A Psicologia de Satanás: entendendo o pecado de Lúcifer e suas consequências

Não haveria entre a exaltação do bem inteiramente pessoal sobre qualquer bem verdadeiramente comum e a negação da dignidade humana algum vínculo bem lógico e posto em ação no curso da história? O pecado dos anjos foi praticamente um erro personalista: eles preferiram a dignidade de suas próprias pessoas à dignidade que eles receberiam através da subordinação ao bem que era superior, porém comum em sua própria superioridade. A heresia pelagiana, de acordo com João de São Tomás, pode ser considerada de algum modo semelhante ao pecado dos anjos. É somente de algum modo semelhante, pois enquanto os anjos cometeram um pecado puramente prático, o erro de Pelágio era ao mesmo tempo especulativo. Cremos que o personalismo moderno não é senão uma reflexão da heresia pelagiana, especulativamente ainda mais falha. Ele eleva ao nível de doutrina especulativa um erro que era no princípio somente prático. A escravidão da pessoa em nome do bem comum é como uma vingança diabólica a um só tempo marcante e cruel, um astucioso ataque contra a comunidade de bens que o demônio se recusou submeter. A negação da mais alta dignidade que o homem recebe mediante a subordinação de seu bem puramente pessoal ao bem comum garantiria a negação da dignidade humana.

Não pretendemos afirmar que o erro dos que se dizem hoje personalistas seja mais que especulativo. Que não haja ambiguidade quanto a isso. Sem dúvida nossa insistência poderá ofender aqueles personalistas que identificam essa doutrina com a sua pessoa. Essa é uma responsabilidade bem pessoal. Mas há também a nossa responsabilidade, e julgamos que essa doutrina é perniciosa ao extremo.

(KONINCK, Charles de. De la Primauté du Bien Commun contre les Personalistes. Laval: Editions Fides, 1943.)

I. Comentário. A natureza e as consequências do pecado de Lúcifer.
Todo o pecador ignora Deus, mas o orgulhoso volta as costas para Deus. O pecado de Adão e Eva foi prático (desobedeceram o preceito divino), mas também foi especulativo, pois eles desobedeceram crendo na mentira contada pela serpente. O pecado da serpente, porém, não foi de natureza especulativa (um engano), mas foi de natureza prática (uma atitude, ou melhor, uma recusa, ele disse: não servirei, nom serviam).

Isso significa que o demônio pecou operando sobre premissas a princípio verdadeiras, premissas que foram falsificadas na prática, ou seja, por consequência de sua insistência em considerar aqueles bens menores que ele tinha acima daqueles outros bens maiores que ele só poderia obter mediante o serviço de Deus e do próximo. Cristo diz que ele é o pai da mentira, porque essa sua atitude destruiu até mesmo aquilo que dava fundamento a sua arrogância. Lúcifer não era mentiroso a princípio, mas tornou-se mentiroso em razão de sua atitude. A verdade estava nele, Lúcifer possuía incomparável ciência e virtude, mas elas foram estimadas de forma tal que, concentrando-se nelas, ele ignorou de onde elas vinham e para que fim elas serviam.

Vi se abrindo diante de mim um espaço brilhante e sem fim, sobre o qual flutuava um radioso globo de luz como um sol. Senti que era a Unidade da Trindade. Em minha mente eu chamei-o de UMA VOZ, e o vi produzindo seus efeitos. Abaixo do globo de luz surgiram círculos concêntricos de radiosos coros de espíritos, maravilhosamente luminosos, fortes e belos. Esse segundo mundo de luz flutuava como um sol sob aquele Sol mais elevado. Aqueles coros surgiram daquele Sol mais elevado, como que nascidos de Amor. De repente vi alguns deles pararem, absortos na contemplação de sua própria beleza. Eles se compraziam em si, eles buscavam a beleza mais elevada em si, eles não pensavam senão em si, eles não existiam senão para si. A princípio todos estavam absortos na contemplação de si, mas logo alguns deles repousaram em si mesmos. Nesse instante, vi essa parte dos coros brilhantes despencar, sua beleza converte-se em trevas, enquanto os outros, reunindo-se rapidamente, preencheram os lugares deixados por eles… Então, surgindo por baixo, vi um disco escuro, a futura morada dos espíritos caídos. Vi que tomavam posse dela a contragosto. Era muito menor que a esfera da qual eles tinham caído, e eles pareciam estar bem apertados. Sonhei com a queda dos anjos de minha infância e sempre desde então, dia e noite, eu temia sua influência. Pensava que eles causavam grande dano à terra, pois eles estão sempre a volta dela. É mesmo bom que eles não tenham corpos, de outro modo obscureceriam a luz do sol… Depois que recebi essa garantia, já não pude compadecer-me de Lúcifer, pois vi que ele tinha precipitado a si mesmo por sua vontade livre e pervertida. Não podia sentir a mesma coisa conta Adão. Pelo contrário, sentia grande compaixão dele, pois eu pensava: assim foi ordenado.

