Apologia pro Sancto Liberio: Michael Davies Desmascarado

No Catecismo Católico da Crise na Igreja do Padre Mathias Gaudron (FSSPX), ensina-se que o Papa São Libério subscreveu a fórmula ambígua de Sirmio e excomungou Santo Atanásio. Ambas informações se fundam em uma edição modernista do Denzinger (a mesma que OMITE os parágrafos da Quanta Cura referentes à Liberdade Religiosa). Nessa edição modernista, incluem-se cartas espúrias atribuídas a São Libério. Porém, nas edições anteriores ao Vaticano II, longe de encontrarmos o Libério covarde e débil que os modernistas querem nos vender, achamos, em letras bem legíveis, o grande “S. LIBERIUS”, ou seja, temos ante os olhos o reconhecimento póstumo e público da ortodoxia deste santo confessor da fé católica.

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Denzinger pré-Vaticano II: S. LIBERIUS (sem o acréscimo de cartas obviamente espúrias).
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Denzinger pós-Vaticano II: apenas LIBERIUS (com o acréscimo de toda e qualquer carta forjada contra Libério, mas sem o acréscimo das cartas autênticas que dão testemunho de sua incólume ortodoxia).

Antes de partir para as provas da incólume ortodoxia do Papa São Libério, vejamos como o Padre Mathias Gaudron expõe as suas acusções contra o Papa Libério:

ENCONTRAM-SE, NA HISTÓRIA, EXEMPLOS ANÁLOGOS DE DEFICIÊNCIAS DE PAPAS?

[…]

Como o Papa Libério apoiou o erro?
O Papa Libério (352-366) sucumbiu à pressão dos arianos, que negavam a Divindade de Cristo. Excomungou, em 357, o Bispo Atanásio, o valente defensor da Doutrina Católica, e subscreveu uma profissão de Fé ambígua (2). A Igreja honra hoje Atanásio como um santo, e não o Papa Libério.

2 – Carta Studens paci dirigida pelo Papa Libério aos Bispos do Oriente na primavera de 357: “[…] Esta carta que compus com a preocupação da unanimidade convosco, deve vos fazer saber que estou em paz om todos vós e com todos os Bispos da Igreja Católica, mas o dito Atanásio está excluído da comunhão comigo, isto é, da comunhão com a Igreja Romana, e da troca de cartas eclesiásticas” (DS138). O Papa Libério confirma essa excomunhão de Santo Atanásio nas cartas Pro deifico (DS141), Qui scio (DS142) [mesmo caso de Pro deifico] e Non doceo (DS143) [“me retirei da discussão acerca de Atanásio”].

[…]

Qual lição se pode tirar desses três exemplos?

Por esses exemplos, e em particular pelo de Santo Atanásio, vê-se que pode acontecer de um único bispo ter razão contra o Papa.

(GAUDRON, Padre Mathias. Catecismo Católico da Crise na Igreja. Tradução de Leandro Calabrese. Niterói: Permanência, 2011, pp. 48-49.)

Em suma, as acusações são as seguintes:

1 – Excomunhão de Santo Atanásio;
2 – Subscrição de fórmula ambígua.

Ambas são totalmente refutadas por John Daly no décimo capítulo de sua obra sobre Michael Davies; este último, aliás, é um dos principais proponentes deste mito vergonhoso, no qual se baseiam não poucos “apologistas” (leia-se: semimodernistas) de nosso tempo.

A ALEGADA QUEDA DE LIBÉRIO E SUA ALEGADA EXCOMUNHÃO DE ATANÁSIO

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John Daly desmascara Michael Davies

