Introdução às Cartas Avulsas dos Jesuítas

“A Companhia de Jesus criou o Brasil infante. Estas “Cartas” são o maior documento dessa criação.” – Afrânio Peixoto.

“Claramente nos disse que nós aqui, em comparação com os Irmãos do Brasil éramos ruins e homens, respeito a eles que eram anjos.” – Padre Antônio de Quadros.

Padre Manuel de Nóbrega
Padre Manuel da Nóbrega

Esta terra é nossa empresa.
NÓBREGA, Carta III, (1549).

INAPRECIÁVEIS documentos de História, geografia, etnografia são as crônicas, cartas, informações escritas sobre o Brasil e os Brasis, nesse primeiro contato com a civilização. A carta de Caminha, as de Vespúcio, a Gazeta Alemã, o Roteiro de Pero Lopes, as obras de Hans Staden, Gandavo, Thevet, Léry, Gabriel Soares… nesse primeiro século, têm, de permeio, as cartas de Nóbrega, informações e cartas de Anchieta, os tratados de Cardim, que valem outro tanto. São livros fundamentais. Os nossos “clássicos”. Documentos do Primeiro Século.

Um deles, de valor igual ao de qualquer destes, até agora inexistente à leitura e ao estudo, é este, “Cartas Avulsas” de Jesuítas, que reúne mais de sessenta missivas ou depoimentos valiosos, por vinte e tantos, mais de duas dúzias de missionários, alguns dos quais tão grandes como os dois maiores de nosso culto, Nóbrega e Anchieta. Este livro, que nos instrui e edifica, vem fazer a reivindicação de João de Azpilcueta Navarro, de Leonardo Nunes, de Luis da Grã, de Antônio Rodrigues, de Gregório Serrão, para não me exceder, citando outros, que se ombreiam, em serviços prestados ao Brasil, àqueles, já consagrados em nossa admiração. E nenhum dos outros deixa de ter seu mérito, grande mérito às vezes. Enquanto não se escreve uma “História das Missões da Companhia de Jesus no Brasil”, digna deles, e de nós, dirão bem esses documentos e por si farão justiça.

O Brasil não foi uma decepção, porque logo, dos primeiros dias, mostrou o que era, e está na carta de Pero Vaz: aguada no caminho das Índias e infinitas almas a salvar para Deus. Pouco para os homens, apenas interessados em tráfico. Foi a cobiça estrangeira que moveu a colonização portuguesa. Demarcação por alto, divisão em donatárias, degredo, até o governo geral de Tomé de Souza, meia do do século.

Com ele vieram os Jesuítas, em 1549. Aqui acharam alguns pequenos núcleos de povoação na costa, de Pernambuco a São Vicente. Os indígenas comiam uns aos outros; os reinóis os matavam e escravizavam; uns e outros viviam na poligamia e na promiscuidade. Os próprios clérigos aqui se corrompiam. A causa, dala-ia o Padre Antônio de Sá: “a terra era tão larga e a gente tão solta”!

Jesuita ensinando indios brasileiros

Mas vieram os Jesuítas. Veio com eles a Virtude. Para os colonos, que a esqueciam e repudiavam, passada a Linha. Para os índios, canibais, intemperantes, sensuais, que jamais conheceram freio e reserva. Não só a virtude, porém a justiça ou a equidade entre as duas raças, brancos e negros (como eram chamados por oposição), que uma escravizava a outra, “ferrando” as “peças”, como se foram animais, delas usando e abusando. E a ambas as raças, dominadores e dominados, dominou, por fim, a moral privada e pública dos Jesuítas.

Depois, foram mestres e instruíram. Instruíram filhos de reinóis, os primeiros brasileiros, e instruíam os brasis, pais e filhos, forros e escravos, aprendendo a língua da terra, e pela gramática, a lógica, o latim, passando o humanismo, para chegar à teologia moral e à filosofia.

Educaram costumes, inteligências, sentidos. Aulas, cerimônias religiosas, folguedos, canto, música, autos sagrados e profanos, classes superiores, não desprezando ofícios manuais. Aqui mesmo irmãos eram feitos sacerdotes, e, mais algumas décadas, um Vieira, aluno na Bahia, se fará mestre em Olinda, e, tornando, com o que no Brasil adquiriu, fará maravilha em Portugal.