(EMMERICH, Anne Catherine. The Complete Visions (English Edition). Kindle: Catholic Book Club, 2014)

Donde o termo soberba ser muito adequado para descrever tal atitude, pois significa uma elevação, nesse caso, uma elevação da estima de si mesmo que persiste até o ponto do desprezo de Deus e do próximo. De fato, ela é uma verdade que se falsifica na prática, porque a força e a virtude estão realmente na criatura, mas não estão nela porque a criatura é sua fonte e fim, como se fossem dela por um direito natural, mas por pura graça, por participação nos bens que o Criador gratuitamente distribui às criaturas em vista do bem comum.

A semelhança com Deus jamais pode servir de base para a negação de nossa dependência d’Ele, ela antes deve ser motivo para fortalecê-la. A criatura em si mesma é nada, como se diz no Veni Sancte Spiritussine tuo numine, nihil est in homine, nihil est innoxium (sem a vossa luz, nada é o homem, nada que seja inocente). Lúcifer é o mais mentiroso e ignorante dos seres justamente por conta de sua descabida apreciação de si mesmo. São Tomás assim explica como o orgulho leva à ignorância da verdade direta e indiretamente:

O conhecimento da verdade é duplo: um deles é puramente especulativo, o outro também é afetivo. Assim o orgulho indiretamente impede o conhecimento especulativo pela remoção de sua causa. Ele não submete seu intelecto nem ao juízo de Deus, nem ao juízo dos homens. Ele também impede o conhecimento afetivo da verdade diretamente, pois a apreciação da própria excelência impede a apreciação da verdade desconhecida.

(Summa Theologiae, II-II, q. 162, art. 3, ad. 1)

Portanto, o que era um erro prático/afetivo converte-se propriamente em cegueira (erro especulativo, ignorância), principalmente porque tal recusa gera a perda dos bens que a criatura possui unicamente por meio de seu Criador; a criatura sem Deus se torna como uma árvore estéril, incapaz de extrair minerais do solo e, sando assim, incapaz de produzir frutos bons. O seu senso de dignidade pessoal não permite que ela busque os dons que lhe permitiram florescer e frutificar; em tal situação, ela vicia sua virtude e já não pode ser causa de edificação para os demais.

O teu olho é a luz do teu corpo. Se o teu olho for simples, todo o teu corpo será luminoso. Mas se o teu olho for mau, todo o teu corpo estará em trevas. Se pois a luz que em ti há são trevas, quão grandes não serão essas mesmas trevas!

(Mateus 6, 22s)

No caso dos homens, que não possuem a ciência infusa dos anjos, pode acontecer que evitem a Deus por ignorância ou fraqueza, mas aqueles que pecam por orgulho cometem um grande crime. Com efeito, toda a ciência que o homem possui vem de fora, ele a recebe pela instrução. A linguagem mesma é um dom que não vem dele mesmo, a linguagem é sempre aprendida, nenhum homem aprendeu a falar sozinho. Tudo é graça, tudo é dom. Como é que alguém que pouco sabe sobre si mesmo deseja ter a presunção de saber mais do que seu Criador? Que virtude tem ele que faltam aos santos servos de Deus? Por que essa arrogância? O homem é um instrumento de Deus, nobre mais sempre necessitado d’Ele, se ele se recusa sê-lo, ele será o companheiro das trevas, privado dos copiosos bens que só podem ser logrados pela humildade.

Seguem outras definições de orgulho e algumas elucidações mencionadas por São Tomás:

O orgulho é o amor de sua própria excelência.

(Próspero, Liber Sententiarum, sent. 294)

Um homem é dito orgulhoso quando ele deseja parecer maior do que ele realmente é.

(São Isidoro, Etym. X)

O mal da alma se opõe à razão.