“Não te glories na contumélia de teu pai, porque não é glória para ti a sua confusão.” (Eclesiástico 3,12)
1. OS COMENTÁRIOS DE DAVIES SOBRE LIBÉRIO
Todas as passagens seguintes retiradas dos escritos de Michael Davies se referem ao mesmo assunto. Todas dizem muito a mesma coisa. Em realidade, alguns autores as acharão demasiadamente repetitivas. Meu objetivo ao reproduzir esta larga medida de passagens quase idênticas é justamente de enfatizar a inacreditável frequência com que Davies recorre à alegada queda de Papa Libério em heresia e sua alegada excomunhão de Santo Atanásio. Porém, esta larga série unicamente representa uma pequena mera amostra, colhidas a esmo, de um número muito maior, pois Davies nunca perde a oportunidade de introduzir essas alegações na mente de seus leitores.
(i) – Pope John’s Council, p. xiv:
“Atanásio se posicionou não tanto contra o mundo, ‘contra mundum’, quanto contra os bispos do mundo – a ponto de ter sua excomunhão confirmada pelo Papa Libério -, todavia, sucedeu que o Papa se retratou e arrependeu-se posteriormente.”
(ii) Pope John’s Council, p. 174:
“Quem quer que baseie sua defesa da fé no axioma de que o que o papa decidir está decidido, será achado em uma posição irremediavelmente indefensável, uma vez que comece a estudar a história do papado. Eles teriam de manter que Santo Atanário foi ortodoxo até que o Papa Libério confirmou sua excomunhão; que a excomunhão tornou suas ideias não ortodoxas e que tornaram-se ortodoxas de novo, quando o papa se retratou.”
(iii) Pope Paul’s New Mass, p. 280:
“Esta Instrução [a Instrução Geral do Missal Romano, decreto de Paulo VI estabelecendo o Novus Ordo no lugar da Missa] deve certamente entrar para o número dos mais deploráveis documentos já aprovados pelo Supremo Pontífice, não excluindo os exemplos dos Papas Libério, Virgílio e Honório I.”
(iv) Apologia Pro Marcel Lefebvre, Vol. I, p. 118:
“Há, de fato, um paralelo impressionante entre Arcebispo Lefebvre e Santo Atanásio. O Papa Libério assinou uma das formas ambíguas do Sirmio, a qual comprometia seriamente a fé tradicional, e confirmou a excomunhão de Santo Atanásio. É bem verdade que Libério agiu sob pressão e que mais tarde se arrependeu – mas é igualmente verdade que foi Atanásio quem guardou a fé e foi canonizado.”
(v) Apologia Pro Marcel Lefebvre (tradução DOMINUS EST), p. 369-371:
Em 17 de maio de 352 Libério foi consagrado Papa. Ele imediatamente se viu envolvido na disputa ariana:
Ele apelou a Constâncio para que fosse justo com Atanásio. A resposta imperial veio na convocação dos bispos da Gália para um concílio em Arles em 353-354, onde, sob ameaça de exílio, os bispos concordaram em condenar Atanásio. Rendeu-se até mesmo o núncio apostólico de Libério. Quando o Papa pressionou para que o concílio tivesse mais representantes, Constâncio reuniu-os em Milão em 355. Houve, na ocasião, ameaças violentas de um grupo de pessoas e a intimidação pessoal do Imperador: “Minha vontade é a lei canônica”, exclamava. À exceção de três bispos, o Imperador prevaleceu sobre todos os demais. Atanásio foi condenado uma vez mais e os arianos admitidos à comunhão. Novamente os núncios do papa renderam-se e o próprio Libério recebeu ordens para assinar. Quando recusou assinar e mesmo aceitar as ofertas do Imperador, ele foi preso e carregado para longe da presença imperial; ao manter-se firme em prol da reabilitação de Atanásio, o Papa foi exilado para a Trácia em 355, onde ficou por dois anos. Enquanto isso, um diácono Romano, Félix, foi introduzido na sé petrina. O povo recusou-se a reconhecer o antipapa imperial. O próprio Atanásio teve de se esconder e seu rebanho foi abandonado à perseguição pelo intruso de tendências arianas. Quando visitou Roma em 357, Constâncio foi assediado por pedidos clamorosos pela restauração de Libério. Por outro lado, bispos subservientes que rodeavam a corte em Sirmio assinaram fórmulas doutrinais mais ou menos ambíguas ou heterodoxas. Em 358, uma fórmula composta por Basílio de Ancira, declarando que o Filho era de substância parecida com a do Pai, homoiousion, foi oficialmente imposta.[10]
A oposição ao antipapa Félix tornou urgente a necessidade de Constâncio restaurar Libério à sua sé. Contudo, era igualmente urgente que o Papa condenasse Atanásio. O Imperador usou uma combinação de ameaças e lisonjas para atingir seu objetivo. Seguiu-se então a trágica queda de Libério. Ela foi descrita implacavelmente em Lives of Saints de Alban Butler:
Nessa época, Libério começou desmoronar por conta das dificuldades do seu exílio, e sua resolução foi abalada pelas contínuas solicitações de Demófilo, o bispo ariano de Bereia, e de Fortunaciano, o contemporizador bispo da Aquileia. Estava ele tão mais amolecido por lisonjas e alvitres (que deveriam, na verdade, fazê-lo tampar seus ouvidos de horror) que ele rendeu-se, para grande escândalo da Igreja, à armadilha feita para ele. Ele subscreveu a condenação de Santo Atanásio e uma confissão ou credo concebido pelos arianos em Sirmio, embora a heresia ariana não estivesse lá expressa; e ele escreveu aos bispos arianos do Oriente dizendo que havia recebido a verdadeira fé católica que muitos bispos haviam aprovado em Sirmio. A queda de um prelado tão grande e tão ilustre confessor é um terrível exemplo da fraqueza humana que ninguém pode lembrar-se sem se estremecer todo. São Pedro caiu pela presunçosa confiança em sua própria força e resolução, de maneira que devemos aprender que todo mundo só se mantém pela humildade.[11]*
De acordo com A Catholic Dictionary of Theology (1971), “Essa excomunhão injusta [de Santo Atanásio] foi uma falta moral e não doutrinal”[12]. Assinar um dos “credos” de Sirmio era muito mais sério (há controvérsias sobre qual deles Libério assinou, sendo mais provável o primeiro). A New Catholic Encyclopedia (1967) descreve o credo [de Sirmio] como “um documento repreensível do ponto de vista da fé”[13]. Alguns apologistas católicos tentaram provar que Libério nem confirmou a excomunhão de Atanásio e nem subscreveu uma das fórmulas de Sirmio. Contudo, o Cardeal Newman não tem dúvidas que a queda de Libério é um fato histórico[14]. Da mesma maneira dá-se com as duas obras modernas de referência supracitadas e com o celebrado Catholic Dictionary editado por Addis e Arnold. Esta última obra citada mostra que há “uma unidade de evidências entre quatro elementos que dificilmente pode ser desfeita”, isto é, os testemunhos de Santo Atanásio, Santo Hilário, Sozomeno e São Jerônimo. Também se observa na obra que “todas as abordagens são ao mesmo tempo independentes e coerentes entre si”[15].
A New Catholic Encyclopedia conclui que:
Tudo aponta para o fato de que ele [Libério] aceitou a primeira fórmula de Sirmio de 351 […], [a fórmula] falha gravemente ao evitar deliberadamente o uso de uma expressão mais característica da fé nicena e, em particular, do termo homoousion. Assim, se por um lado não se pode dizer que Libério ensinou uma falsa doutrina, parece necessário admitir que, através do medo e da fraqueza, ele não foi totalmente fiel à verdade.[16]
É muito disparatado quando os polemistas protestantes citam o caso de Libério como argumento contra a infalibilidade papal. A excomunhão de Atanásio (ou de qualquer outro) não é um ato que envolve a infalibilidade, e a fórmula assinada não continha nada diretamente herético; Tampouco tratava-se de um pronunciamento ex cathedra com intenção de vincular toda a Igreja; e se fosse, o fato de Libério ter agido sob coação tornaria o ato nulo e vazio.
[*Nota: Esta citação de Davies foi tomada com aprovação do The Lives of the Saints de Padre Alban Butler, Vol. II, p. 10. A obra do Padre Butler é a melhor do seu gênero em inglês – desde que as revisões de Thurston e Attwater e, mais recentemente, Walsh, sejam evitadas – ela é certamente digna da mais alta recomendação. Mas por erudito que seja Padre Butler, ele às vezes realmente cai em erros que não podem ser facilmente escusadas. Tal, ao menos, é a visão de Dom Guéranger em sua Life of St. Cecilia, na qual ele é forçado a dissentir com Butler em um número de pontos. Os escritos franceses de Padre Darras e Arcebispo Darboy acerca de São Dionísio, o Areopagita, mostram que Padre Butler também errou com respeito a este grande santo e apóstolo da Gália.]
(iv) Artigo de novembro de 1985 publicado na revista Angelus, entusiasticamente intitulado “God Bless Archbishop Lefebvre!”
“No quarto século, o Papa Libério mostrou lamentável fraqueza em face da heresia ariana. Ele assinou uma fórmula ambígua, semi-ariana e excomungou Santo Atanásio, o defensor da divindade de Nosso Senhor… Libério foi o primeiro Romano Pontífice a não ser canonizado enquanto Santo Atanásio foi elevado à glória dos altares.”
(vii) The Divine Constitution and Indefectibility of the Catholic Church, suplemento para o N. 93 do periódico Approaches:
“Durante a heresia ariana o débil Papa Libério capitulou sob pressão, assinou uma fórmula de ortodoxia duvidosa e excomungou o heroico Atanásio. Mas em nenhum momento Atanásio afirmou que Libério tinha deixado de ser Papa ou que a hierarquia tinha deixado de existir, muito embora a maioria dos bispos tinham ou caído na heresia ariana ou a toleraram por covardia.”
(viii) Também do The Divine Constitution and Indefectibility of the Catholic Church, suplemento para o N. 93 do periódico Approaches, p. 35:
“Nos dias da perseguição ariana, quando Santo Atanásio foi um foragido excomungado pelo Papa, quem poderia imaginar que se aproximava o dia em que os verdadeiros católicos, que haviam sido forçados a assistir a Missa fora de suas paróquias, seriam capazes de retornar a elas triunfantes?”
(ix) Archbishop Lefebvre – The Truth, p. 32:
“… é claro que não houve crise comparável a esta desde a heresia ariana; durante a qual, Santo Atanásio, que se pôs quase sozinho em defesa da fé tradicional, sofreu a angústia de ter a sua excomunhão confirmada pelo Papa Libério. Mas foi o Papa que se retratou, e Atanásio que foi eventualmente canonizado.”
(x) E finalmente, The Goldfish Bowl: The Church since Vatican II, p. 4:
“No século quarto, Papa Libério mostrou lamentável fraqueza em face da heresia ariana. Ele assinou uma fórmula ambígua, semi-ariana e excomungou Santo Atanásio, defensor da divindade de Nosso Senhor… Libério foi o primeiro Romano Pontífice a não ser canonizado, ao passo que Atanásio foi elevado à glória dos altares.”
O inevitável tédio envolvido nessas respectivas citações poderia ter sido pior, pois os leitores foram poupados de mais citações retiradas do artigo de Davies chamado “Arianismo”, da edição de janeiro de 1987 da revista The Angelus, e mais outras numerosas fontes, onde todos os pontos presentes nas passagens acima são repetidos de novo e pormenorizadamente. Mas isso basta. Chegou o tempo de embarcar em mais uma última repetição, na qual se fará o resumo das conclusões que qualquer leitor não pode evitar ao deparar-se com as passagens acima.
2. AS CONCLUSÕES INEVITÁVEIS
  1. No tempo da heresia ariana, a maioria dos bispos católicos caíram em erro, deixando Santo Atanásio como quase o único defensor da fé verdadeira.
  2. Num primeiro momento, embora inadequadamente, Santo Atanásio foi defendido pelo Papa Libério, que pôs-se ao seu lado contra o imperador Constâncio, de tendência ariana.
  3. Posteriormente, porém, o Papa Libério, tendo sido subjugado por ameaças e exílio, capitulou e ao menos implicitamente negou a Fé:
    1. assinando uma fórmula desenhada em favor da heresia e
    2. excomungando Santo Atanásio.
  4. Desde então, houve certa disputa acadêmica em torno de qual dos documentos Libério teria assinado, mas uma coisa é certa: todo estudioso sério, guiado pelo Cardeal Newman, concordaram e concordam que a assinatura de um documento heterodoxo e a excomunhão de Santo Atanásio são acontecimentos historicamente certos, embora hajam argumentos em contrário que foram propostos por não muito célebres apologistas do papado, cujo zelo excedia sua erudição.
  5. Apesar de sua queda, ou quase queda, em heresia, Libério continuou sendo reconhecido como um verdadeiro papa e eventualmente se retratou de seus erros, revogando o decreto de excomunhão contra Santo Atanásio (Davies, de fato, refere-se a dita retratação por três vezes).
Eis, resumidamente, as conclusões que são impostas ao leitor das passagens compostas por Michael Davies sobre o Papa Libério – a menos, a menos, a menos que o leitor tenha aprendido pela bruta experiência a ser um pouco mais desconfiado a respeito da erudição de Davies. Pois, assim como em outras matérias, o leitor desconfiado, que chega ao ponto de submeter as afirmações de Davies a verificação independente, será premiado com a descoberta de que a verdade é bem diferente dessa representação de Davies.
A história precisa do caso de Libério-Atanásio não é fácil de examinar a fundo. Ela é permeada de armadilhas contra os incautos. Mas não pode haver desculpa para a exposição de matérias duvidosas – ainda menos velhos mitos – como se fossem fatos certos, como Davies frequentemente faz. Nem pode haver qualquer desculpa para o uso de fontes tendenciosas ou ultrapassadas*, ou para a supressão de evidência material.
[Nota: Escritores dos séculos XVI, XVII e XVIII são mais propensos ao erro nessas matérias, devido ao primitivo estado da ciência de crítica textual, o que levou muitos a aceitarem como autênticos documentos que são, como veremos em breve, inegavelmente espúrios.]
Infelizmente, não é possível contra-atacar adequadamente as distorções de Davies e substituir suas interpretações arbitrárias da história pela realidade, senão com uma análise detalhada. Mas o assunto é de longe tão importante para a verdade ficar sem uma justa defesa.
E certamente isto é de grande importância na visão de Michael Davies, razão pela qual ele escreve dela com tamanha frequência. A razão disso aparece mais claramente em seu panfleto intitulado The True Voice of Tradition, publicado pelo Remnant Press como a reimpressão de um artigo de Davies de 30 de abril de 1978. Este panfleto, embora não entre os citados acima, oferece um tratamento ainda mais amplo do mesmo assunto – em realidade, ele gasta não menos que quinze páginas com repetições de suas alegações de que o Papa Libério subscreveu a heresia semi-ariana e excomungou Santo Atanásio. Usando como sua fonte principal a obra The Arians of the Fourth Century de Cardeal Newman, ele primeiro conta a história dessa época, e então usa essa história para fazer um paralelo com a nossa situação de hoje, um paralelo a partir do qual ele pode argumentar que, mesmo se os “papas” do Vaticano II tenham caído em heresia, eles não devem ser rejeitados, assim como Santo Atanásio não rejeitou Libério como um papa válido. Em vez disso, diz ele, todos nós devemos nos consolar pelo fato de que um único bispo, posicionando-se sozinho contra todos os seus irmãos bispos e o papa, pode ser justificado e mesmo canonizado.
O paralelo com o Arcebispo Lefebvre é certamente óbvio.
3. OS FATOS
Agora será mostrado que a versão da história contada por Davies, tanto pelo argumento construído sobre ela, quanto pela verdade mesma, está muito longe da realidade. Primeiro, citarei uma lista com alguns fatos muito claros que são fortemente sugestivos, para dizer o mínimo, de que a história da queda da ortodoxia por parte de Papa Libério não passa de um mito. Feito isso, será possível examinar em mais detalhe a grande massa de evidência que, tomada coletivamente, leva tal conclusão da probabilidade para a certeza.
Os principais fatos são estes:
  1. Papa Libério foi um firme oponente não só dos arianos, mas também dos semi-arianos.
  2. Ele foi enviado ao exílio pelo semi-ariano imperador Constâncio precisamente por causa das tentativas fracassadas deste imperador e seus bispos de influenciá-lo a excomungar Santo Atanásio e aceitar como ortodoxa uma declaração semiariana sobre a doutrina católica acerca da Divindade de Nosso Senhor.*
  3. Constâncio apontou Félix para substituir o ausente Libério na Sé de Roma, mas Félix não foi aceito como papa pelos romanos.
  4. Félix, de fato, não subscreveu o arianismo, mas reconheceu comunhão eclesiástica com os arianizantes, por cuja razão, o historiador-bispo do século quinto, Teodoreto, informa-nos que “nenhum cidadão de Roma entrava na Igreja enquanto ele estivesse dentro.”** (História da Igreja Latina, l. II, c. 17)
  5. O povo de Roma se manteve leal a Libério e protestou ao imperador contra a sua detenção.
  6. Eventualmente os protestos pacíficos deram lugar a motins e, por conseguinte, Constâncio permitiu que Libério retornasse a Roma.
  7. Em seu retorno, foi recebido como um vencedor pela multidão.
  8. Seu reino em Roma continuou por alguns anos mais, durante o qual permaneceu inteiramente ortodoxo, recusou comprometer no mínimo que fosse a doutrina ortodoxa do Concílio de Niceia e esteve em plena comunhão e amizade com Atanásio.
  9. Alguns textos históricos, aparentemente daquele período, asseveram que a razão imediata de seu retorno a Roma foi que ele tinha subscrito uma fórmula semi-ariana. Mas muitos outros favorecem a visão contrária.
  10. O peso da pesquisa subsequente está fortemente em favor da ortodoxia de Libério e os estudiosos católicos em particular – e são eles que estudaram o assunto em mais detalhe e são mais confiáveis – são esmagadoramente da opinião de que Libério jamais caiu, manteve-se fiel durante todo o exílio e sempre esteve em plena comunhão com Santo Ambrósio.
[* Nota: Remanescente da “Declaração Conjunta” de hoje entre a Igreja Conciliar e a Igreja Protestante da Inglaterra e outros corpos heréticos.]
[** Nota: É de se lamentar que hoje tão poucos dos que chamam a si mesmos de católicos reconheçam ser pecaminoso e abominável para aqueles que têm a Fé tomar parte nos cultos e sacramentos de padres e bispos que, mesmo que sejam eles mesmos ortodoxos, no entanto, reconhecem os heterodoxos como os seus irmãos na Igreja. Quem está em comunhão com herege é com certeza um cismático e está fora da Igreja ainda que a sua doutrina mesma seja sã: participar em cerimônias com um tal é proibido pela lei divina (como era reconhecido pelo povo romano dos tempos de Papa Libério) e pela lei eclesiástica contida no Cânon 1258 do Código de 1917.]
4. A EVIDÊNCIA HISTÓRICA SOBRE A EXCOMUNHÃO DE SANTO ATANÁSIO
Comecemos nossa análise da evidência histórica olhando para a asserção, que Davies faz repetidamente e como se não fosse matéria de nenhuma dúvida, de que Papa Libério excomungou Santo Atanásio. Posto que duas obras de Santo Atanásio fornecem a evidência comumente mais usada de que Libério assinou a fórmulas semi-arianas, qualquer um que tenha acabado de chegar ao exame da questão seria obrigado a presumir que Atanásio também forneceria testemunho para o fato de sua própria excomunhão pelo Papa Libério; pois ele se refere a Libério em muitos lugares nos seus escritos, ele o conhecia bem e, como todos sabem, pelo menos pela maior parte do tempo nenhum outro bispo deu-lhe o valente apoio que ele lhe deu.
Mas Santo Atanásio não dá nenhum testemunho de que o Papa Libério o tenha excomungado. De fato, isso não só nem sequer é insinuado nos escritos de Atanásio, mas tal asserção também não é feita em discussões históricas por qualquer outro autor que tenha sido contemporâneo aos eventos. A alegada excomunhão de Santo Atanásio achou seu caminho na historiografia subsequente – puramente em duas cartas atribuídas ao próprio Libério que agora devem ser examinadas.
[* Nota  do T.: Há também mais duas cartas importantes pelo fato de confirmarem o que foi dito na Studens paci (primeira carta mencionada por Daly abaixo): Qui scio (DS142), que reitera o que foi dito na Pro deifico aos heresiarcas da corte e a Non doceo (DS143) que nada fala de excomunhão, mas sim da indizível covardia do suposto Libério: “me retirei da discussão acerca de Atanásio”. Todas elas são cartas forjadas a partir de documentos autênticos. Segundo John Chapman (Enciclopédia Católica, 1913): “A carta ‘Obsecro’ forma o quinto fragmento, e parece ser imediatamente seguida na obra original pelo sexto, que abre com a carta de Libério aos confessores, ‘Quamuis sub imagine’ (mostrando quão firme ele era na defesa da fé), seguida por citações de cartas a um bispo de Espoleto e e a Ósio, onde o papa deplora a queda de Vicente de Arles. Essas cartas são incontestavelmente genuínas. Então se segue no mesmo fragmento um parágrafo que declara que Libério, quando estava exilado, reverteu todas essas promessas e ações, escrevendo aos perversos e prevaricadores arianos as três cartas que completamo fragmento. Essas correspondem às cartas autênticas precedentes, uma a uma: A primeira, ‘Pro deifico timore’, é uma paródia da ‘Obsecro’, a segunda, ‘Quia scio uos’, é uma inversão de tudo o que foi dito na ‘Quamuis’, a terceira ‘Non doceo’, é uma palinódia, difícil de ler, da carta a Ósio. As três são certamente forjadas.“]