E se impediam ao gentio de se guerrear, e de se comer, promoviam acordo difícil entre as discórdias contínuas e os ódios enviscerados dos colonos, sempre uns contra os outros: a desunião foi e é o nosso trivial. O Padre Antônio Pires acomodou, a principio, o orgulhoso e turbulento filho do governador D . Duarte da Costa, que chegou a ir pedir perdão, ao bispo velho Sardinha. Conseguiu outro padre, João de Melo, entre os filhos de Duarte Coelho e o tio deles, Jerônimo de Albuquerque, as suas pazes. Quem sabe que tais desavenças sempre fizeram guerras no Brasil, sabe também o preço desse ofício de juízes de paz, que eram o cotidiano dos padres, com a arraia miúda da colônia.

Mas não só a alma. Também o corpo. Os Jesuítas foram edificadores, de casas, igrejas, colégios, até de cidades: em vinte anos, vemos as palhas, que eram a igreja e o colégio da Bahia, serem reconstruídos de taipa e chegarem à pedra e cal, antes da cantaria da presente Catedral, no Terreiro de Jesus; Piratininga saiu de onde era, para se transformar em São Paulo, em torno do Colégio dos Padres que, das alturas de um outeiro, dominava as várzeas do Tietê e do Anhangabaú.

Foram médicos e a medicina ou o remédio; enfermeiros, assistiam aos abandonados, e enterravam os mortos. As epidemias e andaços coloniais eram calamitosas, em raça de corpo-aberto, nova aos contágios civilizados. Há trechos de cartas que fazem horror, descrevendo as pestes de 59 e 63. “Contaminou a mor parte da terra”, e apenas “escassamente deixou viva a quarta parte dela”, diz o cronista Simão de Vasconcelos, desta pestenência de bexigas. A tudo, a tratar, a preparar para morrer, a ajudar na morte, a enterrar, corriam os padres.

E não só contra doenças e andaços, contra fome e míngua, “porque esta pobre gente é tão miserável e coitada”, diz o Padre Baltazar Fernandes, “que espera lhe demos do nosso”, que não tinham muitas vezes, pois, no princípio, viviam de esmolas. Vinham, talvez, “a tanta miséria, esse gentio, que, de fracos e magros, morriam por esses matos.” “Acontecia, diz ainda o Padre Leonardo Vale, de lançar-se um para beber água e ficar ali, sem mais se poder levantar, e assim morrer.” “A causa desta pobreza”, disse o Padre Jorge Rodrigues, “é por a terra em se ser pobre.” Este não era nada enganado consigo, e de nós, como nós todos, e há mais de cinco séculos.

Mas apelavam para os padres, que a tudo acudiam. Eram a “poçanga” da colônia, dizia o gentio, como quem dissesse: a mãezinha, o remédio, a salvação. Os jesuítas foram a nossa Providencia, quando nasceu o Brasil.

Distribuindo pães e ovos - Luis Tristan de Escamilla
Distribuindo pães e ovos (a obra caritativa dos Jesuítas) de Luís Tristán (1624).

Nessas cartas, que são documentos, vê-se de fato o Brasil amanhecer. Quando elas acabam, neste volume, apenas com durarem perto de vinte anos, já vai alto o sol. Não se come mais carne humana; cada um tem sua mulher, a sua família; aprende-se a ler e escrever; aprendem-se ofícios. As palhoças são agora casas de taipa ou de pedra. Estuda-se latim, música, lógica e, até a “Enéada” de Virgílio, um irmão lente lê e comenta em classe. Fortalezas, estradas, engenhos. Há certeza já, sem os franceses, que vingará o Brasil Português.

“As coisas são mais difíceis no começo”, diz o santo Padre Azpilcueta, Navarro e há tanto que prover, “que as letras são o menos necessário”, pois todos vivem, diz o Padre Leonardo Nunes “em grandíssimos pecados ofuscados, assim casados como solteiros e muito mais os sacerdotes”, e reagem na perseguição, porque se lhe defendem as mancebias e adultérios, os roubos e os resgates.

