O ARGUMENTO CANÔNICO: QUEM SOU EU PARA JULGAR? II - RESPOSTA A OUTRA OBJEÇÃO FREQUENTE:
- Publicado em 01/09/2018
- Por Diogo Rafael Moreira
Proposição. A excomunhão e perda ipso facto do cargo por heresia manifesta requer uma sentença formal da parte da Igreja, seja por meio de um Concílio Geral, seja por meio de um Papa futuro.
Falsa, contra esta proposição temos os seguintes argumentos:
I. O próprio conceito de herege dado no cânon 1325 deixa claro que este não precisa de sentença alguma para tornar-se um herege: “É uma pessoa batizada que, embora continue pretendendo-se cristã, nega ou duvida pertinazmente de uma verdade que deve ser crida com fé divina e católica.” Negação ou dúvida na inteligência e pertinácia na vontade são coisas invisíveis que só se tornam perceptíveis quando alguém na qualidade de mestre ensina publicamente uma doutrina herética, seja por suas palavras, gestos, ações ou omissões. De fato, como observou São Roberto Belarmino e o próprio Cristo, as obras exteriores ou frutos são a única forma de julgar um herege. Essas duas coisas (estar em posição de magistério e ensinar uma heresia publicamente) não só podem, mas devem ser inferidas pela simples observação.
II. O cânon 2314 declara que todo herege incorre em excomunhão latae sententiae. Certas penas devem ser infligidas depois de uma sentença, mas a excomunhão mesma é incorrida automaticamente a partir do instante mesmo em que a heresia ocorre.
III. O herege, se clérigo, perde seu cargo na Igreja automaticamente (ipso facto) e sem nenhuma declaração. "Em razão de renúncia tácita, aceita pelo mesmo direito, cai automaticamente e sem nenhuma declaração, de qualquer ofício, se o clérigo: (…) §4 apostata publicamente da fé católica." (Código de Direito Canônico, cân. 188, 1917).
IV. É evidente que o "ipso facto" tem força atual e não requer declarações posteriores. "47. Igualmente, aquela [sentença] que afirma que é necessário, segundo as leis naturais e divinas, que tanto para a excomunhão quanto para a suspensão deva preceder o exame da pessoa; e que portanto as sentenças ditas ipso facto não têm outra força senão de grave ameaça, sem nenhum efeito atual: [condenada como] falsa, temerária, perniciosa, ofensiva ao poder da Igreja, errônea." (Papa Pio VI, Auctorem Fidei, 28 ago. 1794; Denzinger-Hünermann 2647; Denzinger 1547).
V. Não se trata mais de uma questão em disputa: não é necessário sentença alguma. "Autores antigos disputaram se a penalidade da privação de benefícios [incorrida por hereges] sucede ipso facto ou depois de uma sentença jurídica. Mas devido às provisões de leis subsequentes a matéria já não é mais duvidosa. Na constituição Noverit Universitas do Papa Nicoulau III de 5 de março de 1280, por exemplo, diz-se: 'Mas os hereges… não devem receber qualquer benefício eclesiástico ou cargo; e se o contrario tiver ocorrido, Nós decretamos que seja nulo e sem efeito; pois, a partir de agora, Nós os privamos de seus benefícios, querendo que eles não os tenham em perpétuo e que não os recebam de modo algum no futuro.' Ora, as palavras 'a partir de agora privamos' são equivalentes às palavras ipso facto [pela lei mesma], como é ensinado por Suarez [De Legibus, Bk. 5, c. 7, n. 7] e outros canonistas. O Papa Paulo IV disse a mesma coisa de forma ainda mais clara em sua constituição Cum Ex Apostolatus de 15 de fevereiro de 1559, na qual, depois de confirmar as penalidades estabelecidas por seus predecessores contra os hereges, afirma expressamente que 'Incorrem em excomunhão ipso facto todos os que conscientemente ousam acolher, defender ou favorecer os desviados ou lhes deem crédito, ou divulguem suas doutrinas… os clérigos serão privados… de todos os ofícios eclesiásticos e benefícios.' Por conseguinte, não pode haver duvida de que os clérigos são privados de seus benefícios ipso facto pelo crime de heresia." (Francis Heiner, De Processu Criminali Ecclesiastico, op. cit. DALY, John. Michael Davies: An Evaluation. Rouchas Sud: Tradibooks, 2015, p. 160).