A primeira das duas cartas começa com as palavras “Studens paci”, ela é dirigida aos bispos do Império Romano Oriental e nela Libério assevera que mantém comunhão com eles e com a Igreja universal, mas que ele tem excluído Atanásio de sua comunhão. A segunda, “Pro deifico timore”, também é dirigida aos bispos orientais e nela o papa diz que está em comunhão com eles e que tem excluído Atanásio. Ela também diz que ele, Libério, assinou à fórmula de fé [semi-ariana] feita em Sirmio.
Mal é preciso ir muito longe na discussão dessas cartas, porque ambas podem ser dispensadas de uma vez como palpáveis fraudes. Sobre a primeira é o bastante citar o imensamente erudito Canon Bernard Jungmann que, em suas Dissertationes Selectae in Historiam Ecclesiasticam (6ª dissertação, Vol. II, p. 69-70) conta-nos que:
Todos os críticos desde Baronius tem mantido que ela não foi escrita por Libério, mesmo aqueles que mantém as outras cartas como genuínas… É óbvio que a carta é a obra de um forjador.
Sobre a segunda carta, sua autenticidade é mantida unicamente por alguns acadêmicos não católicos que são conhecidos por sua hostilidade à Santa Sé; e o renomado von Hefele e Dom Jon Chapman, por exemplo, tem destruído com a possibilidade de Libério tê-la escrito.
De fato, está claro para qualquer pesquisador honesto que esta segunda carta também deve ser a obra de um forjador inepto. Uma de suas mais óbvias contradições é que nela o suposto Libério admite, aberta e descaradamente, ter abraçado o arianismo e condenado Atanásio, enquanto ao mesmo tempo diz que ele ainda está no exílio – ignorando, em outras palavras, o fato bem-conhecido de que todo o ponto dele ter sido enviado para o exílio pelo imperador foi sua recusa em fazer essas coisas. Não há escapatória para o fato de que esta é uma contradição, porque todos os escritos que defendem que Libério assinou a fórmula herética dizem que ele foi imediatamente e por causa deste mesmo fato autorizado por Constâncio a retornar a Roma.
Assim as únicas duas porções de evidência sobre as quais se sustenta a asserção de que Libério excomungou Santo Atanásio são sem nenhum valor. Por outro lado, do outro lado da escala há os fatos obviamente significativos de que:
(a) nenhum outro escritor contemporâneo refere-se à ela e
(b) O próprio Atanásio, mesmo na passagem onde ele* refere-se a Libério como tendo cedido pelos sofrimentos que padeceu durante seu tempo de exílio, prossegue louvando Libério por ter permanecido fiel em comunhão com ele. (Apologia contra os Arianos – Migne, Patrologia Graeca, Vol. XXV, col. 409)
[* Nota: Se foi realmente Atanásio que o escreveu, consideraremos mais tarde.]
Tal é a base histórica para essa alegação que Davies considera suficientemente provada ao ponto de enfiá-la goela a baixo de seus leitores sempre que houver espaço em seus escritos.
5. EVIDÊNCIA HISTÓRICA DA SUBSCRIÇÃO DA HERESIA POR LIBÉRIO
Distinta desta acusação, há também a alegação-irmã de que o Papa Libério cedeu às pressões do imperador ao ponto de subscrever a heresia semi-ariana. Certamente ele poderia ter feito isso sem ter excomungado Santo Atanásio, mas se ele de facto o fez é o que deve ser considerado agora. E novamente eu começarei estabelecendo alguns fatos sobre os quais todos concordam e dos quais não há dúvida. Esses fatos indiscutíveis são os seguintes:
  1. Papa Libério foi eleito papa, como sucessor do Papa Júlio, no ano 352, dois anos depois de Constâncio ter se tornado o único imperador e começado sua campanha para unir todos os cristãos – ortodoxos, arianos e semi-arianos – em um credo comprometido. O problema deste credo era que ele cuidadosamente excluía a palavra ὁμοούσιος (“homoousios”)* que era a pedra-de-toque da ortodoxia de todas as disputas surgidas da heresia ariana. Significando “consubstancial” ou “de uma substância”, ela tinha sido incluída pelo Concílio de Niceia (325 A.D. na profissão de fé deste concílio sob o fundamento de que ela era uma palavra clara e não ambígua, podendo ser aceita unicamente por aqueles que acreditavam que o Pai e o Filho possuem a mesma natureza divina, sendo esta a verdade que os arianos negavam e os semi-arianos tinham vergonha de usar.
  2. O Papa Libério começou a se posicionar firmemente do lado da ortodoxia. Logo:
    1. Ele recusou a heresia ariana quando afirmada diretamente, isto é, que o filho é de uma “substância diferente da do Pai”.
    2. Ele recusou aceitar o compromisso semi-ariano de que o Filho era de substância semelhante a do Pai.
    3. Ele recusou a aceitar qualquer profissão de fé que não continha a nicena “homoousios”.
    4. Ele manteve a absolvição de Santo Atanásio das acusações de heterodoxia que tinham sido trazidas contra ele perante o seu predecessor, Papa Julio.
    5. Quando os legados que ele enviou ao imperador Constâncio na Gália foram levados a condenar Atanásio, ele escreveu tanto ao bispo Ósio de Cordova e a Santo Eusébio que ele deplorava as ações dos legados e que preferia morrer do que incorrer na imputação de ter assim aderido à injustiça e heterodoxia.
  3. No concílio que o imperador convocou em Milão, sem a aprovação e comparecimento de Libério, todos os bispos ocidentais exceto o papa (aproximadamente trezentos) subscreveram totalmente aos desejos do imperador – a rejeição da comunhão com Santo Atanásio e a adoção de uma fórmula de fé que não incluía a palavra “homoousios”.
  4. Papa Libério escreveu uma carta aos bispos fiéis (no Oriente) em que ele disse: “Fazei menção de mim em vossas orações ao Senhor para que, superando os assaltos,… eu possa ser capaz de me manter firme e que o Senhor possa dignar-se fazer-me vosso igual, com fé inviolável e sem prejuízo para o bem da Igreja Católica.” (Jaffé, n. 216)
  5. Em 353 Papa Libério escreveu ao imperador Constâncio que era impossível para ele condenar Atanásio e se recusava a estar em comunhão com os arianos e aqueles que estivessem em comunhão com eles. E na Apologia contra os Arianos de Santo Atanásio, ele mesmo nos diz que o Papa Libério estava consciente do fato de que várias calúnias estavam sendo espalhadas sobre ele (Atanásio) a fim de trazer sobre ele a condenação que permitiria ao arianismo florescer melhor sem a sua oposição. Essas são suas significativas e inequívocas palavras: “Ele [Papa Libério] sabia do segredo das maquinações que montavam contra nós.” (Migne, Patrologia Graeca, Vol. XXV, col. 409)
  6. Eventualmente, no ano 355, Libério foi capturado e preso em Milão, onde, conforme Teodoreto, ele se recusou a denunciar Atanásio.
  7. No curso deste confronto entre o supremo poder secular – o imperador – e o supremo poder espiritual – o papa – Constâncio repreendeu Libério por ficar do lado de Atanásio contra o mundo – pro Athanasio contra mundum. Donde, ironicamente, a famosa frase “Atanásio contra o mundo”, tão frequentemente usada para indicar que Atanásio não estava sendo apoiado nem mesmo pelo papa, e que de fato muitas vezes se atribui erroneamente ao próprio Atanásio, surgiu realmente num contexto que deixa claro que o papa era a tal pessoa – praticamente a única pessoa – que apoiou Atanásio conta o resto do mundo.
  8. Neste tempo Libério também se recusou a assinar uma fórmula semi-ariana e, como já mencionado antes, foi consequentemente exilado por ordens do imperador, que tentou impor Félix como bispo de Roma no lugar dele. Somos informados por Santo Atanásio e pelo famoso prefácio ao Liber Precum que o exílio de Libério durou dois anos, de modo que o seu retorno deve ter sido no ano de 357.
  9. Não temos qualquer relato de primeira-mão do que aconteceu durante o exílio de Papa Libério na Trácia durante esses anos, mas nós sabemos, graças a São Jerônimo, que foi como um herói que ele foi recebido de volta em Roma pelos cidadãos que tinham clamado pelo seu retorno (São Jerônimo: Chronicon – Migne, Patrologia Latina, Vol. XXVII, col. 501)e também sabemos que sua ortodoxia não esteve sujeita à suspeita deste ponto até a sua morte no ano de 366.
  10. Também sabemos que depois de retornar de seu exílio ele anulou as atas do Concílio Semi-Ariano de Rimini sob o fundamento de que, embora não contivesse positivamente nenhum erro teológico, ele tinha tendenciosamente evitado o uso da crítica palavra “homoousios”. Acerca desta omissão, Libério comentou: “Os ímpios e sacrílegos arianos sucederam em reunir os bispos ocidentais em Rimini [este concílio aconteceu em 359 com a aprovação do imperador Constâncio], com vistas a enganá-los com falsos discursos e forçá-los, por meio da autoridade imperial, a fim de suprimir ou abertamente condenar um termo muto sabiamente inserido na profissão da fé.”
  11. Embora houvesse apenas oitenta bispos arianos dentre os quatrocentos bispos do Império Ocidental que se encontraram em Rimini, os Padres ortodoxos do concílio eventualmente tinham sido enganados pelos hereges aderindo a uma fórmula ortodoxa que excluía a palavra “homoousios” e por causa disso eles também – isto é, mesmo aqueles que tinham permanecido internamento ortodoxos em sua crença – foram intimados por Papa Libério a fazer uma retratação formal de seu erro, se eles desejavam ser reconhecidos pelos católicos. Um pouco mais tarde, o juízo de Libério, que seria confirmado pelo seu sucessor Papa Dámaso, foi publicado em uma carta sinodal por um concílio de noventa bispos. Dámaso insistiu na retração pessoal juntamente com a ortodoxia interna. “Nós cremos”, ele declarou, “aqueles cuja fraqueza os impede de tomar este passo devem ser separados o quanto antes de nossa comunhão e privados da dignidade episcopal de modo que o povo de suas dioceses possam estar livres do erro.”
  12. Um último fato relevante é que no ano 366, pouco antes de sua morte, Papa Libério recebeu uma delegação de semi-arianos guiada por Eustácio, e tratou-lhes assim como se eles fossem plenamente arianos, insistindo que eles adotassem o Credo Niceno antes que eles o recebesse em comunhão.
Claramente, à luz deste último episódio, certas conclusões coagem o investigador mesmo antes dele ter examinado os testemunhos que possam existir em favor do Papa Libério. As mais óbvias que sugiro são as seguintes:
  1. É simplesmente inacreditável que o papa, tivesse ele mesmo caído na heresia ariana, não tivesse se retratado publicamente; e ninguém, mesmo entre seus mais ferrenhos inimigos afirma ter havido uma tal retratação, exceto o próprio Davies.*
  2. É também inacreditável que, tendo ele aceito a heresia semi-ariana, não fizesse em seu comportamento posterior qualquer distinção entre arianos e semi-arianos.
  3. Ainda é mais absurda a noção de que ele subscreveu a heresia ariana, se for considerado o fato que, depois da suposta assinatura, ele promulgou um documento permitindo que bispos que haviam caído no semi-arianismo – o mesmo crime do qual ele próprio é acusado – retornassem para seu ofício se eles fossem especialmente zelosos contra o arianismo, e em tal decreto não fez qualquer menção de si mesmo. Naturalmente, se a acusação contra ele fosse verdadeira, então teria sido necessário fazer menção da sua própria queda e de seu ulterior arrependimento, e alguma indicação de que ele também está se firmando contra os arianos em reparação de sua falta. Nem mesmo a hipocrisia poderia justificar esta omissão se sua queda fosse publicamente conhecida como é alegado por seus oponentes; pois ele não poderia sair com este tipo de tratamento perante aqueles que não pecaram mais do que ele. O decreto seria recebido com clamores de ira e execração que dificilmente não teriam alcançado o nosso tempo.
  4. Além da própria atitude de Libério com respeito ao semi-arianismo depois de seu retorno do exílio, existe plena evidência de fatos que se tornam bastante inexplicáveis se aceitarmos a alegação de que ele caiu no semi-arianismo. Por exemplo, há o fato que não houve qualquer clamor em qualquer tempo ou contexto acerca da queda de Libério, mas houve não pouco clamor com respeito à queda do bispo Ósio, que tinha certamente bem menos importância do que o papa. Por que o mundo se manteve calado quando – ou melhor se – o Papa Libério também tivesse caído? E por que o imperador Constâncio não tentou se aproveitar dessa queda?
[* Nota: Não, errei. Depois de ter composto o primeiro rascunho, deparei-me com nova informação. Existiu, de fato, um único historiador que caiu na mesma egrégia armadilha que Davies, referindo-se a uma “retração” da parte de Libério. O autor em questão é o anti-católico Gibbon em seu Declínio e Queda do Império Romano, Vol. II, p. 345; mas como esta obra entrou para o Índice de Livros Proibidos deve-se presumir que Davies não utilizou Gibbon como fonte e que Davies e Gibbon inventaram o mesmo episódio ficcional independentemente. Logo, enquanto que a minha afirmação de que nenhum historiador concorda com Davies não é estritamente exata, ela não parece ser injusta. Escrevendo ao American Catholic Quarterly Review, 1883, Pe. P.J. Harrold reprovou Gibbon com essa falsificação da história, destacando que “não há em nenhum lugar o registro de uma ‘oportuna retratação’, nem qualquer coisa semelhante na carreira de Libério.” Davies claramente merece esta censura.]
Essas contradições internas nas alegações feitas contra Libério se colocam imediatamente e são o suficiente para render as duas acusações contra Libério – nomeadamente, ter excomungado Santo Atanásio e ter assinado a fórmula semi-ariana – como altamente improváveis. Em outras palavras, a dificuldade de reconciliar os fatos universalmente aceitos sobre Libério com essas duas alegações disputadas contra ele é tão grande que somente a evidência clara e inescapável, vinda de fontes históricas contemporâneas, poderiam nos compelir a admitir a veracidade dessas acusações. Mas como a história registra exemplos ocasionais de quedas por parte de figuras de outro modo veneráveis, coisas que do contrário pareceriam altamente improváveis e até inexplicáveis, não podemos desprezar totalmente essas acusações, mesmo que sejam contra um papa heroico e venerável como Libério, sem considerar a evidência dada pelos historiadores que escreveram perto de sua época. Faremo-lo considerando a evidência fornecida por cada uma dessas fontes históricas, ou seja, examinaremos os historiadores do período e veremos se eles apoiaram as acusações contra Libério que Davies tem tão entusiasticamente repassado aos seus leitores, ou se eles se opõe a ela, seja explicitamente, afirmando sua impecável ortodoxia e inquebrantável comunhão com Atanásio, ou implicitamente, omitindo qualquer menção a esses alegados lapsos de Libério – lapsos tão graves que, caso tenha realmente ocorrido, teria sido impossível que fosse desprezado por qualquer historiador desinteressado.
Começo com o catálogo dos historiadores que favorecem a ortodoxia de Libério.
5.1. TESTEMUNHOS PRÓ-LIBÉRIO
A. O testemunho de Sócrates
O primeiro deles é o historiador eclesiástico Sócraters* (379-c.445 A.D.) que, em sua Historia Ecclesiae, atualizou a história eclesiástica de Eusébio e – o que é relevante para os nossos propósitos – reconta a batalha entre ortodoxia e arianismo. Embora ele não faça menção em seus relatos das acusações contra Libério, das quais ele não parece ter qualquer conhecimento, ele inclui certas informações que tocam nos incidentes envolvidos, as quais são certamente incompatíveis com a versão dos eventos popularizada por historiadores anti-católicos e subscrita por Michael Davies. Examinemos a parte relevante de sua obra:
[Nota.: Que, com certeza, não deve ser confundido com o filósofo ateniense pré-cristão do mesmo nome.]
Mas o imperador [Constâncio]… deu a Ursácio [e Valens] e seus associados plena autoridade para tomar qualquer ação que eles quisessem contra as igrejas. Ele teve a profissão de fé que foi lida em Rimini enviada para as igrejas da Itália, ordenando que quem quer que não a assinasse seria expulso das igrejas e colocaria outros em seu lugar. E o primeiro deles, Libério, bispo da cidade de Roma, quando recusou-se a concordar com aquela fé, foi enviado para o exílio; e o partido de Ursácio pôs em seu lugar Félix, que tinha sido diácono da igreja romana até abraçar a perfídia ariana e este foi elevado ao episcopado – embora alguns digam que ele não aderia à visão ariana e aceitou a ordenação unicamente à força.
Assim, nas regiões ocidentais daquele tempo não havia senão revolução e tumulto, alguns clérigos sendo expulsos e exilados, outros sendo postos em seus lugares. E todas essas coisas aconteceram pela autoridade de éditos imperiais que também foram enviados para o Oriente. Mas não muito depois, Libério foi chamado do exílio e reassumiu a sua sé; o povo romano tinha se revoltado e levado Félix para fora da Igreja de modo que o imperador tinha cedido a contra gosto. O partido de Ursácio, porém, deixou a Itália e, movendo-se para o oriente, instalou-se em uma cidade da Trácea chamada Nike.” (Historia Ecclesiae 2, 37)
[…]
Ora, aqueles que tinham mantido o “homoousios” [i.e. a crença ortodoxa sobre a natureza de Cristo] então foram severamente prejudicados e tinham sido postos em fuga, os perseguidores começaram outra vez seu ataque contra os macedônios, que cedendo mais por medo do que por violência real, enviaram mensageiros para cá e para lá pelas cidades com a mensagem de que deve ser buscado refúgio da parte do irmão do imperador e Libério, bispo da cidade de Roma, e que estes deveriam abraçar à fé deles em vez de se comunicar com Eudóxio. Assim, eles enviaram Eustácio, bispo de Sebastia, que já tinha sido deposto muitas vezes, juntamente com Silvano de Tarso na Sicília e Teófilo, de outra cidade siciliana chamada Castabala, instruindo-os a não discordar com Libério na fé, mas entrar em comunhão com a Igreja Romana e confirmar por um acordo a sua fé [na palavra] ‘consubstancial’. Assim aqueles que tinham se separado de Seleucia [Eudóxio] foram a Roma com suas cartas; e embora eles não tenham sido capazes de encontrar o próprio imperador, como ele se deteve em armas na região da Gália devido a guerra contra os sarmatianos, eles apresentaram suas cartas a Libério.
Libério a princípio recusou-se a admiti-los, dizendo que eles pertenciam ao partido ariano e não poderiam ser recebidos pela Igreja, já que eles tinham abandonado a fé nicena. Mas eles responderam que já tinham há muito se arrependido e reconhecido a verdade e desde então tinham abjurado a doutrina dos arianos e confessado o Filho como sendo em todos os respeitos como o Pai, a palavra ‘como’ sendo, assim como eles entendiam, de nenhum modo diferente da palavra ‘consubstancial’. Quando disseram isso, Libério insistiu em ter uma declaração por escrito do que eles tinham professado e eles então apresentaram um memorando contendo as mesmas palavras da fé de Niceia… Quando os mensageiros se comprometeram com o memorando, Libério os recebeu em comunhão e deu-lhes… cartas e os despediu.” (Historia Ecclesiae 4, 12)
Esses extratos podem ser encontrados na Patrologia Graeca de Migne, Vo. LXVIII, ou no Enchiridion Fontium Historiae Ecclesiasticae Antiquae de Kirch em grego com a versão latina. O que eles mostram é que um autor católico erudito e respeitado, que viveu num tempo onde era capaz de adquirir suas informações de contemporâneos e testemunhas oculares dos eventos que ele estava recontando e que tinha empreendido uma cuidadosa investigação do papel de Libério na batalha da Igreja Católica ortodoxa contra o arianismo favorecido pelo imperador, ou (a) nunca encontrou uma sugestão de que Libério tenha caído, assinado a heresia e excomungado Santo Atanásio, ou (b) dispensou tais sugestões se ele as tivesse encontrado. Eles também mostram que um relato do que aconteceu que não dê senão alto crédito ao Papa Libério é completamente plausível e foi tomado seriamente pelos católicos eruditos da capital do Império Romano.* Sócrates relata a firme recusa de Libério frente até mesmo ao semi-arianismo ou as intimidações do imperador e deixa claro que seu retorno do exílio não constitui evidência de nenhum compromisso com a heresia, pois este foi satisfatoriamente explicado como um resultado da turbulência dos romanos por terem sido privados de seu respeitado bispo.** Finalmente, ele apresenta uma imagem de Libério depois de ter retornado do exílio, onde ele não se comporta como um temporizador, nem mesmo como um penitente arrependido, mas com confiança e firmeza, insistindo mesmo nos mínimos pontos da doutrina ortodoxa, que poderiam pertencer unicamente a um heroico confessor da verdadeira fé.
[* Nota: Sócrates escreveu em Constantinopla, para onde foi movida a sede do governo imperial desde 330 A.D.]
B. O historiador Teodoreto
Outra figura de grande valor em favor da ortodoxia de Libério é o erudito Teodoreto (c. 393-458), de quem a Enciclopédia Católica de 1913 (Vol. IX, p. 222) diz:
Para Teodoreto, Libério é um glorioso atleta da fé, ele nos fala mais dele do que qualquer outro historiador tinha feito, e ele o faz com entusiasmo. É Teodoreto quem preservou para nós os detalhes da inspiradora reunião entre Libério e Constâncio em Milão, a qual se referiu antes; e ele refere tanto às sedições em Roma pela ausência do papa, quanto afirma que foi devido a ela que “o admirável Libério retornou a sua amada cidade”.