Quanto ao gentio, são tantos, e a terra é tão grande, diz o Padre Afonso Braz, “que se não tivessem contínua guerra e se se não comessem uns aos outros não poderia caber”. Embora larga a terra, “Vendem seus filhos e parentes aos cristãos”, diz o Padre Sá. E não precisam vender, se os tomam, o que é mais fácil. Numa carta do Padre Vale há este quadro, a reter: “Trabalhavam muitos desalmados fartar sua sede e encher-se de peças (são criaturas humanas essas peças…) não perdoando a pagãos nem a cristãos, e com tanta diligência que convinha aos pobres deixar-se morrer em casa sem buscar de comer, nem fazerem suas roças… porque tanto que saíam das abas dos padres e os topavam, logo eram ferrados… “Opõe-se a isso o Padre Luis da Grã -, “grande” é que devera ser chamado, – ”a esse cativeiro injusto, e tal começa a dar o que tinha, tal outro restitui 30 ou 40 peças, antes mesmo de ser acusado. Quando isto constou pelas aldeias, tantos acorreram de diversas partes, em bandos, que “era coisa piedosa ver tanta gente e uns a pedirem filhos, e outros mulheres e parentes e outros maridos e enchia-se o colégio de gente…” e clamor. A nós nos enche de emoção, figurando o quadro.

Esses pobres brasis, tão perseguidos, são entretanto “muito preguiçosos, tais que o que lhes é necessário para seu mantimento, por esta causa o deixam de buscar”, diz a Carta Quadrimestre de Abril de 57. E acrescenta o Padre Antônio Blasquez: “suas camas são umas redes podres com a urina, porque são tão preguiçosos, que ao que demanda a natureza se não querem levantar”. Tirando-lhes, porém, “as matanças e o comerem carne humana e tirando-lhes os feiticeiros e fazendo-os viverem com uma só mulher, tudo o mais é neles mui venial”. “Os filhos se ensinam com muita diligência e bons costumes a ler e escrever, diz uma carta de 58, e alguns deles são mui hábeis”. E assegura que, os que anos passados se ocupavam em matar e beber e comer carne humana, plantam agora algodão, fiam-no, tecem-no e o vestem. A sua riqueza de penas e búzios serve agora apenas para os folguedos, as folias, exibições cênicas, que são antecipação do nosso carnaval. A moeda aparece, e com ela o bom Padre Braz Lourenço, em Porto Seguro, faz pagar multas, por um juramento em vão. Um real, alguns réis. Pena já sensível a brasileiros. O pitoresco, é outro Padre que o diz, se lhes escapava uma praga, um jurão, olhavam para trás, menos temerosos de Deus, do que de alguém, que o contasse aos padres. O jesuíta é o sensório comum da colônia, o centro espiritual da terra, a alma da gente, de onde partia, e onde tudo ia ter.

Padre José de Anchieta de Benedito Calixto, 1893
Padre José de Anchieta de Benedito Calixto (1893).

E escassos, contados, esses jesuítas, para a obra imensa. Daqui, cada carta é um reclamo, uma súplica, que venham, que venham outros, de Coimbra, de Évora, de Lisboa. De lá cuidavam, diz o Padre Rui Pereira, “que vir ao Brasil era perder tempo”. A Índia é que era. Aonde os hereges endurecidos, a confundir? “Não são necessárias cá as vossas letras, porque não há cá questões que disputar nem duvidas sobre a Fé”, diz o Padre Antônio Pires. Andavam descalços, ou calçavam alpargatas feitas com cardos e gravatas; moravam em palhas e dormiam em redes; “tiveram, diz o Padre Blasquez, grandíssimos trabalhos e sofreram muita fome, muita nudez, muito frio e muitas contrariedades”. Nem para celebrar tinham paramentos; as pobres igrejas estavam à míngua, como seus sacerdotes e catecúmenos, às vezes nem pão nem vinho para as missas. Vieira viria dizer, de todos, ainda no outro século: “largados de Deus e do mundo”.

Não teriam quem os servisse: serviam-se a si mesmos. O irmão Diogo Jacome fez-se carpinteiro e torneiro; o irmão Mateus Nogueira foi ferreiro e fazia anzóis; às vezes, diz o Padre Sá “somos carreiros e íamos à mata carregar os carros, outras vezes somos cavouqueiros com a gente que tira pedra”. O Padre Afonso Braz foi mestre de obra e juntamente obreiro, assim de taipas, como de carpintaria, diz o cronista Vasconcelos: com isso ajudou a levantar-se o Colégio de S. Paulo. “Tantos são os ofícios que aprendi nesta terra, diz o Padre Antônio Pires, que, deles, “poderia já viver”.

