PERGUNTA: A Constituição do Papa Pio XII, que estabelece as regras para o Conclave Papal, diz o seguinte:
“34. Nenhum Cardeal, à pretexto ou em razão de qualquer excomunhão, suspensão, interdito ou outro qualquer impedimento eclesiástico, pode ser excluído de qualquer maneira da eleição ativa e passiva de Sumo Pontífice. Além disso, suspendemos tais censuras apenas para efeito da eleição papal, ainda que, para outros efeitos, sejam mantidas”.
Tenho várias perguntas sobre isso:
1. Qual é a interpretação da Igreja sobre essa passagem?
2. São levantadas todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras para todos os participantes do conclave papal? Inclusive para o cardeal que tenha sido eleito Papa, porque é isso o que parece significar o termo “eleição passiva”?
3. Se é assim, a passagem quer dizer que um Cardeal excomungado pode ser eleito validamente Papa? Isso não derruba o principal fundamento do sedevacantismo?
RESPOSTA: Por muitos anos vários autores tradicionalistas pertencentes à FSSPX, como o Padre Carl Pulvemacher, Michael Davies, Padre Dominque Boulet e os dominicanos de Avrillé, e até autores conservadores como o padre Brian Harrison, citaram essa passagem como uma resposta definitiva ao sedevacantismo. Se Pio XII suspendeu de maneira textual qualquer excomunhão, impedimentos eclesiásticos e censuras de qualquer tipo para quem seja eleito Papa, segue-se que um herege pode se eleger validamente Papa. Mas será que é essa a resposta correta que possa ser deduzida dessa passagem? Vamos primeiro, porém, abordar uma questão mais ampla, a da intepretação.
I- A INTERPRETAÇÃO DA LEI
De maneira geral, a “intepretação” no direito canônico provém de uma autoridade pública, como o Papa, a Cúria, etc. (o que se denomina interpretação autêntica) ou de outra fonte reconhecida, como o ensino de canonistas ( o que se chama intepretação doutrinal). (Para uma discussão completa, ver Abbo e Hannon, 1:17.)
Não foi encontrado um pronunciamento papal ou da Cúria que interprete ou explique essa passagem. Esta passagem tem essencialmente a mesma redação na legislação de eleições papais promulgada por Clemente V (1317), Pio IV (1562), Gregório XV (1621) e Pio X (1904). Por isso, o significado da norma deve ter sido considerado evidente, ao menos para a Cúria (?).
Quando não existe uma interpretação de uma autoridade pública, e isso é frequente no direito canônico, deve se consultar outras passagens do Código e o ensinamento dos canonistas, para se descobrir o que os termos significam. Depois de seguido esse procedimento, resta claro o significado dessa passagem na Constituição de Pio XII. Por essa razão, vamos agora empreender uma averiguação na terminologia.
(a) Censuras. A “excomunhão, suspensão ou interdição” que o pontífice mencionou são censuras, castigos que a lei eclesiástica inflige a um malfeitor para que se arrependa. (Para uma descrição mais geral, consulte-se Bouscaren, Canon Law 815-6) Os cardeais estão eximidos de incorrer em censuras, exceto nos casos em que a lei especifique o contrário (canon 2227.2) Em um conclave papal, o cardeal eleitor ou o papa eleito que, não obstante, de alguma maneira havia sido excomungado, enfrentaria obstáculos quase insuperáveis. Os efeitos dessa censura impedem que um excomungado administre ou receba os sacramentos, exerça a sua jurisdição, vote, nomeie outrem para cargos e, de fato, seja eleito para o cargo da igreja. (Ver Bouscaren, 831-4). Isso não deixaria ao papa eleito nada mais do que saudar a multidão da sacada do seu palácio e circular de papamóvel. (não mencionado por Bouscaren). As censuras às vezes são denominadas penas medicinais porque o seu propósito é curar a teimosia do malfeitor. Isso as distinguia das penas vingativas (?), que expiam diretamente um crime, independentemente de o malfeitor se arrepender ou não. (Bouscaren, 846).
(b) Impedimentos Eclesiásticos. O termo “outro impedimento eclesiástico” mencionado na Constituição de Pio XII pertence a uma categoria mais genérica. Um desses impedimentos é, por exemplo, a pena vindicativa (?) de infâmia: a perda da reputação devido a um crime horrível. Entre outras coisas, esta pena faz com que um criminoso não seja passível de ser eleito para cargos da igreja, dignidades, etc. Este impedimento, então, como a excomunhão, impediria que um cardeal votasse em um conclave ou se elegesse papa.
II- SUSPENSÃO DE CENSURAS E IMPEDIMENTOS
Havendo sido estabelecido o significado desses termos no parágrafo 34 da Constituição de Pìo XII, pode-se ver com facilidade o que almeja alcançar a lei: evitar a discussão interminável sobre a validade de eleição papal. Então se torna fácil responder à segunda pergunta: “Levanta todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras para todos os participantes de um conclave papal”?