Mas a característica do seu tratamento de Libério que é mais digna de nota do ponto de vista da questão que estamos examinado é que, embora o tratamento seja extenso, não há nenhuma referência a qualquer acusação contra Libério, mesmo que seja para refutá-la ou dispensá-la, assim como não havia nos relatos de Sócrates. Para isso só pode haver uma explicação: essa alegação ainda não tinha por aquela época, aproximadamente um século depois que ela alegadamente ocorreu, sido feita ainda, ou, pelo menos, não tinha recebido circulação o bastante para ser tomada seriamente. E nenhuma dessas alternativas, não é difícil notar, seriam possíveis se Libério de fato tivesse caído, pois um evento único e dramático como esse teria sido largamente conhecido em um tempo muito curto e Teodoreto teria sido forçado, se não a aceitar a veracidade das alegações, pelo menos a referi-las. (Historia Ecclesiastica, II, XIV/XVI; Migne Patrologia Græca, Vol. LXXXII, coll. 1033-1040)

 

C. Suplício Severo

 

Outra importante testemunha é Sulpício Severo, pois ele foi um historiador, sua vida se sobrepôs no tempo com aquela do Papa Libério e sua piedade o coloca acima de suspeita de partidarismo ou desonestidade. Sua Historia Sacra foi escrita logo depois do ano 400, e ali, embora ele certamente estavivesse consciente de uma alegação de que Libério tinha caído em heresia (que era atribuída a São Jerônimo, en passagens cujo significado e autenticidade serão examinadas mais tarde), ele também não faz nenhuma menção a qualquer coisa do tipo, que ele tinha obviamente dispensado como sem fundamento.

 

E qual é a razão que ele dá para o retorno de Papa Libério do seu exílio traciano a Roma?

 

“… ob seditiones Romanas – em virtude de sedições em Roma” (Migne: Patrologia Latina, Vol. XX, col. 151; Vol. II, 39).