VI. As admonições não têm o poder de determinar se alguém é ou não um herege, elas apenas servem para tornar evidente este fato, se ainda resta alguma duvida. O Cardeal De Lugo, considerado por Santo Afonso o maior teólogo desde Santo Tomás, consagrou à questão da pertinácia o estudo mais detalhado que conhecemos. Após tratar dos pareceres de todos os teólogos e canonistas, ele afirma que a monição nem sempre é necessária; nem, tampouco, é exigida sempre na prática do Santo Ofício. A razão disso é que a admonição serve apenas para estabelecer que o indivíduo reconhece a oposição existente entre a opinião dele e o ensinamento da Igreja. Mas, se isso já fosse evidente, a admonição seria supérflua. (Disputationes Scholasticae et Morales, Disp. XX, De Virtute Fidei Divinae, Sectio vi, n. 174 et seq.)
VII. O que separa da Igreja não é o crime de heresia (julgado pela autoridade canônica), mas o pecado de heresia (julgado pelas obras exteriores do herege). O crime somente pode ser julgado pelo poder eclesiástico, mas o pecado pode e deve ser reconhecido por qualquer fiel. No caso da heresia, advertências somente entram em jogo para o crime canônico de heresia. Essas advertências não são obrigatórias para que se cometa o pecado de heresia contra a lei divina. O canonista Michel nos dá uma clara distinção: “Pertinácia não inclui, necessariamente, longa obstinação do herege e advertências da Igreja. Uma coisa é a condição para o pecado de heresia; outra é a condição para o crime canônico de heresia, punível pela lei canônica.” (Michel, Hérésie, in DTC, vol. 6, p. 2222). É o pecado público de heresia que despoja o papa da autoridade de Cristo. “Se uma situação assim acontecesse”, disse o canonista Coronata, “ele [o Romano Pontífice] iria, por lei divina, cair do seu ofício sem nenhuma declaração.” (Institutiones Iuris Canonici. Roma: Marietti, 1950, vol. 1, p. 316).
VIII. A própria definição de Igreja mostra como o pecado da heresia não depende do juízo de terceiros, mas somente do juízo pervertido do próprio herege. "Como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o batismo e professam a verdadeira fé, nem se separaram voluntariamente do organismo do corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas… Nem todos os pecados, embora graves, são de sua natureza tais que separem o homem do corpo da Igreja como fazem os cismas, a heresia e a apostasia." (Papa Pio XII, Encíclica Mystici Corporis, nn. 22-23). Como se torna claro por esta definição, o herege, cismático e apóstata abandona a Igreja voluntariamente, portanto, sua renúncia não depende do julgamento de terceiros.
IX. A mesma doutrina é ensinada pelo Catecismo Romano: "Daqui que se infere que só três classes de homens são excluídos da comunhão com a Igreja. Em primeiro lugar, os infiéis; em segundo, os hereges e cismáticos; por último, os excomungados... Os hereges e cismáticos, porque apostataram da Igreja. Pertencem tampouco à Igreja, como os desertores fazem parte do exército, que abandonaram. É certo, todavia, que continuam sob o poder [coercitivo] da Igreja, que os pode julgar, punir, e excomungar" (Catecismo Romano, I Parte: Do Símbolo dos Apóstolos, 9º Artigo). Esta comparação entre o herege e um desertor é a melhor forma de ilustrar como se dá a perda do cargo por renúncia tácita.
X. Segundo o canonista Merkelbach (Summa Theologiae Moralis, vol. 1, p. 578), a heresia pública se manifesta por palavras, gestos, ações e omissões (verbis, signis, factis, omissione facti). Trata-se, portanto, de um fato concreto e como tal não exige qualquer sentença para realizar-se.