A resposta é sim. O parágrafo 34 também compreende o caso de um cardeal excomungado que haja sido eleito papa? Novamente a resposta é sim, porque a Constituição se utilizou dos termos eleição ativa e passiva, o que significa, poder votar e ser eleito. Portanto, é correto dizer que a Constituição de Pio XII permite de maneira explícita que um cardeal excomungado se eleja papa validamente.
III- ARGUMENTO CONTRA O SEDEVACANTISMO
Agora a pergunta final: Isso tudo não derruba o princípio fundamental por detrás da tese sedevantista? Aqui, a resposta é negativa. A maioria dos que pertencem ao FSSPX, muitos sedevacantistas e até acadêmicos inteligentes como o Pe. Harrison presumem que a excomunhão é o ponto de partida para a tese sedevacantista, a qual acreditam eles ser algo como o que segue: O direito canônico impõe uma excomunhão automática a um herege. A excomunhão impede que um clérigo vote para eleger alguém para cargo, que se eleja ou que permaneça em um cargo uma vez que se tenha tornado um herege público.
Paulo VI e seus sucessores incorreram nessa excomunhão por heresia pública. Logo, não foram verdadeiros papas. Com a eliminação da possibilidade de excomunhão por conta do parágrafo 34 da Constituição de Pio XII (segue a argumentação anti-sedevacantista) , desaparece o argumento sedevacantista. Mas eles não entendem. A excomunhão é uma criação da lei eclesiástica e não é o ponto de partida para a tese sedevacantista. Na verdade, não tem nada a ver com isso.
Para o sedevantismo o ponto de partida é outro princípio, completamente: que a lei divina impede que um herege se torne um verdadeiro papa (ou que permaneça, se um papa se torna herege durante o curso de seu pontificado). Esse princípio deriva diretamente destes seguintes trechos principais de comentários prévios ao Vaticano II, sobre o Código de Direito Canônico, que tratam da eleição ao cargo de papa e as qualidades requeridas que devem existir na pessoa eleita. Vão abaixo algumas citações:
“Os hereges e cismáticos estão excluídos do Supremo Pontificado por uma lei divina mesma...Certamente, devem ser considerados como excluídos de ocupar o trono da Sede Apostólica, que é o mestre infalível da verdade e da fé e o centro da unidade eclesiástica” (Maroto, Institutiones IC 2 784)
“Cita-se a Oficina da Primazia. 1. O que exige a lei divina para a nomeação...Também se requer para a sua validade que o eleito seja membro da Igreja; portanto, os hereges e os apóstatas (ao menos os públicos) estão excluídos” (Coronata, Institutiones, IC 1:312).
“Todos aqueles que não sofram um impedimento decorrente de lei divina ou por lei eclesiástica invalidante são validamente passíveis de eleição (para que sejam eleitos papas). Portanto, um homem que tem o uso e gozo da razão suficiente para aceitar a eleição e exercer a sua jurisdição e que seja um verdadeiro membro da Igreja, pode ser validamente eleito, ainda que seja leigo. Não obstante, são excluídas todas as mulheres, crianças que ainda não tenham chegado à idade da razão, os loucos habituais e os hereges e cismáticos” (Wernz-Vidal, Jus Can. 2:415)
Portanto, a heresia não é um mero “impedimento eclesiástico” ou censura do tipo que Pio XII enumerou e suspendeu no parágrafo 34 da Vacantis Apostolicae Sedis. Ao contrário, é um impedimento que vem da lei divina que Pio XII não suspendeu e nem poderia porque é uma lei divina.
IV-RESUMO: MAÇAS E LARANJAS
O parágrafo 34 da Vacantis Apostolicae Sedis suspende os efeitos das censuras (excomunhão, suspensão, interdição) e outros impedimentos eclesiásticos (por exemplo, infâmia legal) para os cardeais que participam da eleição papal e para o cardeal que venha a ser eleito. Portanto, um cardeal que tenha sido incurso em uma excomunhão antes de sua eleição para papa seria, não obstante, eleito validamente. Não obstante, esta norma só concerne aos impedimentos da lei eclesiástica.
Com isso não pode ser invocada como argumento contra o sedevacantismo, que se baseia nas lições dos canonistas anteriores ao Vaticano II, de que a heresia é um impedimento da lei divina para que seja recebido o papado. Portanto, os polemistas anti-sedevacantistas devem deixar de reciclar argumentos baseados na passagem em questão. Não tem nada a ver com a posição a que se opõem.
UM CARDEAL EXCOMUNGADO PODE SER ELEITO PAPA? Pelo Reverendo Padre Anthony Cekada Quidlibet, 25 jun. 2007