 

D. Rufino

De grande interesse são as palavras do historiador Rufino. Tornemos nossos olhos para a História Geral da Igreja Católica de J.C. Darras, cuja publicação em meados do século XIX foi saudada por um coro de louvores por parte das autoridades, incluindo uma especial recomendação do Papa Pio IX. Na p. 461, Vol. I, Pe. Darras escreve:

 

Nas palavras de Rufino, escritas cerca de cinquenta anos após este período, vemos talvez as primeiras nuvens negras no horizonte, preparando a tempestade de calúnias que em breve se formaria em torno da cabeça de Libério. [Darras considera a referência obliqua de Rufino como o primeiro indício, pois, como veremos, ele corretamente rejeita as alegações encontradas em algumas edições das obras de Santo Atanásio e São Jerônimo como certamente errôneas e muito provavelmente interpoladas. – J.S.D.] Ele [Rufino] diz: “Libério, bispo de Roma, tinha retornado quando Constâncio ainda estava vivo; mas eu não posso positivamente afirmar se ele retornou por que consentiu em assinar ou se retornou para agradar ao povo romano que, a essa altura, tinha implorado este favor.”. Rufino foi um padre de Aquileia, em sua juventude ele pode ter conhecido Libério, certamente ele conheceu Fortunaciano, bispo de Aquileia, a quem [a responsabilidade pela] queda de Libério é imputada. Ainda assim Rufino não sabe nada sobre isso, indubitavelmente porque a calúnia só estava começando a se espalhar; pois se Libério tivesse realmente assinado uma fórmula ariana, tivesse ele rubricado as dolorosas letras de defecção que lhe atribuem, os arianos, que eram todo-poderosos, não teriam deixado ninguém ignorante deste fato. [Ênfase minha. – J.S.D.] Teria sido impossível para Rufino entreter qualquer dúvida sobre o assunto.” (Darras, História Geral da Igreja, seguindo Rohrbacher: Histoire Universelle de l’Église Catholique, tom. XI, pp. 430-2. O extrato de Rufino é tomado de sua Historia Ecclesiastica, I, 28; Migne: Patrologia Latina, Vol. XX, col. 498.)

 

Isso foi escrito em 402-5 A.D.

 

E. Santo Ambrósio

 

Santo Ambrósio, um dos quatro grandes Doutores Latinos da Igreja, é uma testemunha para a defesa de Papa Libério de obviamente grande peso e valor. Ele o conheceu pessoalmente e se recordava dele como uma pessoa extremamente santa e, longe de fazer referência a qualquer lapso da ortodoxia, refere-se a ele como sendo “de santa memória” e “de venerável memória.” (Migne: Patrologia Latina tom. XVI, coll. 219 et seq.)

 

F. O Menológio

 

A próxima autoridade citada é o Menológio grego – o equivalente oriental dos martirológios da Igreja Ocidental. Embora compilados (por Simeão Metafrastes) no século décimo, a informação que ele contém é mais antiga, sendo baseadas nos registros mais antigos disponíveis dos indivíduos que ele comemora. Considerável luz é lançada sobre Libério pela seguinte breve vida dele:

 

O bem-aventurado Libério, defensor da fé, foi bispo de Roma sob o império de Constâncio. Ardendo de zelo pela fé ortodoxa, ele protegeu o grande Atanásio, perseguido pelos hereges por sua corajosa defesa da verdade e posto para fora de Alexandria. Enquanto Constantino e Constâncio viviam, a fé católica foi apoiada; mas quando Constâncio foi deixado como o único mestre, como ele era ariano, os hereges prevaleceram. Libério, por seu vigor em censurar a impiedade, foi banido para Boroea na Trácia. Mas os romanos, que sempre permaneceram fiéis a ele, foram ao imperador procurar o seu retorno. E assim, graças a isso, ele foi enviado de volta a Roma e lá terminou sua vida, depois de uma santa administração de seu múnus pastoral.

 

Esta passagem é citada por Darras: História Geral da Igreja, Vol. I, p. 462, onde ele referencia Rohrbacher: Histoire Universelle de l’Église Catholique, tom. XI, p. 374. Seria supérfluo assinalar que este relato é inteiramente incompatível com qualquer conhecida deserção do dever da parte de Libério. “Ardendo de zelo pela fé ortodoxa, ele protegeu o grande Atanásio…” Assim é comemorado Libério pelos gregos no seu menológio, que constitui uma obra litúrgica oficial. Um maior contraste ao Libério que Davies apresenta aos seus leitores dificilmente poderia ser imaginado.

 

G. Santo Hilário

 

Santo Hilário, bispo de Poitiers, foi outro contemporâneo de Papa Libério que o conheceu e esteve unido a ele em defesa da verdadeira fé contra o arianismo. Ele é às vezes apontado como uma testemunha da queda de Libério, mas a única passagem dentre suas obras indisputadas aduzida pelos oponentes de Libério em apoio desta acusação não prova nada do tipo, ao passo que, por outro lado, os escritos atribuídos a ele nos quais afirma-se ter Libério caído patentemente não são escritos por ele. Donde resulta que Hilário passa em silêncio a queda de Libério e, portanto, não deve ter sabido nada sobre isso, o que o torna uma importante testemunha indireta em favor de Libério, pois ele certamente teria sabido do evento se ele tivesse qualquer fundamento nos fatos.
Eis aqui as próprias palavras que alguns escritores tem declarado como adequada evidência do acordo de Hilário com o conto da queda de Libério em heresia:

 

Então tu [o imperador Constâncio] trouxeste a tua guerra até Roma, onde tu arrebataste o bispo [Libério] e, infeliz como tu és, não saberia se tua perversidade foi maior ao restabelecê-lo ou ao destitui-lo!” (Contra Constantium, II, 5-8; Migne: Patrologia Latina, Vol. X, 588 et seq..)

 

Evidentemente o autor está indicando que o imperador pode ter sido culpado de perversidade ao restabelecer Libério em Roma, assim como ele foi ao tirá-lo de Roma. Mas, primeiro, Santo Hilário não está certo sobre a matéria – “não saberia…” – e, segundo, a natureza da perversidade em questão não é nenhum pouco aparente. É concebível que um compromisso da parte de Libério poderia servir de explicação para as palavras – embora certamente essa perversidade seria propriamente melhor atribuído a Libério do que a Constâncio – mas incontáveis explicações também são igualmente ou até mais plausíveis do que essa. Por exemplo, se Constâncio, irado por ter de ceder às demandas do povo romano e retornar seu inflexível papa para eles a fim de evitar uma revolução, tivesse maldosamente infligido alguma terrível indignidade sobre Libério na ocasião de seu retorno a Roma, isso explicaria perfeitamente bem as palavras de Hilário. Tal ação seria inteiramente consistente com o caráter de Constâncio, pois intimidadores geralmente se tornam vingativos quando seus planos são frustrados, e isso explicaria muito bem as palavras de Hilário sem a necessidade de supor que Santo Hilário está se referindo à alegada queda de Libério, que já se provou ser improvável no mais alto grau e para qual ele não faz mais nenhuma referência em seus copiosos escritos. A Enciclclopédia Católica (1913) conclui que seria uma acusação gratuita entender as palavras que consideramos como referência à queda de Libério – v. Vol. IX, p. 220.

 

Alguns dos mais virulentos adversários de Libério tiveram a ousadia de atribuir a Santo Hilário certos fragmentos atacando Libério que, pelo estilo de seu latim, sensibilidade de sentimento, dignidade de expressão e caridade não são só indignos de qualquer católico (muito menos de um santo e doutor da Igreja!), mas mesmo de qualquer pagão com qualquer senso de educação ou auto-estima.

 

H. Papa Santo Anastácio I

 

Altamente relevante para compreender a atitude de Santo Hilário perante Libério é o fato de que o Papa Santo. Anastácio I, escrevendo no ano 400, colocou o Papa Libério na mesma categoria que Santo Hilário entre os três mais valentes defensores da fé nos tempos do arianismo, acrescentando que ele (Libério) “teria preferido ser crucificado do que blasfemar Cristo com os arianos.” Veja sua Carta a Venério, bispo de Milão. É digno de nota que esta epístola papal foi considerada como suficientemente definitiva e autoritativa, em sua negação da queda de Libério, para justificar sua inclusão no Enchiridion Symbolorum de Denzinger (§93) – a coleção de “declarações e definições sobre fé e moral” amplamente utilizado por teólogos católicos – e ser introduzido sob o título “Sobre a Ortodoxia do Papa Libério”.

I. Papa São Sirício
Outro papa que escreveu sobre Libério foi o papa São Sirício, que reinou de 384-398 A.D. Ele registra que Libério anulou os decretos do Concilio de Rimini-Seleucia por causa de sua omissão da palavra “homoousios” e menciona que ele ao mesmo tempo proibiu o rebatismo daqueles que tinham sido batizados por arianos. Ele também se refere a ele como sendo “de venerável memória” e, como os outros já citados, não oferece qualquer pista sobre lapso da ortodoxia ou compromisso com a heresia. (Migne: Patrologia Latina, Vol. XIII, col. 1133)
J. Outros santos e historiadores
No ano 432 A.D., São Próspero reeditou uma das poucas fontes históricas que registram a suposta queda de Libério em heresia, a Chronicon (Crônica) de São Jerônimo. Se o doutor latino e grande tradutor da Bíblia Vulgata foi genuinamente responsável por esta referência à queda de Libério – talvez como resultado de seu notável descuido em matérias históricas ou devido a ter sido mal-informado por terceiros – ou se a explicação a um evento em contradição com toda a evidência encontrada na obra de São Jerônimo deva, em vez, ser atribuída a uma corrupção de texto por uma outra mão é uma questão que trataremos brevemente, mas neste estágio deverá ser observado unicamente que São Próspero omitiu sem hesitar do seu texto de São Jerônimo as passagens que sugerem que Libério tenha subscrito a heresia. Ele ao menos, portanto, que estava em uma posição muito melhor para julgar do que qualquer erudito posterior, não tinha qualquer dúvida de que elas era inautênticas.
No sexto século foi composta a Gesta Liberii (Feitos de Libério), um relato histórico dos principais eventos da vida do papa. Seu desconhecido autor latino se detém em considerável detalhe e fornece-nos muitas informações úteis sobre Libério e seus tempos – informações que, embora não corroboradas por quaisquer escritores anteriores, é, contudo, bastante crível, pois ela se encaixa também naquilo que chegou até nós por outras fontes. Logo, seu autor deve ter sido um homem erudito que tinha acesso a copiosas informações sobre Libério – mais informações do que tem disponíveis àqueles que acusam Libério de consentir com a heresia – e ainda assim ele passa em silêncio a alegada queda de Libério. Pelo contrário, ele o elogia como “constantemente fixado na Trindade, pregando o Pai, e o Filho e o Espírito Santo, e louvando o Deus de Deus e a luz da luz, o todo do todo, a inteireza da inteireza, não criado, mas gerado, não do nada, mas do Pai, sendo da mesma substância que o Pai Em outras palavras, o Libério apresentado pelo escritor é “constante” e especialmente notável pela sua devoção a mesma doutrina que ele é dito ter posto de lado e permitido que fosse distorcida, obscurecida ou negligenciada. (v. Migne: Patrologia Latina, Vol. VIII, col. 1390b.)
Também dignos de menção são os grandes São Basílio (329-379), Doutor da Igreja, que se refere à Libério como “ὁ μακαριώτατος ἐπίσκοπος” – “o beatíssimo bispo” – em sua Epístola n. 363 (Migne: Patrologia Græca, Vol. XXXII, col. 980a) e São Epifênio (315-403) que era tão zeloso pela ortodoxia que chegou a suspeitar da São João Crisóstomo de heresia (originismo), mas que não tinha nada senão louvores para dar ao papa que ele refere como “Libério de santa memória” (v. Darras, ibid., pp. 457, 501).
K. Outros tributos à santidade de Libério
Outro fato que Davies não menciona, ainda que para explicá-lo em outro lugar, é que o Papa Libério é honrado como santo no antigo Martirológio Latino. Embora Davies diga repetidamente que Atanásio foi canonizado e Libério não, isso é em realidade bastante falso. Nenhum deles foi formalmente canonizado, pois o processo de canonização ainda não existia no tempo que a Igreja começou a venerá-los (que foi imediatamente depois de suas mortes), mas ambos gozaram do reconhecimento como santos na forma que então existia pela sua inclusão nos martirológios do ocidente e do oriente.
De fato, evidência para apoiar os testemunhos já dados poderiam ser multiplicadas quase indefinidamente, por exemplo, a partir dos historiadores Cassiodoro (490-583) e Teófanes (século IX). Mas depois desses testemunhos conclusivos sobre a santidade e infalível ortodoxia do Papa Libério, o que mais pode ser necessário?