Mas o essencial era a salvação das almas, e por isso tudo sofriam. Apesar do escrúpulo de serem logo batizados pois que podiam tornar à barbaria, foram tantos por fim, que só de uma vez o Provincial Luis da Grã, desde a madrugada até a tarde, sem tempo sequer para comer, a oficiar, casar, batizar; tentou ajudá-lo o Bispo D . Pedro Leitão e, por sua vez, quando terminou a faina piedosa às dez da noite tinha “as mãos abertas da água” diz o Padre Vale.

Além dessa inumerável humanidade rude, a natureza, mosquitos, formigas, cobras peçonhentas, águas desatadas, pestenências. Sofriam os colonos, cúpidos, brigões, cruéis, sensuais, dando o eterno mau exemplo ao gentio, inocente, cera virgem onde tudo se podia imprimir, mas nada se imprimia definitivamente. “A virtude da paciência se exercita cá também muito”, diz o Padre Fernandes “(…) o que há de tratar com este gentio há-lhes de sofrer suas coisas, passar seus avessos, sob pena de entornar tudo”. E sofriam, com sofrimento. Tanto, que lendo essas cartas e vendo-os virem do sertão, carregados de convertidos “descalços, cheios de lama, magoados ou feridos dos matos e charnecas por onde atravessavam”, nossa atitude é a mesma do Padre Visitador Azevedo, que, segundo o cronista “se lançava de joelhos e por devoção lhes beijava os pés “…

Tudo isso, que é? Tudo é nada, se Deus ganha almas. O Padre Navarro, morrendo, diz, ao despedir-se dos companheiros: “Eu me aparto desta vida, meus irmãos, e não levo outra coisa atravessada no meu coração senão por não haver convertido a muitos gentios…”

Queria mais, queria tudo, viessem embora a paixão e a cruz.

“Quão pesada”, diz o Padre Blasquez, “tem sido a cruz do Brasil!” Esses cireneus foram dignos da Companhia que escolheram, essa de Jesus: nunca esmoreceram; não lhe faltaram jamais.

***

Compreenderam logo, com os recursos escassos que poderiam vir de Portugal, que aqui deviam abrir as portas às adesões justas e ao indispensável noviciado. A primeira necessidade eram os bons línguas “as boas lingoas”, como diziam, para falarem ao gentio. E os oórfãos que vieram do Reino e aqui se educaram, filhos de remóis que recrutaram, portugueses aqui experimentados, brasileiros, enfim, form aceitos e se prepararam para as Missões. Esses que a Companhia aqui adquiriu são dignos dos outros que ela trouxe. Sempre soube escolher, os mais dignos Os melhores. Em toda a parte, e sempre.

Dois dos primeiros, Pero Corrêa e João de Sousa, afrontam o martírio, entre os Carijós, e caem flechados de joelhos, mãos para o céu, para ressurgirem no hagiológio. Outro, da primeira hora, Domingos Pecorela, tão simples e tão doce que este nome lhe deram, parece ter fugido de um dos “Fioretti”, de São Francisco de Assis. Antônio Rodrigues é um grande missionário, senhor das duas línguas da colônia, com uma sede e uma fome divinas de conversão que inspira pasmo e veneração. Ousado, eloquente, persuasivo, penetrando no sertão, trazendo catecúmenos, “sempre pobre, sempre descalço, sempre alegre”, diz dele um cronista. De Gaspar Lourenço, grande língua, chamado por Blasquez “um Cícero da língua brasílica”, se diz que arrancava aplausos, ainda àqueles que lhe não compreendiam a linguagem. O Espírito Santo não deu aqui apenas o dom das línguas, mas a eloquência pura, a que dispensa as palavras. Adão Gonçalves, homem rico e principal de S. Vicente, herói na conquista do Rio, que vem a Bahia reclamar uma certidão de serviços, para comenda e honras, esquece tudo, para dar-se todo, e até o filho, à Companhia, que não tem senão sacrifícios a dar. E todos que se dão sem contar, Manoel de Chaves, Gonçalo de Oliveira, Leonardo do Vale, Antônio de Sá… Fora mister repetir a lista… Quando vem em 66 o Padre Visitador Inácio de Azevedo, acha tanto fervor nas almas, que, até ele, entre Roma e Lisboa, não escapa ao incêndio. Reorganiza tudo, segundo as novas ordens e se afervora pelo noviciado. Tornado em 68, não se detém, e logo em 70 ei-lo que vem, com 39 companheiros, para o Brasil, para achar, no caminho, o martírio e a santidade.

