Ensaio sobre a Restauração da Propriedade

A restauração da propriedade pode ser algo muito remoto e talvez impossível. Seja como for, não há outra alternativa viável: ou faz-se um esforço em favor da restauração da propriedade, ou a marcha em favor da restauração da escravidão seguirá o seu curso normal, agravando ainda mais a situação das famílias que vivem sob o poder dos dois dragões econômicos nascidos do liberalismo.

Os capitalistas continuarão monopolizando e forçando a esmagadora maioria das pessoas a ficarem sob sua tutela, enquanto os socialistas continuarão fazendo a mesma coisa em favor de um punhado de funcionários públicos; no fim, não importa quem seja o senhor das massas do momento, o problema real é um e sempre o mesmo: essas pessoas – capitalistas, comunistas e associados – pensam que a propriedade bem distribuída é uma ilusão e não medem esforços para nos convencer disso.

Partilhar da mesma opinião que eles talvez não o torne um ativo cúmplice do crime que eles cometem contra as famílias e a Ordem Cristã, mas certamente fará de você uma vítima. É importante, então, enxergar outros horizontes para a vida econômica e tomar a firme resolução de nadar contra a correnteza. Esse é o convite feito por Hilaire Belloc no seu Ensaio sobre a Restauração da Propriedade. O autor traz propostas concretas para a reabilitação de uma vida econômica conforme o bom senso.

Eis a primeira parte de um resumo explicado dessa obra-prima do distributismo. Nela o autor ergue os fundamentos para os princípios e conclusões práticas que serão enunciadas nos próximos capítulos.

BELLOC, Hilaire. An Essay on the Restoration of Property. 2 ed. Norfolk, Virginia: IHS Press, 2009.

An Essay on the Restoration of Property - Hilaire Belloc

CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Riqueza não é a posse de um pedaço de papel ou de um tipo de metal, mas a posse dos recursos necessários para a vida humana. Só para ilustrar, diga-se que um homem com seus milhões de dólares, e somente ele, pode muito bem morrer de fome, ao passo que um pobre com um saco de arroz pode viver por mais tempo.

Logo, produção de riqueza não é simplesmente “fazer dinheiro” ou, como se diz, “gerar renda”; produção de riqueza é toda mudança feitas no ambiente com o propósito de produzir os recursos necessários para a vida humana. A produção de riqueza requer extrair, cultivar, juntar ou separar coisas, ou seja, ela supõe o trabalho humano aliado aos meios de produção.

Meios de produção são as ferramentas de trabalho, os recursos naturais e os locais de armazenamento de riqueza. Regra geral: quem controla os meios de produção, controla a distribuição de riqueza. Donde se obtém dois corolários.

Primeiro corolário: Se os meios de produção que uma família precisa está nas mãos de terceiros, então essa família despenderá de outros e, portanto, não será absolutamente livre.

Segundo corolário: Uma família é absolutamente livre quando tem o controle pleno de todos os meios de produção necessários para o seu sustento.

A LIBERDADE ECONÔMICA, A PROPRIEDADE PRIVADA E O ESTADO

Ora, a liberdade econômica assim entendida é indesejável e impossível no longo prazo. Indesejável e impossível no longo prazo por causa da natureza social do homem. Duas realidades tornam isso manifesto: o fato de toda família crescer, associar-se com outras e se multiplicar faz com que a riqueza seja naturalmente dividida entre seus membros com o passar do tempo; o fato das pessoas se unirem e separarem de acordo com a diversidade de interesses e talentos que são a causa de natural união e separação entre as pessoas.

Portanto, a própria natureza humana impõe limites a liberdade econômica absoluta ou concebida idealmente. Isso significa que toda liberdade real exige limites que impedem tanto a suposta posse de tudo por todos (i.e. pelo Estado, socialismo) quanto a posse de tudo por algumas famílias (i.e. pelos plutocratas, capitalismo). Com raízes na natureza social e concreta do homem, existem duas instituições que nascem naturalmente das relações humanas: a propriedade privada e o Estado.

Já se viu alguns motivos para a primeira quando se falou das limitações à liberdade econômica absoluta, acrescente-se agora a necessária diferença de ocupação entre as pessoas. Ora, cada um faz aquilo que possui maior oportunidade de produzir, tal pode ser em virtude das particularidades do terreno ocupado pela pessoa, ou por aptidão natural, ou adquirida. Seja como for, o que importa saber é que o que essa pessoa produz pode ser trocado pelo que outra produz e essa permuta é muito proveitosa para ambos os partidos. Uma leitura cuidadosa da famosa passagem da República de Platão sobre a “cidade dos porcos” e do primeiro e segundo capítulo da Política de Aristóteles será o bastante para demonstrar que a razão e a experiência, a natureza e a virtude, requerem a propriedade privada e o intercâmbio de bens ente os homens.