Em vez, procedamos com o exame de algumas fontes primitivas que podem ser aduzidas em favor da alegação de sua subscrição da heresia. Mal precisa ser dito que, mesmo se essas fontes pudessem parecer conclusivas, o testemunho dos autores já citados nos obrigaria a parar e ponderar longamente e nos fazer relutar no mais alto grau em admitir o que elas sugerem. Mas, de fato, tal dilema não assaltará ninguém que examine a evidência com atenção, pois a miserável coleção de referências das quais os oponentes de Libério e inimigos da Santa Sé tentam construir um forte caso contra Libério são logo reconhecidas como provavelmente inautênticas e certamente errôneas – como será demonstrado a seguir.

 

5.2. TESTEMUNHOS ANTI-LIBÉRIO

 

A. Os escritos de Santo Atanásio

 

O mais importante testemunho em favor da tese exposta por Davies segundo a qual Libério subscreveu o semi-arianismo, como todos os oponentes da ortodoxia de Libério reconhecem, é encontrada em duas passagens da obra do próprio Santo Atanásio, as quais eu citarei agora. A primeira se encontra na Apologia contra Arianos, nº 89, 90; Migne: Patrologia Græca, Vol. XXV, col. 409:

 

Mas se esses bispos dignos do nome [‘ἐπίσκοποι οἱ ἀληθώς’] tivessem se oposto unicamente com palavras a esses nossos astutos inimigos, que estavam se esforçando para subverter qualquer esforço em nossa defesa, ou se eles tivessem sido meramente homens comuns e não bispos de tão grandiosas cidades e cabeças de tão grandes igrejas, poderia haver algum fundamento de que eles tomaram o nosso lado em virtude de algum presente ou favor. Mas, visto que eles não só defenderam a minha causa com palavras, mas chegaram mesmo a sofrer exílio e, visto que Libério, bispo de Roma, foi do seu número – pois mesmo que ele não tenha tolerado os sofrimentos do exílio até o fim, no entanto, porque ele estava bem consciente da conspiração movida contra nós, ele se manteve no lugar de exílio por dois anos – e visto que em seu número também está incluído o grande Ósio, juntamente com os bispos de Itália, Gália e outros da Espanha, Egito e todos os bispos da Pentapolis em Líbia – pois embora por um curto tempo, aterrorizado pelas ameaças de Constâncio, ele [Ósio] pareceu não opor-se-lhes, no entanto, o grande poder e tirania de Constâncio, para não mencionar seus asaltos verbais e físicos, deixaram claro que a razão de sua rendição [de Ósio] por um tempo foi não que ele pensasse que nós fossemos culpados, mas que ele era incapaz de suportar o tratamento devido a fraqueza de sua idade – seria de fato justo para todos, uma vez informados da injustiça e injúria feita contra nós, odiar e se afastar dela ainda mais, e especialmente reconhecer o que é o mais evidente: nomeadamente, que sofremos esses males por nenhuma razão senão a perversidade dos arianos. Se alguém, pois, deseja descobrir os verdadeiros fatos sobre nós e a lisonja dos eusebianos, que leia essas coisas que foram escritas em nosso favor e aceite como testemunhas não um, dois ou três, mas uma multidão de bispos. Novamente, que ele tome como testemunhas Libério, Ósio e seus companheiros que, quando descobriram os crimes que estavam sendo cometidos contra nós, preferiram sofrer extremidades do que trair seja a verdade seja o julgamento dado em nosso favor…

