DE CRANMER A MONTINI:
- Publicado em 09/07/2019
- Por Diogo Rafael Moreira
Uma confrontação reveladora de Padre Morerod
A Academia Nacional dos Liceus e a Congregação para o Doutrina da Fé publicaram as atas da jornada de estudos dedicada à abertura dos arquivos do Santo Ofício Romano (Roma, 22 de janeiro de '998), abertura solicitada pelo professor Carlo Ginzburg «por uma valente carta (assim se expressa o cardeal Ratzinger) dirigida ao Santo Padre João Paulo II um ano depois à Sé de Pedro» (op. cit., pág. 185). A solicitação teve resultado positivo e os arquivos do Santo Ofício estão agora abertos aos estudantes, «sem distinção de país ou fé religiosa» (pág. 97) (O mesmo Ginzburg se apresentava em sua carta como «judeu de nascimento e ateu» (pág. 185). Sempre com a intenção de divulgar os documentos dos arquivos do Santo Ofício, tomou-se a iniciativa de constituir «uma Coleção de publicações dos textos dos arquivos, com o nome de ‘
Fontes Archivi Sancti Oficii Romani’ editada pela Casa Editora Olschki de Florença, cujo primeiro volume intitulado ‘A validade das ordenações anglicanas’ (…) está hoje à disposição de todos» (Mons. Bertone, pág. 100). As atas da jornada de estudos propõem, da pág. 103 à 127, a apresentação do livro recém-mencionado, do Padre Francisco Von Gunten O.P., já falecido, feito por seu discípulo o Padre Charles Morerod O.P..
Dentro dos limites desta breve resenha, dedicar-me-ei à intervenção do Padre Morerod, e em particular, as suas apreciações sobre o novo rito do sacramento da Ordem, promulgado por Paulo VI.
O autor, repassando os argumentos de Leão XIII e de seus teólogos que concluíram na decaração da invalidade das ordenações anglicanas (Apostolicae curae, 1896), examina o defeito de forma, matéria e intenção nestas ordenações. A respeito da forma (no que toca à transmissão dos instrumentos), estabelece um paralelo inesperado entra o ordinal anglicano de 1552 e o «promulgado» por Paulo VI em 1968: «Inclusive o rito de ordenaão usado na Igreja Católica de 1969 a 1989 era pouco explícito com respeito à dimensão sacramental do ministério sacerdotal. O rito anglicano de 1552, não poderia ser só a adaptação pastoral da liturgia, como a do Vaticano II? Os mesmos arcebispos [anglicanos] de Cantuária e de York o sugeriram em sua resposta de 1897 a Leão XIII» (págs. 113-114). Em nota, o Padre Morerod detalha a dificuldade: «No rito de ordenação utilizado pela Igreja Católica de 1968 a 1989, não se diz explicitamente que o sacerdote é ordenado para celebrar os sacramentos (…)» (pág. 114, nº 48). Em 1662, os anglicanos acrescentaram ao seu rito palavras que iam no sentido católico: «O P. Franzelin, seguido por Leão XIII, verá neste agregado - bom em si mesmo - um reconhecimento da insuficiência da fórmula precedente» (pág. 112). Da mesma maneira, em 1989, sentiu-se a exigência de completar o rito pós-conciliar: «O rito de 1989 desenvolve notavelmente a oração de ordenação sacerdotal para introduzir explicitamente a dimensão sacramental em seu ministério (...) Mas a renovação do rito não há suprimido totalmente uma certa ambiguidade, cf. Pierre Jounel (…): ‘De maneira um pouco surpreendente, a oração insiste menos que o esquema de homília no caráter sacrifical da missa’» (pág. 114, nº 48). O autor admite então que o novo rito de ordenação, ainda depois de uma correção no sentido católico, permanece «ambíguo»! Qual é então a diferença entre o ordinal anglicano de 1552 e o pós-conciliar de 1969? «Esta é a diferença entre o rito anglicano de 1552 e o rito católico (ainda somente implícito) de 1969», escreve o autor citado a Von Gunten: «(…) De fato, a forma da ordenação sacerdotal tal como foi promulgada por Paulo VI não indica explicitamente a relação com o sacrifício eucarístico. No entanto, esta oração é a expressão de uma comunidade que ensina que a ordenação sacramental, confere o poder de oferecer o sacrifício da Missa. Pelo contrário, as palavras do ordinal anglicano não refletem o ensinamento de uma Igreja que crê que o sacerdócio é o poder de oferecer sacramentalmente o sacrifício de Cristo» (pág. 116, nº 53). Em si então, Cranmer haveria modificado o rito católico em 1552 exatamente na mesma direção que Bugnini-Paulo VI em 1968, criando dois ritos que não afirmam
«a relação com o sacrifício eucarístico». Mas o ordinal de Cranmer é inválido. Como pode ser válido o de Paulo VI? O autor responde: por meio da intenção eclesial. Escreve: «O rito de 1552 foi utilizado para a ordenação de Mathew Parker e de todos os bispos anglicanos até 1662. É impossível conhecer a intenção de tantas pessoas (...) Desde o ponto de vista da intenção, é importante conhecer a intenção não somente de algumas pessoas, senão da comunidade em que se celebram as ordenações. A intenção pessoal é importante, mas o é muito mais a intenção eclesial que se manifesta durante a liturgia como contexto das ações pessoais. No contexto de uma Igreja que crê no sacramento da ordem e o celebra em sua liturgia, não há que temer por um defeito desconhecido de intenção pessoal, senão que devemos pressupor a validade do sacramento. No caso das ordenações anglicanas, não podemos nem devemos conhecer a intenção interior, nem de um, nem de tantas pessoas individualmente («Com respeito ao propósito da intenção, sendo em si mesma algo interior, a Igreja não julga; mas desde o momento que esta se manifesta ao exterior a Igreja deve julgá-la». Leão XIII, Denz.-H. 3318). Devemos perceber como a liturgia de ordenação, o rito, manifesta exteriormente a intenção da mesma comunidade eclesial» (pág. 110). Nesta passagem o autor, com uma confusão à qual haure alusão, sustenta a teologia da intenção ensinada por Leão XIII e explicada em detalhe e defendida pelo Padre M.L. Guérard des Lauriers O.P. (Reflexões sobre o Novus Ordo Missae, datilografado, 1977, 387 págs.) e não aquela defendida por Mons. Lefebvre, segundo a qual a validade de um sacramento dependeria da fé do ministro! A intenção do ministro se manifesta na adoção do rito da Igreja viabiliza a intenção da autoridade promugadora do rito. Para o autor, a catolicidade de Paulo VI garante a validade de um rito anglicano; para o P. Guérard des Lauriers, um rito ambíguo não pode vir de uma autêntica autoridade.