(Dionísio, Div. Nom. IV, 4)

A razão tem a medida para as coisas que o homem tem um apetite natural, de modo que se o homem se desvia da regra da razão, ele pecará por excesso ou por falta, como acontece com o apetite por comida que o homem deseja naturalmente. No caso do orgulho, a tendência natural e boa de estimar a si e os bens que se possuem desvia-se da regra da razão pelo excesso.

(Paráfrase de São Tomás, Summa Theologiae, II-II, q. 162, a. 1, ad. 2)

O desejo desordenado por exaltação… O orgulho imita Deus desordenadamente, pois deseja ter igualdade com ele, e deseja usurpar o seu domínio sobre seus semelhantes.

(Paráfrase de Santo Agostinho, De Civ. Dei XIV, 13)

O orgulho pode se opor por excesso tanto à magnanimidade quanto à humildade, quanto à humildade enquanto despreza sujeições, à magnanimidade enquanto tende a grandes coisas desordenadamente. Porém, posto que o orgulho implica certa elevação, ele se opõe mais diretamente à humildade.

(Paráfrase de São Tomás, Summa Theologiae II-II, q. 162, a. 1, ad. 3)

O orgulho não fica de nenhum modo satisfeito com a destruição de uma virtude; ele se levanta contra todos os poderes da alma, ele é como uma doença que se prolifera e envenena corrompendo todo o corpo.

(São Gregório, Moral. XXXIV, 23)

Sem orgulho nenhum pecado [mortal] jamais foi, é ou será possível.

(Próspero, De Vita Contempl. III, 2)

O orgulho é a queda de todas as virtudes.

(São Isidoro, Etym. [De Summo Bono II, 38)

Esse caráter genérico do orgulho se deve a sua influência sobre os outros pecados, essa influência acontece diretamente quando ele dirige todas as ações para o fim desordenado da excelência de si mesmo e indiretamente por remover o obstáculo que impede a desobediência aos mandamentos divinos.

(Paráfrase de São Tomás, Summa Theologiae, II-II, q. 162, a. 2, )

Nem sempre se peca por orgulho, às vezes se desobedece um mandamento por ignorância, às vezes por fraqueza.

(Paráfrase de São Tomás, Summa Theologiae, II-II, q. 162, a. 2, co.)

Uma vez descoberto pela razão, o orgulho é facilmente evitado pela consideração de nossa pequenez e pela consideração da grandeza de Deus, assim como pela imperfeição dos bens de que o homem se orgulha.

(Paráfrase de São Tomás, Summa Theologiae, q. 162, art. 5, ad. 1)

Maria com o menino Jesus.jpg

II. Comentário. Ou a Virgem, ou a Serpente.
Eis o pecado do século. Esse é o pecado da religião privada, esse é o pecado do egoísmo fundamental e imperdoável: a luz do Evangelho não brilha diante dos homens, a lâmpada do testemunho da verdade e das boas obras foi escondida debaixo do alqueire. Tem-se Deus consigo, mas não se fala mais sobre Deus, nem se dá provas cabais de seu amor a Ele perante os homens… então eis que pouco a pouco perder-se-á até mesmo o que se tem.

A maior parte das pessoas neste século será acusada e condenada por ter cometido esse pecado. Não damos testemunho da verdade conhecida e dos dons recebidos, não distribuímos todas as coisas boas que temos recebido de Deus. Ganhamos muito, melhoramos muito, aprendemos muito, mas damos pouco, ensinamos menos e edificamos nada. Sim, em vez de imitar o exemplo da Santíssima Virgem, que traduziu a Graça recebida em palavras de louvor e atos de caridade, elevando hinos a Deus e servindo a Santa Isabel, seguimos o exemplo do diabo que, tendo tudo, não serve a ninguém. Criamos explicações bastante engenhosas e coerentes para não servi-Lo, assim como o diabo fez. Certamente o demônio tinha argumentos bem melhores do que os nossos, mas eles não o livraram da Queda. Tudo mais que justificado para nós então! Passaremos a eternidade junto daquele que foi o nosso modelo e nosso mestre!


EMMERICH, Anne Catherine. The Complete Visions (English Edition). Kindle: Catholic Book Club, 2014.

KONINCK, Charles de. De la Primauté du Bien Commun contre les Personalistes. Laval: Editions Fides, 1943.

TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologie, II-II, q. 162. Disponível em: <http://www.newadvent.org/summa/3162.htm>. Acesso em: 20 jun. 2017.

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