Os leitores certamente terão considerado esse excerto, com o seu parêntesislongo e esquisito parêntesis, excessivamente difícil de acompanhar. A razão para isso será referida brevemente.
O segundo parágrafo das obras de Santo Atanásio invocado para provar a capitulação de Libério é tomado de sua Historia Arianorum ad Monachos. Tendo recontado com entusiasmo, dos capítulos 35 ao 40 de sua obra, a corajosa resistência feita por Libério ao imperador Constâncio, ele então, no capítulo 41 (Migne: Patrologia Græca, Vol. XXV, col. 741) escreve o seguinte:
Ora, Libério foi enviado para o exílio e passados dois anos ele estava debilitado, e estando terrificado pelas ameaças de morte, ele assinou.
Em si mesmas, essas passagens parecem apresentar um forte argumento contra Libério, os leitores podem pensar assim neste ponto. Mas tornemos nossos olhos para a famosa e excelente Histoire Universelle de l’Église Catholique de Abbé Rohrbacher (Vol. XI, pp. 431-2), onde o caso contra essas passagens é sucintamente apresentado nos seguintes termos:
Poderia ser objetado que Santo Atanásio se refere duas vezes a queda de Libério tanto na sua Apologia contra Arianos quanto na sua História dos Arianos, esta última dirigida aos eremitas; mas é universalmente aceito que a Apologia contra Arianos foi ecrita pelo menos em 350 A.D., dois anos antes de Libério ter se tornado papa. A passagem que fala de sua queda então é uma adição feita subsequentemente por uma mão estranha e pouco hábil; pois, longe de dar qualquer força para a Apologia, ela somente a torna sem sentido e ridícula. A História dos Arianos também foi escrita em um período anterior a suposta queda de Libério. Essa desfavorável passagem é, pois, mais uma interpolação, igualmente sem conexão com o que a precede e o que a segue. Mas por quem tais interpolações teriam sido feitas? Sabemos que mesmo durante a sua vida os arianos forjaram cartas, em seu nome, para Constâncio. O que eles faziam quando ele ainda estava vivo era ainda mais fácil de executar depois de sua morte. Os donatistas não inventaram uma narrativa semelhante sobre a queda de São Marcelino que foi por muito tempo aceita, mas que agora é reconhecida por todos como falsa? Além do mais, os arianos não eram os únicos inimigos de Libério, os luciferianos estavam igualmente prontos para difamá-lo.
I. A autenticidade da Apologia contra Arianos
Examinemos novamente a passagem citada primeiramente, o excerto da Apologia contra Arianos. Foi por um tempo aceito por todos, pelos caluniadores e defensores do Papa Libério, que esta foi completada ao menos até o ano 352, assim, uma vez que nem a queda de Libério, nem a de Ósio eram supostas sequer ter acontecido antes daquele ano, a passagem que refere a queda não poderia ter tido parte na Apologia. Há somente uma hipótese que poderia negar essa objeção, e alguns acadêmicos anti-Libério, determinados a crer que esta evidência de que o papa caiu é autêntica, fazem recurso a ela: Santo Atanásio atualizou a obra em uma data posterior. Embora não haja rastro de qualquer evidência que apoie esta hipótese conveniente, que não prova em si mesmo que ela é falsa, no caso de tais hipóteses, é realmente difícil provar a negativa. Mas existem, no entanto, um certo número de argumentos que militam contra ela muito fortemente e estes eu ora resumirei:
(i) Dois dos líderes dos bispos arianos heréticos ligados a corte de Constâncio, Valens e Ursácio, tinham se retratado de suas heresias e retornado à Igreja Católica no tempo em que é aceito que a primeira edição da Apologia contra Arianos foi terminada. Ora, embora logo depois disso, eles terem “retornado ao seu vômito” e se tornado arianos mais uma vez, todo o texto da Apologia contra Arianos os representa como sendo ainda católicos. Mas como pode ser assim se a hipótese de que Atanásio atualizou sua obra a fim de fazer especial referência à suposta queda de Libério e factual queda de Ósio estiver correta? Santo Atanásio não teria sido obrigado também a atualizar a sua referência à ortodoxia desses bem-conhecidos bispos? Ele não deveria, nesse caso, ser ainda mais obrigado a fazê-lo? Antes de tudo, Ósio retornou a fé imediatamente depois de sua queda (que ocorreu sobre grande pressão e extrema idade) e mesmo os piores inimigos de Libério são forçados a admitir que ele foi veementemente ortodoxo entre os anos de 358 a 366 quando ele morreu. Nenhum deles, portanto, poderia ter levado os outros ao erro, ao passo que Valens e Ursácio teriam certamente constituído um grande perigo às almas dos leitores de Atanásio que teriam suposto pela autoridade do santo patriarca que eles eram ainda ortodoxos.
(ii) Embora a Apologia contra Arianos de Santo Atanásio fosse frequentemente usada como material pelos historiadores Sócrates e Teodoreto, nenhum deles faz qualquer menção à queda de Libério, mesmo como uma alegação a ser negada, tal omissão sugere que nenhum deles estava consciente que tais alegações tivessem sequer sido feitas. Além disso, Sozomeno também a usou como fonte e embora esse historiador faça referência à queda de Libério, seu relato é bem diferente daquele dado por Santo Atanásio. Se o texto de Atanásio que Sozomeno usou contivesse qualquer referência à queda de Libério, ele teria:
(a) certamente a usado e feito referência a ela como base de suas alegações, e
(b) precisaria explicar a diferença entre seu relato e aquele de Atanásio.
Além disso, a evidência interna também se opõe fortemente a noção de que a passagem citada seja a obra de Atanásio.
(iii) A princípio, a referência à queda de Libério não é nenhum pouco coerente com o contexto que a rodeia e possui todas as características de uma interpolação tardia – pois se ela fosse omitida, longe de parecer que está faltando alguma coisa, o texto ganharia coerência.
(iv) Em cada caso, a referência à queda de Libério é incluída entre parêntesis o que compromete a continuidade de toda a passagem e a torna, como o leitor deve ter notado, tremendamente difícil de acompanhar.
(v) Estiisticamente, toda a passagem citada é extremamente pobre e não se compara com aqueles escritos de Atanásio que são indubitavelmente autênticos. As partículas gregas são usadas confusamente e e o vocabulário parece ser em certos lugares deficiente, nenhuma dessas fraquezas deve ter ocorrido a uma grego nativo que também era um erudito, ambas coisas que o patriarca de Alexandria era.
(vi) E o mais impressionante de tudo, toda a passagem é bastante ilógica. Por exemplo, Atanásio usa o “argumento dos números” – i.e. sua posição deve ser certa, porque um grande número de bispos o apóia. Mas Santo Atanásio seria o último homem a desprezar que a verdade em nada depende ou de modo algum é provada pelo número das pessoas que acreditam nela. Ele sabia muito bem – de fato esse é um dos princípios no qual se baseia a nossa religião católica – que se a verdade dependesse de números, então aqueles que votaram pela crucifixão de Nosso Senhor na Sexta-Feira Santa devem ter feito certamente a escolha certa. Além disso, no ano de 360, que é quando, sob a hipótese de que a passagem foi incluída como uma atualização subsequente feita pelo próprio Atanásio, isso deve ter sido escrito, estava muito longe da verdade dizer que um largo número de bispos o apoiava. Era ainda o tempo em que era tão difícil achar um bispo ortodoxo como o é hoje. Finalmente, a passagem invoca como as mais credíveis testemunhas em favor da ortodoxia de Atanásio o testemunho de Libério e Ósio, ambos dos quais, ele afirma, assinaram uma formula de duvidosa ortodoxia, que seria tão absurdo quanto John S. Daly pedir a João Paulo II um imprimatur para confirmar a ortodoxia da proposição de que João Paulo II não é nem um papa, nem um membro da Igreja. É sob esse fundamento que Stiltingus escreve:
Não posso atribuir esses acréscimos a Atanásio, mas antes me inclinar a pensar que todo o fragmento foi escrito por um homem com um imperfeito conhecimento de grego e ainda menos perfeito conhecimento de lógica. (Dissertatio de Liberio, c. 8, n. 125).
II. Autenticidade do excerto da Historia Arianorum
A autenticidade da segunda passagem citada, que vem da Historia Arianorum ad Monachos de Santo Atanásio, está sujeito a semelhantes objeções:
(i) A data de seu término deve ser datada pelo menos por volta da Páscoa de 357, pois
(a) nenhuma parte do relato histórico vai além da quaresma daquele ano.
(b) Em um lugar se faz referência a Leôncio, bispo de Antioquia, como vivo; e ele morreu no começo do ano 357. (v. Socrates, Historia Ecclesiastica, II, 37)
Logo, essa obra também foi composta antes dos eventos que ela supostamente afirma terem ocorrido (se é que eles realmente ocorreram), e aqueles, tais como von Hefele, que desejam manter a autenticidade dessa passagem, são forçados a sugerir que ela também foi atualizada por Santo Atanásio em algum estágio antes de sua morte em 373.
(ii) Essa última sugestão não é crível em vista do fato que Atanásio ainda estava em exílio no tempo em que ele deve ter escrito essa questionável passagem, se ele a escreveu. Nessas circunstâncias ele dificilmente estaria em condições de saber com certeza da queda de Libério, ainda que ela tivesse ocorrido, especialmente a vista do fato de que essa questão permaneceu uma matéria de dúvida para um erudito como Rufino e para muitos outros mais tarde.
(iii) Se Atanásio atualizou essa obra depois do ano de 357, porque ele não atualizou a referência de que Leôncio estava vivo?
(iv) Novamente, muitos historiadores do período usaram essa obra de Santo Atanásio como fonte, mas não oferecem indicação em seus escritos de estarem conscientes da acusação de que Libério teria capitulado aos arianos.
(v) Ao menos uma alegação contida nessa passagem é historicamente muito improvável visto que, embora Constâncio tenha usado de vários métodos para ganhar o consentimento de seus planos da parte dos bispos ortodoxos, ele em nenhum outro lugar aparece ter-lhes ameaçado com violência física. Apesar de ser um arianista, ele não questiona a moral católica padrão que proibia agredir um consagrado de Deus, o que torna o mais improvável que ele teria ousado fazer uma ameaça de morte a um venerável bispo como é alegado.
(vi) Finalmente – e isto se aplica a ambas passagens que temos examinado – se nossos textos são de fato segundas edições atualizadas, por que Santo Atanásio não diz em nenhum lugar que assim fazia, como tem sido a prática de todos os autores pela história ao atualizar suas obras, para evitar confusão entre um texto e outro? Isso teria ainda mais importância em seus tempos do que hoje, pois a atribuição de obras forjadas a autores que não tinham nada a ver com elas e a alteração de obras existentes por mão desautorizadas eram um lugar comum naquele tempo.
Todas essas considerações juntas – e a maioria delas mesmo tomadas individualmente – não deixa dúvida de que ambas as passagens encontradas nos escritos de Santo Atanásio que se referem à queda de Libério devem ser descartadas como fraudes ineptas, inclusas sem o conhecimento do santo depois de sua morte – sem dúvida obra de inimigos de Libério e da Igreja Católica: ou dos hereges arianos que eram notórios por sua historiografia desonesta e pela distorção da obra de autores ortodoxos, ou dos cismáticos luciferianos que distorceram os escritos de Santo Hilário neste período e eram especialmente hostis ao papa Libério. E finalmente, para o benefício de qualquer um que permaneça incerto sobre essas considerações e pensa possível que Atanásio realmente tenha escrito a passagem em questão, existe outra grande dificuldade para superar. É que Santo Atanásio estava em uma posição muito desfavorável naquele tempo para afirmar o que estava se passando a uma considerável distância de seu lugar de exílio, e em vistta das outras evidências da inquebrantável ortodoxia de Papa Libério que vimos, não há outra alternativa senão concluir que, mesmo que escritos por seu punho, os excertos são completamente errôneos e foram incluídos por ele ter sido enganado pela propaganda ariana.
B. Os escritos de São Jerônimo
Próximo em importância depois desses excertos de Atanásio como testemunho histórico em favor da queda de Libério são os dois excertos dos escritos de São Jerônimo. Novamente, comecemos citando as passagens na íntegra antes de analisá-las.
No Chronicon de São Jerônimo, que foi escrito por volta do ano 380, ocorre o seguinte:
Na Olimpíada da número 282, Libério foi ordenado como 34º bispo da Igreja Romana, e quando ele foi exilado por causa da fé, o clero jurou que não receberia outro em seu lugar. Mas quando este foi substituído por Félix em seu ofício sacerdotal, muitos deles quebraram seu juramento e, um ano depois, foram expulsos com Félix pois Libério, sendo vencido pelos aborrecimentos do exílio, havia prescrito a perversidade herética, entrando em Roma como um vencedor.
E no c. 97 de seu Catálogo de Escritores, tratando do autor e bispo Fortunaciano, São jerônimo escreve o seguinte:
Fortunaciano, africano por nacionalidade e bispo de Aquileia quando Constâncio era imperador, escreveu comentários sobre os Evangelhos em sequência ordinal e com estilo sucinto e rústico. Ele é tido por detestável pelo fato de, quando Libério, o bispo da cidade de Roma, estava em exílio por causa da fé, ele [Fortunaciano] foi o primeiro a desencorajá-lo e compeli-lo a prescrever a heresia.
Antes de começar a analisar esses excertos intrigantes, o seguinte comentário de Jungmann (op. cit., p. 77) é digno de menção na íntegra:
Começamos alertando que em matérias históricas as asserções de Jerônimo, quando achadas em conflito com outras, não podem sempre ser tidas por tão bem-fundadas quanto elas. É assim porque São Jerônimo tende a ser de certo modo arrebatado por seu ódio aos hereges, bem como pelo seu caráter naturalmente veemente, de modo que ele é demasiado rápido para julgar ou cair em algum exagero. Então, é possível que nesse tempo em que escreveu essas obras, enquanto residia no Oriente, também ele acreditou nos rumores espalhados sobre a queda de Libério, especialmente se ele tenha se deparado com evidência que forjada pelos arianos. Porém, é ainda de maior importância que as passagens citadas se encontram em opúsculos que são conhecidos por terem sido sujeitos a interpolações por toda parte e que os textos em questão mantém todos os traços de tal interpolação.
I. A autenticidade do exerto do Chronicon
Primeiramente, acerca da passagem citada no Chronicon, os seguintes pontos são relevantes:
(i) Os manuscritos do Chronicon são extremamente corruptos e foram sujeitos a numerosas adições e interpolações, tal como é prontamente admitido até mesmo por autores hostis a Libério, tais como Tilemont.
(ii) Todo o relato citado é evidentemente uma versão resumida do relato encontrado no prefácio do Liber Precum, cuja referência será feita mais tarde, e é evidente que quem quer que tenha sido responsável por essa passagem, quer tenha sido Jerônimo ou algum interpolador, baseou tudo o que escreveu nessa fonte. Mas o Liber Precum é bem conhecido por ter sido escrito pelos luciferianos, os quais eram inimigos de Libério e outros católicos ortodoxos. Ademais, a própria passagem em que a queda de Libério é descrita, também contém chocantes libelos contra Dámaso, que mais tarde se tornou papa e cujo pedido fez com que Jerônimo traduzisse a Bíblia Vulgata; é particularmente significativo que Dámaso era amigo de Jerônimo, sendo improvável no mais alto grau que Jerônimo desse crédito a tais alegações sobre Libério em um documento que provou sua própria falta de credibilidade ao emitir asserções obviamente falsas contra o seu amigo.
(iii) É digno de nota que São Jerônimo foi sobretudo um defensor conspícuo das prerrogativas da Santa Sé, segundo a qual seus incumbentes, os Romanos Pontífices, são preservados de qualquer erro contra a fé, como ele mantém em suas famosas cartas a Papa Dámaso sobre questões de fé. Como ele poderia ter reconciliado essa posição com a crença de que o Papa Libério, o imediato predecessor de Dámaso, tinha subscrito a heresia e como poderia ele registrar a subscrição como um fato histórico que não demanda qualquer explicação ou justificação?
(iv) A passagem é bem ahistórica ao afirmar que Libério teria ficado em exílio pelo período de apenas um ano; e parece muito confusa sobre o que diz a respeito da posição de Félix. A credibilidade do que é dito na mesma passagem concernente a Libério está obviamente aberta a grandes reservas por essa razão somente.