Há também o Estado. Ele não é um mau necessário como os adeptos do laissez-faire querem que creiamos. Ele é um bem necessário e seria tão absurdo negá-lo por causa dos abusos infligidos pelos governantes, quanto seria desacreditar a propriedade privada por causa dos notórios abusos cometidos pelos capitalistas. Posto que existe uma comunhão de natureza e de propósito entre os homens, ou seja, uma vez que há um bem comum, deve também haver uma instituição que promova e preserve o bem comum. Operações mais complexas como a satisfação da justiça, a manutenção da ordem interna e a defesa contra uma agressão externa exigem a existência do Estado, deve haver uma organização cujo poder esteja necessariamente acima das famílias para melhor servi-las. Mais adiante se tratará um pouco mais sobre esse assunto.

A PROPRIEDADE E A GUILDA

Entretanto, convém manter nosso olhar voltado para a realidade. Embora os abusos não impliquem a maldade intrínseca da instituição, eles implicam um desvio do bem comum e são uma coisa a ser evitada tanto da parte dos proprietários quanto da parte do Estado.  De fato, o Estado pode usar o seu poder para escravizar as famílias, uma família pode usar seu poder para escravizar outras e eventualmente controlar os assuntos do Estado. Um rápido olhar sobre a história antiga e moderna revela que nenhum dos lados está isento de culpa e que a única forma de existir uma ordem decente é limitando o poder de ambos.

Dizê-lo é ato de simples bom senso, mas não soa familiar aos autores da moda. Quem está acostumado com o pensamento político moderno sabe bem que o que o realismo de Maquiavel e Hobbes, o liberalismo de Locke e Mill e o comunismo de Rousseau e Marx têm em comum é o desequilíbrio. Eles sempre vão pender para um lado da balança em detrimento do outro. Por essa mesma razão, esses sistemas políticos têm sido os veículos das maiores injustiças que nossa civilização já padeceu. Aliás, vale dizer que todos esses sistemas possuem uma relação hostil com a religião verdadeira, justamente porque ela impõe limites ao Estado e aos proprietários para o bem de ambos.

Enfim, a prática revela que a liberdade econômica humanamente possível e desejável consiste na posse dos meios de produção pela unidade familiar. O nome usado para meios de produção em geral e da terra em particular é propriedade. Quando um grande número de famílias possui propriedade, então diz-se que naquela sociedade a propriedade é bem distribuída e tal sociedade se constituí predominantemente de homens livres ou proprietários. A estrutura social que promove e conserva as coisas dessa maneira chama-se guilda. Ela é a sentinela contra o monopólio, a defensora da tradição e da herança. Toda sociedade livre possui associações que, auxiliadas pelo Estado, mantém a liberdade econômica de grande parte das famílias.

A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Agora bem, a partir desse quadro é possível avaliar o caráter da sociedade contemporânea. Há propriedade bem distribuída entre um grande número de famílias? Há instituições que as protejam contra o monopólio e a concorrência implacável? A resposta é negativa para ambas as perguntas de modo que o que o que caracteriza a sociedade contemporânea não é o fato da maior parte das famílias serem proprietárias, mas proletárias. Em outras palavras, a esmagadora maioria da população é economicamente dependente de um pequeno número de grandes proprietários, a sorte das massas depende de um salário.

Ora, uma sociedade onde a minoria controla os meios de produção, deixando a massa de cidadãos sem propriedade gera a insegurança e insuficiência, uma vida de contínua ansiedade. Esse estado de constante desequilíbrio pede por uma solução.

Ora, existem duas formas de contornar esses dos males (insegurança e insuficiência) sem a restauração da propriedade. A primeira é o que Belloc chamou de o Estado servil, hoje mais conhecido pelo nome nada modesto de Estado de bem-estar social. Em resumo, esse sistema consiste em manter o trabalhador vivo mediante salário e, como o salário não é o bastante, mais algum subsídio ou benefício oferecido pelo Estado. O segundo caminho é a renúncia a toda a propriedade por parte dos trabalhadores, ou seja, o comunismo em que toda propriedade passa para as mãos do Estado e sua distribuição fica a critério dos burocratas.