Inácio de Azevedo e companheiros mártires
Padre Inácio de Azevedo e seus companheiros mártires.

Não importa. Nada mais os deterá. Mas fiquemos no nosso livro, e no tempo dele. Nesses vinte anos, nesses menos de vinte anos que as cartas relatam, de 50 a 68, de meio livro, em deante, vai-se vendo o prêmio da lida, vai-se vendo nascer e crescer o Brasil. Como disse o Padre Francisco Pires, foi passando, “o tempo de semear com lágrimas” e veio chegando “o tempo de recolher com alegria”. Os índios já não se comem, já têm sua família, uma mulher, uma casa, uma roça; os filhos aprendem e por eles já querem escrever à Rainha, por mulheres piedosas, que lhes façam, pelas filhas, o que pelos filhos fazem os Padres, que ensinam com proveito português, solfa, canto, ofícios. Os reinóis estão em paz, já não receiam franceses; nos colégios de Piratininga, do Rio, da Bahia, de Pernambuco, há lentes que leem aulas de gramática, de lógica, de latim, e até, uma hora de poesia, do 2º livro da “Enéada”, diz o Padre Blasquez… Não é maravilhoso? “Até os sacerdotes desta Capitania, diz o Padre Sá, de Olinda, são muito nossos amigos devotos.
Sem ironia. Tudo portanto.

Nenhum dos livros “coloniais”, nem mesmo os livros de Nóbrega, de Anchieta, de Cardim, trata tão bem “do Brasil” complexivo, – terra e gente juntos, – viventes, vivendo, uma se afazendo a civilização, outra se mudando de reinóis e brasis e até negros da Guiné se mudando em brasileiros, com os nossos defeitos, sim, os nossos defeitos eternos, talvez, mas emfim, nós, – como este, das “Cartas Avulsas”. Para dar impressão sincera que dele recebi, direi que é livro como um “film”, fita rude no princípio – as coisas mais difíceis no começo, do Padre Navarro – mas, demoradamente, e por
fim se aperfeiçoando, subindo, mudando, amanhecendo, aparecendo o sol tudo já iluminado de certeza, o Brasil! Não é uma crônica ou informação, retrato, vista parada, “estática”, como as outras, os outros livros; são cartas, informações, documentos que vêm de pontos diversos, de Pernambuco, dos Ilhéus, de São Vicente, da Bahia, do Espírito Santo, de Porto Seguro, de Piratininga, de vinte e tantos missionários, em quase vinte anos, e criam uma sucessão de fatos e acontecimentos, como uma fita que passa aos nossos olhos e ao nosso coração, o Brasil infante.

Tal comparação, bem moderna, de nosso tempo, pretende a louvor. E carta a carta, cada visita de per se, é uma imagem de santo, de santos, “um registro”, como diz o Povo, dessas imagens de piedade, que eram mais ou menos desconhecidas dele, e por ele, doravante, devem ser queridas e veneradas!

As “Cartas Avulsas” dos Jesuítas servem, pois, ao conhecimento e à gratidão dos brasileiros aos seus primeiros amigos, aos seus primeiros mestres, nossos guias, consolo e remédio, de tanto tempo, nesse áspero, apertado e precário transe da Civilização.

***

A História do Brasil Colonial se faz, de 1549 a 1777, com a colaboração do Governo, da Companhia de Jesus, e do Povo. Esses colaboradores teriam partes desiguais, no decurso do tempo. A principio, o primeiro assistia, assentindo ou determinando; o último, heterogêneo, se misturava, assimilando-se, e se corrigindo: dominavam, pelo conselho, pelo exemplo, pela fé, os Jesuítas. Depois, com a modificação do Povo, que já não era de índios e reinóis, mudados em mamelucos, mestiços, já brasileiros, Governo e Povo passaram a entender-se diretamente, do meio para o fim da História colonial. A Companhia de Jesus criou o Brasil infante.

