomás dizer, no primeiro artigo da primeira questão da Suma Teológica, ou seja, logo no inicio, que a terra era redonda e que isso se podia demonstrar de pontos de vista diferentes, quais sejam o do astrônomo e do físico, assim ele dizia: O astrônomo e o físico demonstram a mesma conclusão, digamos, que a terra é redonda, mas o astrônomo por meio da matemática, abstraída a matéria; o físico, porém, por meio da consideração da própria matéria. Eandem enim conclusionem demonstrat astrologus et naturalis, puta quod terra est rotunda, sed astrologus per medium mathematicum, idest a materia abstractum; naturalis autem per medium circa materiam consideratum.
Contudo, os nossos amigos terraplanistas dizem, sobre este e outros lugares, que o fato de se dizer que a terra é redonda não significa que ela seja uma esfera, pois um círculo plano também pode ser redondo, e nem por isso ele é uma esfera. Portanto, São Tomás aí pode muito bem estar se referindo a uma superfície plana e redonda, conforme o modelo da terra plana.
Evidentemente, é uma questão ociosa lutar por palavras, tentando adivinhar o que São Tomás quis dizer neste lugar, se nós temos escritos dele tratando da questão do formato da terra ex professo. E é neste momento que chegamos ao vídeo do Frei Tiago.
Segundo Frei Tiago, a partir do minuto 13:48 do seu vídeo A DOUTRINA DA CRIAÇÃO contra o Heliocentrismo e a mentira Evolucionista, São Tomás de Aquino, ao comentar a cosmologia de Aristóteles, prova que a terra é plana e se encontra no centro do universo.
Que ela se encontra no centro do universo, era o sentir unânime no tempo de São Tomás, todos na antiguidade e no medievo eram geocentristas, com a única notável exceção dos pitagóricos, e estes o faziam por motivos não muito bons. Porém, toda a surpresa está no fato de aí São Tomás demonstrar que a terra é plana, justamente em um livro onde Aristóteles demonstra que ela é esférica. Poderíamos dizer que mais do que um comentário, seria isso uma verdadeira refutação de Aristóteles. E uma refutação de Aristóteles que, pelo que me consta, passou totalmente despercebida pelos estudiosos de São Tomás.
O nome da obra citada como prova chama-se De Caelo et Mundo e a citação é tirada exatamente do final da lição 21, em comentário ao livro 2 da obra de Aristóteles sobre o Céu e o Mundo. O Frei Tiago a apresenta as palavras de São Tomás da seguinte maneira:
É necessário que a terra, para ser estável, tenha uma figura plana, porque a figura esférica facilmente se move, porque tange a superfície numa pequena parte, mas a figura plana tange toda a superfície, por isso está apta a ser estável. Necesse est terram, ad hoc quod quiescat, habere figuram latam. Nam figura sphaerica facile mobilis est, quia in modico tangit superficiem: sed figura lata secundum se totam tangit superficiem, et ideo est apta ad quietem.
Com o cuidado de a ter posto também no original em latim, a apresentação é muito convincente. A tradução está correta. No entanto, em consideração do que já disse sobre o tema, levantei a hipótese de tratar-se da opinião de um terceiro, pois é muito comum, tanto na obra de Aristóteles, quanto na obra de São Tomás, mencionar-se argumentos de terceiros, contrários ao do autor ou comentador, para depois melhor refutá-los.
A hipótese foi testada e o que se descobriu é que a passagem acima foi tirada de um contexto no qual fica perfeitamente evidente que se trata de um argumento de terceiros, ou seja, que ela não representa nem a opinião de São Tomás, nem a de Aristóteles sobre o formato da terra.
Com efeito, o começo da frase não é com o necesse est, de é necessário, como aparece no vídeo, mas dicentes quod necesse est, isto é, dizendo eles que é necessário. Eles quem? Aqueles que argumentam que a terra tem que ser plana. Se vamos à obra De Caelo de Aristóteles e olhamos ao entorno da passagem citada (294a), veremos que Aristóteles tinha acabado de refutar um argumento em favor da terra plana e que, logo depois de ter mencionado este argumento citada pelo Frei Tiago, ele garante que há várias outras maneiras de explicar que a terra está em repouso, ou seja, que não é necessário que a terra seja plana para que ela esteja em repouso. É por isso que imediatamente depois de fazer a paráfrase do argumento terraplanista, São Tomás dirá: E para que não se creia que esta causa do repouso da terra é sustentada comumente por todos, abaixo ele acrescenta que há muitos modos diferentes de falar sobre o movimento e o repouso da terra, como se tornará manifesto pelo que será dito abaixo. Et ne credatur quod haec causa quietis terrae communiter ab omnibus assignetur, subiungit quod de motu et quiete terrae multi modi dicuntur, ut patebit ex his quae infra dicentur.