Mas existe uma terceira forma de economia política. Essa é a única que permite aliar a segurança e suficiência à liberdade econômica. Essa forma é uma sociedade na qual a propriedade é bem distribuída entre um grande número de famílias que separadamente possuem e, portanto, controlam os meios de produção ao ponto de determinarem o caráter da sociedade, tornando-a nem capitalista, nem socialista, mas proprietária.

Logo, liberdade econômica é igual a propriedade bem distribuída.

SE A LIBERDADE ECONÔMICA É UM BEM

Mas a liberdade econômica é um bem? Ora, a liberdade econômica só é um bem se ela preenche alguma necessidade da natureza humana. Existem duas realidades que favorecem essa opinião: o fato do ser humano querer fazer as coisas livremente e não por simples coação, coisa que dificilmente um empregado faz, e, segundo, a vontade de expressar as suas ideias e mesmo suas reclamações de forma efetiva, coisa que em última análise o empregado também não pode fazer. Acrescente-se que essa era a riqueza necessária ao homem virtuoso aludida por Aristóteles na Ética. A virtude supõe não só a liberdade para fazer o bem, o que todos temos por natureza, mas também os meios necessários para a administração da justiça.

Aqui se levantam alguns argumentos contra a propriedade ou liberdade econômica. O primeiro e mais fraco deles apela para a noção de representação: assim como na política existe representação política, também na economia devem haver pessoas que nos representam. A resposta para essa objeção é bastante simples: representação não equivale a posse e, como o caso da política revela nitidamente, o política representará quem tem o poder de bancar a sua campanha e o tempo para pressioná-lo depois de eleito, a pessoa comum – o tal do eleitor – não possui nenhuma das duas coisas e, portanto, sua influência durante todo o processo é nula.

O segundo argumento consiste em dizer que o pão é mais importante que a liberdade econômica. Nisso concordam capitalistas e socialistas: buscai primeiro os bens materiais e tudo o mais vos será acrescentado, dizem eles. A concepção que sustenta essa teoria é de que o homem econômico é um estômago, toda a propaganda de ambos os partidos enfatiza as barrigas alimentadas, as melhoras nas “condições de vida”. A menos que se creia que o homem é algo mais que estômago, que a virtude da justiça exige que se dê ao nosso próximo mais do que pão, então será possível falar na importância da propriedade e da liberdade, caso contrário, a sociedade sempre oscilará entre essas duas enormidades.

CONDIÇÕES PARA O DISTRIBUTISMO

Primeiro, a sociedade distributista como toda obra humana será imperfeita, ela será a propriedade nas mãos de muitos, o que não implica que não haverão famílias comparativamente mais pobres que as outras e pessoas sem propriedade. Mas o caráter geral da sociedade será a propriedade bem distribuída e o desejo pela propriedade voltará a ser algo natural ente os homens.

Segundo, não se pode fazer nada sem que exista um estado de espírito, a consciência de que a propriedade é algo que valha a pena. Em suma, as pessoas precisam parar de falar em termos de empregos e salários e voltar a falar em termos de propriedade. As reformas só terão efeito e longevidade se forem expressão desse desejo, pois ser proprietário não é simplesmente ganhar a propriedade de um terceiro, mas sim um estilo de vida.

Terceiro, o apoio do Estado é fundamental, pois embora a intervenção estatal possa ser negativa e levar a perda da liberdade, o Estado sempre pode ser e frequentemente deve ser invocado para o propósito de restaurar a liberdade.  Essa é, afinal de contas, a função do rei, como bem disse Aristóteles, “proteger os ricos contra o tratamento injusto e os pobres contra o insulto e a opressão” (Política, livro V, 1311a). Portanto, que existam leis não só contra a rapina, mas também contra a competição excessiva, que hajam também sanções que favoreçam a pequena propriedade e impeçam que os pequenos negócios sejam destruídos pela ação predatória dos grandes.

É preciso, pois, eliminar de nossa mente a superstição de que a força jamais  pode ser a serva da justiça. A verdade é justamente o oposto. Todo o poder do Estado foi usado pelos capitalistas para a restauração de condições servis, não sairemos desse regime de servidão sem nos valermos dos mesmos métodos. Vim vi repellere licet.

2 comentários em “Ensaio sobre a Restauração da Propriedade

  1. Muito bom esse texto. Gostaria de saber se não existe nenhum livro de Hillaire Belloc traduzido para o português?

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    1. Saudações sr. Darildo, muito obrigado pelo comentário, o Belloc é de fato muito bom.

      Sim, há um livro deste autor em nosso idioma, chama-se As Grandes Heresias. Vale muito a pena a leitura.

      Um forte abraço!

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