Estas “Cartas” são o maior documento dessa criação.

AFRÂNIO PEIXOTO.

P. S. Comunica-me o Revmo. Padre Murilo Moutinho, S. J. a seguinte carta que sua bondosa diligência extraiu dos “Monumenta Histórica Societatis Jesu”, Epistolae Mixtae, IV, 103 e se refere a esses primeiros Jesuítas que estudamos e dá o depoimento mesmo de Tomé de Souza, tornado ao Reino:

Carta do Padre Antônio de Quadros ao Padre João de Polanco, Lisboa 17 de março de 1554.

“Rdo. em Cristo Padre. Pax Christi. Os dias passados fui companheiro do Padre Mirão, indo visitar o Governador que veio agora do Brasil, chamado Tomé de Sousa, o qual vinha tão edificado dos Padres e Irmãos que lá estão, que me confundi por ver quão pouco faço por Nosso Senhor. Porque contava muitos trabalhos que tinham e muita míngua do temporal: e isto por quererem eles edificar os próximos e não por lhes faltar, e com isto, dizia, que se haviam com tanta caridade para com o próximo, que ainda que eu algo sabia deles, ou muito, e os havia em muita opinião, todavia ficou mui abaixo o que deles ouvia.

Disse-nos e penso que o dissera a el-Rei, que o Brasil não era senão nossos Padres: que se lá estivessem seria a melhor coisa que el-Rei teria, e se não, que nada teria no Brasil. Claramente nos disse que nós aqui, em comparação com os Irmãos do Brasil éramos ruins e homens, respeito a eles que eram anjos.

Vinha sumamente edificado do Padre Nóbrega da maneira que havia com os próximos. Disse que considerava quantos homens ou mulheres havia no lugar que mal vivessem, e que, sabidos, os repartia entre os Padres e Irmãos e a cada um dava cuidado dos seus, os quais iam cada dia aos exortar que se deixassem dos seus pecados, e se confessassem, até acabar com eles; e se não os tinham persuadidos, volvia, volvia de principio outra vez a falar-lhes, tanto os importunando, até que se convertiam a Nosso Senhor. Disse que coube a um Irmão um homem insigne em pecados, o qual havia sido degradado de Portugal para aquelar partes e é aqui e lá mui conhecido e por sobrenome Barboza, pelo qual o conhecem. A este foi tantas vezes o Irmão e tanto o importunou que o tal não sabia mais que lhe responder, e uma vez vindo de fora já tarde, para comer, achou o Irmão que o esperava e começou a falar-lhe de Nosso Senhor, e ele com a ira com que vinha disse-lhe: “Faríeis melhor de me ir limpar o vaso que está sujo e trazer-me água, que não tenho, que falar disso. Respondeu-lhe o Irmão que de mui boa vontade e logo fez tudo e quando vinha com o vaso limpo o achou chorando, confundido do que dissera e da virtude do Irmão, e pediu-lhe que por amor de Deus o recebesse em sua Companhia para fazer penitência de seus pecados. Perseverou muito tempo em muitas lagrimas, disciplinas e penitência de seus pecados e assim o receberam, e serve aos meninos dos índios que os Padres criam e têm cuidado de trazer o que é mister em um asno que temos. O Governador Tomé de Sousa quando quer muito encarecer a virtude dos Irmãos o muito que faz, diz logo que àquele homem converteram. Ele é conhecido por meio Portugal por terrível e diabólico.

Mandou-me o Padre Mirão que isto escrevesse a V. R. para dar conta ao Padre Inácio. Nós não sabemos aqui de certo se ele é da Companhia, e isto por ser um dos impedimentos essenciais, e lá no Brasil ainda não haver as constituições, para poder avisar o nosso Padre. Encomende-me nas orações e sacrifícios de V. R. Hoje, 17 de março de 1554. De V . R. Servo no Senhor, Antônio de Quadros.”

Depoimento e testemunho.

Jesuítas


Academia Brasileira de Letras (org.). Cartas Jesuíticas II: Cartas Avulsas (1550-1568). Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931, p. 11-20.

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