O autor trata logo de rechaçar o intento neoecumênico (o «neo» se agrega para recordar o primeiro intento católico-anglicano de sustentar a validade do ordinal de 1552, intento destruído por Leão XIII) de reconsiderar a decisão «irreformável» de Leão XIII sobre a invalidade das ordenações anglicanas. Mas, como poder reformar uma decisão irreformável? O caminho foi aberto pelo cardeal Willebrands em 1985 (pág. 118, L’Osservatore Romano, 8/3/1986), então presidente do Pontifício Secretariado para a Unidade dos Cristãos. O colaborador e sucessor de Bea não podia propor
entonces presidente del Pontificio Secretariado para la Unidad de los Cristianos. El colaborador y sucesor de Bea no podía proponer (explícitamente) contradecir a Apostolicae curae (ya los obispos católicos ingleses recordaron en su momento a León XIII que la Santa Sede se había pronunciado varias veces contra la validez de las órdenes anglicanas, expresando el temor de ver «a la Santa Sede de hoy en contradicción con la Santa Sede de los siglos pasados» pág. 108); trata entonces de evitarla. Los anglicanos habrían podido mantener su rito, cambiando su doctrina eucarística: en ese caso, habiendo cambiado la fe de la «comunidad eclesial», la «intención eclesial» del rito anglicano cambiaría también, y en consecuencia se aseguraría, aunque sin efecto retroactivo, su validez. El autor no niega la validez de esta hipótesis, sostenida también por el sucesor de Willebrands, Cassidy, ya que es igualmente admitida por su maestro Von Gunten (pág. 119 y nº 62); el autor se limita a demostrar que esta vía es al presente impracticable, ya que los anglicanos se han alejado nuevamente de la concepción católica del sacramento por la ordenación de mujeres y la aceptación de las órdenes luteranas. Es la misma tesis de Willebrands que, por el contrario, me parece errónea y merecedora de refutación, y esto sobre la base de lo que el mismo Von Gunten escribe: «Subrayemos que el error doctrinal de los anglicanos sobre el sacramento del orden no habría conllevado la invalidez de sus ordenaciones, si ellos hubiesen continuado utilizando el ritual en vigor hasta 1550. Como se sabe, la Iglesia ha considerado siempre verdadero el bautismo administrado en el nombre del Padre y del Hijo y del Espíritu Santo, por infieles y cismáticos . Pero en el siglo XVI los anglicanos modificaron el rito, ‘con el fin manifiesto de introducir otro rito no admitido por la Iglesia y de rechazar lo que hace la Iglesia’» (pág. 113, nº 44).
Para Von Gunten entonces, la fe (eclesial) errónea no invalida el sacramento si el rito utilizado sigue siendo el católico; ¡no se ve porqué una supuesta fe eclesial corregida de los anglicanos podría cambiar el valor de un rito no católico que vehiculiza otra fe! Si verdaderamente los anglicanos llegaran a abjurar de sus herejías, deberían abjurar del rito que las vehiculiza. Y no sirve de nada proponer el argumento sacado de ciertos ritos orientales o de la iglesia antigua, éstos también más o menos explícitos sobre la doctrina eucarística, como justamente lo recuerda el autor (pág. 112); ya que no se introdujeron para vehiculizar la herejía. Pero introducir hoy un rito arcaico insuficiente en relación a la evolución homogénea del dogma, suprimiendo expresamente lo que fue adoptado en el decurso de los siglos para explicitar la Fe (como se hizo en parte en 1969 con el N.O.M.); ¿acaso no es seguir los pasos de Cranmer? El autor olvida que la reforma litúrgica posconciliar no nació en un contexto de ortodoxia -como lo pretende, en garantía de su validez- sino de general heterodoxia y crisis de fe que arroja más de una duda sobre un rito que, en presencia del cardenal Ratzinger y de Mons. Bertone, un profesor de la Pontificia Universidad Angelicum como el P. Morerod debió definir como «ambiguo». Sin embargo, las contradicciones inherentes a la Reforma de los años ‘60 llegaron, aunque lentamente, al gran día, cosa de la que todos los buenos católicos no pueden más que alegrarse.
(Revista "Integrismo" n° 12, http://integrismo.over-blog.com/article-mapa-del-sitio-5094…).