E efetivamente abaixo, isto é, indo para o final do livro 2, Aristóteles justifica a posição da terra no centro do universo e demonstra que ela está em repouso. Para terminar, trata da forma da terra, que é quando, finalmente, ele e São Tomás falarão sobre a matéria ex professo. Na obra de São Tomás a encontramos nas duas últimas lições referentes ao livro 2, a saber, a lição 27 e 28. Somente aí teremos o verdadeiro pensamento de São Tomás a respeito do formato da terra.
São Tomás começa assim: Depois que o Filósofo estabeleceu a verdade sobre a posição e o movimento ou repouso da terra, aqui ele estabelece a verdade sobre a sua figura. E primeiramente ele prova que a terra é esférica, por meio de razões naturais, que são tomadas da parte do movimento; em segundo lugar, por meio de razões matemáticas e astrológicas, que são tomadas a partir das coisas que aparecem segundo os sentidos, onde diz: Ademais, também pelas observações etc. Postquam philosophus determinavit veritatem circa locum et motum vel quietem terrae, hic determinat veritatem circa figuram ipsius. Et primo probat terram esse sphaericam, rationibus naturalibus, quae accipiuntur ex parte motus; secundo rationibus mathematicis et astrologicis, quae accipiuntur ex his quae apparent secundum sensum, ibi: adhuc autem et per apparentia et cetera.
Ou seja, não pode haver a menor sombra de dúvida que para São Tomás a verdade sobre a forma da terra é que ela é esférica e que ele aceita as demonstrações de Aristóteles como a verdade sobre a matéria. Os que quiserem podem examinar as duas últimas lições por inteiro e conferirem os argumentos ali utilizados. Aqui me limitarei a observar que assim fazendo poderão concluir que São Tomás utiliza o termo esférica e redonda como sinônimos. Por exemplo, no começo da lição 28: Tendo feito um argumento para demonstrar a redondez da terra, tirado da consideração do movimento de suas partes. Praemissa ratione ad probandum rotunditatem terrae, quae sumebatur ex specie motus partium eius. Ora, evidentemente ele se refere ao primeiro argumento para provar que a terra é esférica, logo redonda e esférica são a mesma coisa.
Além disso, mais adiante lemos: E diz [Aristóteles] que da diversidade de aparência das estrelas aparece que a terra não só é redonda, mas também pequena em comparação com outros corpos celestes. Et dicit quod ex diversitate apparentiae stellarum apparet quod terra non solum est rotunda, sed etiam parva in comparatione ad corpora caelestia. Com o que São Tomás não somente concorda, mas também procura trazer os dados mais recentes a esse respeito: pois os astrólogos – diz ele - provam que o sol é cento e setenta vezes maior que a terra; muito embora, por conta da distância, ele pareça ter um pé de diâmetro: nam solem probant astrologi esse centies septuagesies maiorem terra; cum tamen, propter distantiam, videatur nobis pedalis.
Fica provado então que, para São Tomás, a terra é esférica e pequena com relação ao sol e aos outros corpos celestes, de modo que a sua concepção do universo é completamente incompatível com o que hoje se conhece como terraplanismo.
Mas a reflexão mais importante e profunda que eu gostaria que fizessem os nossos amigos, sejam eles terraplanistas ou não, é que a ciência, como um produto do esforço racional do homem para entender este universo, é coisa que muda e evolui. Mas a ciência dos Santos, que consiste na imitação da vida de Cristo, é sempre a mesma. É providencial que a festa deste grande Santo e Doutor da Igreja seja sempre na Quaresma. Isso nos deve lembrar que, se queremos ser verdadeiros estudiosos católicos, devemos ser antes de tudo católicos como São Tomás.
São Tomás sempre foi muito admirado pelo seu conhecimento científico, contudo o mesmo São Tomás, em uma visão antes da morte, julgou ser palha toda essa sabedoria, em comparação com a glória e a grandeza de Deus. Sic transit gloria mundi, assim passa a glória do mundo. Que os jejuns, as orações e as esmolas desta Quaresma nos levem à mesma bem-aventurada conclusão a que chegou aquele que, segundo a célebre sentença de Cardeal Caetano, foi o mais douto dos santos e o mais santo dos doutos.
Com esse espírito eminentemente tomista, seguiremos os nossos estudos, buscando trazer o esclarecimento e a verdade sobre essas matérias em controvérsia.