(v) A sentença final é paradoxal e absurda na sua declaração de que Libério foi vencido pelo cansaço no exílio e subscreveu a heresia e foi então recebido como um vencedor quando retornou a Roma. Por que deveriam os romanos, de cuja fé São Jerônimo tão frequente e enfaticamente nos fala, ofereceram uma acolhida heroica a um papa que tenha sido capaz de retornar unicamente em virtude de seu lapso em heresia?
(vi) Não menos paradoxal é a afirmação de que o clero que tinha se comprometido com o arianismo foi expulso de Roma quando a Libério foi permitido retornar como o resultado da subscrição de heresia. Evidentemente, se a Libério foi permitido retornar somente porque ele tinha capitulado a heresia ariana, ele dificilmente teria expulso de Roma aqueles que mostraram não menos fraqueza do que ele próprio!
(vii) No mais antigo fragmento do texto do Chronicon de Sâo Jerônimo, o Codex Vaticanus, não aparece o trecho concernente à queda de Libério.
(viii) No texto do Chronicon editado por São Próspero de Aquitânia (no começo do século V) se encontra a seguinte versão no lugar da citada acima:
Libério foi ordenado, o 34º [bispo] da Igreja Romana, e quando ele foi posto em exílio pela fé no 9º ano do seu episopado, todos os clérigos juraram que não receberiam nenhum outro em seu lugar. Mas quando Félix foi substituído em seu ofício sacerdotal pelos arianos, muitos deles quebraram seu juramento, e quando Libério retornou a cidade um ano depois, eles foram expulsos com Félix.
Certamente nenhum acadêmico desinteressado poderia argumentar que a versão apoiada pelos anti-liberianos seja mais autoritativa do que essa versão.
Certamente nenhum acadêmico desinteressado poderia argumentar que a versão apoiada pelos anti-liberianos seja mais autoritativa do que essa versão.
II. A autenticidade do excerto do De Viris Illustribus
Passemos ao exame da segunda passagem atribuída a São Jerônimo e citada acima, a sessão sobre Fortunaciano em seu De Viris Illustribus ou Catálogo de Escritores. As seguintes objeções a sua autenticidade se impõem a si mesmas:
(i) Maximamente óbvio, a afirmação de que Libério cedeu e subscreveu a heresia à solicitação de Fortunaciano, bispo de Aquitânia, nem chega a ser plausível; daqueles autores que tratam do assunto, nenhum deles sequer, mesmo entre aqueles que mantém que Papa Libério eventualmente capitulou, hesitam em dizer que ele foi ao exílio sem qualquer intenção de se submeter. Mesmo a outra passagem atribuída a São Jerônimo, aquela do Chronicon, afirma que o Papa cedeu como o resultado do cansaço do exílio, que dificilmente seria assim se a causa de sua queda fosse alguma coisa dita a ele quando ele estava partindo para o exílio. De fato, se ele tivesse capitulado ao arianismo em atenção a Fortunaciano, em seu caminho para o exílio, não haveria mais razão para o seu exílio e os dois anos de desolação que ele passou no Oriente teriam sido inexplicáveis.
(ii) Nenhum outro autor se refere a essa reunião entre Libério e Fortunaciano, nem mesmo o contemporâneo de São Jerônimo, Rufino, o qual, como foi visto, deixa claro que, embora estivesse consciente da alegação de que Libério tinha captulado a Constâncio, não aceita que isso seja verdade, e indica que desconhece qualquer fundamento para isso. Seria certamente admirável se essa alegação fosse verdadeira; pois Rufino viveu por um longo tempo em Aquileia, a curia espiscopal de Fortunaciano, e é certamente ali onde seu pedido a Libério deve ter ocorrido, se é que de fato ocorreu.
(iii) É claro que a atribuição da culpa pela queda de Libério a Fortunaciano se baseia em cartas atribuídas ao próprio Papa Libério que hoje são reconhecidas universalmente como espúrias.
(iv) Um importante fato concernente a suposta queda do Papa Libério que deve agora ser mencionado é que aqueles que acreditam que ela aconteceu alegam que ela aconteceu na presença do Imperador Constâncio e de legados dos bispos do Oriente e do Ocidente, como também da África. Segue-se que, se isso fosse verdade, se a queda tivesse realmente acontecido, não seria possível qualquer duvida sobre o seu acontecimento, e assim a mera existência de duvida (e o testemunho de Rufino já é o bastante para isso) prova que a queda é totalmente impossível.
(iv) Um importante fato concernente a suposta queda do Papa Libério que deve agora ser mencionado é que aqueles que acreditam que ela aconteceu alegam que ela aconteceu na presença do Imperador Constâncio e de legados dos bispos do Oriente e do Ocidente, como também da África. Segue-se que, se isso fosse verdade, se a queda tivesse realmente acontecido, não seria possível qualquer duvida sobre o seu acontecimento, e assim a mera existência de duvida (e o testemunho de Rufino já é o bastante para isso) prova que a queda é totalmente impossível.
C. Credibilidade do Liber Precum
Já foi mencionado mais de uma vez nas páginas anteriores o Liber Precum ou Livro de Orações de Faustino e Marcelino, a tradução de seu título integral. Escrito em 384-5 A.D., por devotos da facção luciferiana, que – como podemos recordar – estava possuída de um “zelo amargo” e determinada a ser mais “católica” do que a Igreja Católica, ele continha libelos e acusações contra vários papas e bispos, incluindo até Santo Hilário, que tinha também, assim eles alegavam, dado apoio aos hereges. Como fonte de informação sobre o Papa Libério, sua falta de credibilidade fica evidente de imediato, pois ele afirma que a queda de Libério aconteceu antes mesmo de Constâncio vir a Roma. E mesmo se fosse verdade, isso seria de pouca utilidade aos detratores do Papa Libério, pois dele se diz meramente que “deu suas mãos à perfídia”; uma passagem que, tomada isoladamente, não pode constituir a asserção de que ele teria subscrito a qualquer fórmula herética e tampouco excomungado Santo Atanásio. (Mais informações sobre esse panfleto luciferiano nas Dissetationes de Jungamann, Dis. 6, n. 88.)
D. Devemos confiar em Sozomeno?
A última fonte alegada para se fazer referência à queda de Libério digna de atenção é a Historia Ecclesiastica de Sozomeno, escrita cerca de 450 A.D. É de algum interesse que ela apresente um relato marcadamente diferente daqueles de historiadores mais antigos já referidos, e a forma mais conveniente de apresentar aos leitores as informações necessárias sobre as partes relevantes é reproduzir aqui o resumo dela e a avaliação do seu peso encontrada no artigo de Dom John Chapman na Enciclopédia Católica (1913), vol. IX, p. 220:
Sozomeno conta uma história que não tem eco em nenhum outro escritor. Ele faz Constâncio, depois de seu retorno a Roma, convocar Libério para Sírmio (357), e ali o Papa é forçado por líderes semi-arianos (Basílio de Ancira, Estácio e Eleusio), a condenar o “homoousios”; ele é induzido a assinar a combinação de três fórmulas: aquela do Concílio Católico de Antioquia de 267 contra Paulo de Samosata (em que “homoousios” diz-se ter sido rejeitado como de tendência sabeliana), aquele da assembleia de Sírmio que condenou Focino em 351, e o credo do Concílio de Dedicação de Antioquia em 341. Essas fórmulas não eram precisamente heréticas e Libério é dito ter exigido de Ursácio e Valens uma confissão de que o Filho é “em todas as coisas semelhante ao Pai”. Portanto, a história de Sozomeno foi geralmente aceita como um relato moderado sobre a queda de Libério, reconhecendo-a como um fato, mas ao mesmo tempo explicando por que muitos autores a negam implicitamente. Mas a data seguinte a ida de Constâncio a Roma é impossível, uma vez que os semi-arianos somente se uniram no começo de 358, e sua curta influência sobre o imperador começou no meio daquele ano… Ademais, a fórmula “em todas as coisas como” não foi o distintivo semi-ariano em 358, mas imposta a eles em 359, depois que eles a adotaram declarando que ela incluía sua fórmula especial “como na substância”. Ora, Sozomeno está certamente seguindo aqui a compilação perdida do macedoniano (i.e. semi-ariano) Sabino, que sabemos ter sido indigno de confiança onde quer que sua seita estivesse envolvida. Sabino parece simplesmente ter tido uma história ariana diante de si, mas considerou-a, provavelmente com razão, como uma invenção do partido de Eudóxio…
Em suma, o relato de Sozomeno é incompatível com o relato de todos os outros relatos históricos, é evidentemente baseado nos escritos de um herege indigno de confiança, erra grosseiramente em sua história no que toca outras matérias concomitantes à alegada queda de Libério, e de algum modo não afirma nem que Libério subscreveu a fórmulas heréticas, nem que ele excomungou Atanásio.
E. Filostórgio
Referi a Sozomeno como a última fonte digna de exame, mas existe um outro – só mais um outro – historiador aduzido pelos inimigos do Papa Libério como base para sua posição; e ele deve, pois, ser mencionado, embora brevemente. Este é Filostórgio, que escreveu entre os anos de 425 e 433 A.D.
Tudo o que precisa ser dito sobre ele é que ele foi um membro da seita ariana que, como muitos leitores já devem ter se tornado conscientes, eram renomados tanto por distorção histórica quanto por falsificação dos escritos alheios. Se alguém está pronto para aceitar a asserção sem fundamento, vinda de um escritor com tal precedente, segundo a qual o Vigário de Cristo, a quem na pessoa de São Pedro a Verdade Encarnada Mesma disse: “Eu roguei por ti para que tua fé não desfaleça” teria assinado a mesma heresia da seita do escritor; esse alguém coloca-se no grupo de “historiadores” que estudam história não para descobrir a verdade, mas para reunir, sem consideração pela evidência, o máximo de alegações e rumores possíveis contra a Igreja Católica. Não é para convencer tais pessoas que essa Avaliação foi escrita, e este é o motivo por que o que foi dito sobre Filostórgio é tudo o que precisa ser dito.
6. CONCLUSÕES SOBRE A IMACULADA ORTODOXIA DO PAPA LIBÉRIO
É tempo de resumir o que emergiu de nosso exame das alegações contra o Papa Libério. Isso pode ser feito pela reprodução da seguinte passagem da 6ª Dissertação de Jungmann, n. 109:
Tendo pesado tudo, portanto, chegamos a conclusão de que a queda de Libério é uma ficção e que Libério nunca caiu em heresia nem assentiu à perfídia dos hereges; e que este pontífice em realidade não subscreveu a nenhuma fórmula do Sírmio, nem qualquer documento que se esquiva da palavra “homoousios” consagrada pelos padres de Niceia; nem condenou Santo Atanásio ou entrou em comunhão com os arianos.
7. CONCLUSÕES SOBRE A GRAVEMENTE MACULADA REPUTAÇÃO E INTEGRIDADE INTELECTUAL DE MICHAEL DAVIES
Visto que Michael Davies forneceu falsidade como verdade e libelos contra o papado em sua suposta defesa da Igreja Católica, minha tarefa ainda não se completou; pois não se pode evadir da questão sobre sua integridade acadêmica.
Por exemplo, deve-se recordar que em três ocasiões em que Davies faz referência à alegada queda do Papa Libério e excomunhão de Santo Atanásio, ele acrescenta também que o Papa Libério posteriormente se retratou. Mas uma tal retratação de Libério não se acha em nenhum historiador, seja ele um contemporâneo de Libério ou de um período subsequente, seja ele pró-Libério ou anti-Libério, seja ele católico, protestante ou ariano. É apenas uma invenção de Davies para agregar credibilidade ao seu conto. Em seu artigo no The Angelus de janeiro de 1987, Davies criou mais três incríveis ficções. Lá ele declarou primeiro que “no quarto século o simples fato da comunhão com o papa não garantia a ortodoxia, já que os bispos arianos estavam em comunhão com Libério” (o que eles muito certamente não estavam); segundo, que “foi, por um tempo, a comunhão com Atanásio, em vez da comunhão com o papa, que significava um católico de verdade” (de novo, nem verdade, nem uma coisa dita por nenhum historiador); e terceiro, que os católicos fiéis “tinham… que rezar fora das igrejas ‘oficiais’, as igrejas dos bispos em comunhão com Libério” – tudo isso flutuando no ar perante o fato facilmente verificável que nós vimos antes: que nem mesmo o próprio Santo Atanásio foi mais estrito do que Libério na recusa de mesmo parecer que estivesse em comunhão com qualquer um de ortodoxia questionável.
Por ora, nada de louvável. Existe porém uma outra área em que Davies exibe uma má fé ainda mais flagrante; aquela que ele faz das referências às autoridades dos estudiosos na matéria em discussão. Isso deve ser examinado mais extensamente.
A. A divisão de opinião entre os peritos
Não seria verdade dizer que Davies nunca reconheceu que há alguma dissenção entre os peritos sobre a questão de Libério e sua excomunhão de Santo Atanásio; mas tais reconhecimentos são bem raros, e mesmo quando são feitos eles são formulados de modo a sugerir que aqueles que discordam são uma minoria de zelosos fanáticos cuja erudição histórica é indigna de séria consideração. Eis, por exemplo, o que ele escreve tanto na Apologia Pro Marcel Lefebvre, vol. I, p. 371 e The True Voice of Tradition, p. 9:
Alguns apologistas católicos tentaram provar que Libério nem confirmou a excomunhão de Atanásio e nem subscreveu uma das fórmulas de Sirmio. Contudo, o Cardeal Newman não tem dúvidas que a queda de Libério é um fato histórico.
Em outras palavras, tal é o desprezo de Davies por esses “apologistas católicos” que ele declara-os dignos somente do obscuro anonimato e considera apenas o peso da opinião de Cardeal Newman como o bastante para justificar aos seus leitores sua decisão de dispensá-las sem maiores cuidados.
Mas qual é a verdade sobre a matéria? Isso somente pode ser visto comparando a lista daqueles peritos sérios que mantiveram a teoria de que Libério capitulou a Constâncio com a lista daqueles que defenderam sua ortodoxia.
I. Escritores Anti-Liberianos
Comecemos com aqueles que podem ser tidos como estando do lado de Davies. Eles incluem Moeller, que era um galicano; Barmby, que era um protestante; Langen, que era um velho católico; Tillemont, que Pe. W.H. Anderdon S.J. aponta em seu Britain’s Early Faith (p. 39) como o arquétipo do cético; Döllinger, o famoso perito que deixou a Igreja depois da declaração do dogma da Infalibilidade Papal em 1870 e se tornou um velho católico; Cardeal Newman em seu Arians of the Fourth Century, escrito em 1833, doze anos antes de sua conversão, numa obra em que acusa o papado de ter apostatado inteiramente no Concílio de Trento; Renouf; Schiktanz; Pe. Alban Butler; o infiel Gibbon, cujo Decline and Fall está no Index e que parece ter decidido aceitar alegações hostis ao papado puramente com base naquilo que seria mais útil para manchar a reputação da Igreja Católica. Não agrada-me acrescentar o nome de São Roberto Belarmino a essa lista, pois ele foi no máximo um anti-liberiano altamente hesitante e parece expressar visões contraditórias sobre o assunto em dois lugares diferentes (De Romano Pontifice lib. IV, cap. 9 e lib. II cap. 30). Ademais, ele escreveu na aurora da crítica histórica, antes de qualquer questão ter sido levantada quanto a autenticidade de alguns manuscritos patrísticos que ele utilizava, e ele enfatiza que qualquer lapso de Libério de sua celebrada ortodoxia é matéria de dúvida.
Por outro lado, livremente ofereço a Michael Davies o apoio de E. Amman no Dictionnaire de Theologie Catholique. De fato, esse é um caso a parte, pois o Dictionnaire de Theologie Catholique é obra merecidamente famosa e geralmente confiável. O que nunca deve ser esquecido, porém, é que toda obra enciclopédica inevitavelmente sofre do defeito de algum de seus autores serem menos confiáveis do que outros, pois igualdade nesse ponto, assim como em qualquer outro, simplesmente não é uma característica da espécie humana – um fato que obstinadamente continua a se verificar não importa quão alta seja a erudição atingida, e um fato que nenhum editor pode evitar, pois nenhum editor pode verificar todas as suas contribuições. Quanto ao artigo de Amman como um exemplo desse fenômeno, basta notar que ele cita entre aspas – sim, cita – o que afirma ser passagens dos escritos de Santo Atanásio em que a “capitulação” do Papa Libério tinha sido interpolada, nas quais, em cada caso, tanto o verdadeiro sentido é grosseiramente distorcido quanto é corrompido mais adiante com invenções dele próprio. Em outras palavras, não contente em forjar, desafiando a enorme evidência mostrada anteriormente, um pseudo-Atanásio contemporâneo como se fosse Atanásio, ele falsifica até mesmo essa corrupção. Uma fraude não é o suficiente para seus fins, ele precisa completá-la com as suas próprias. (Veja Dictionnaire de Theologie Catholique, Vol. IX, col. 638.)
De qualquer forma, os escritores acima são os mais renomados autores da escola anti-liberiana.
II. Exceções
Existem alguns escritores que mantém uma posição mais moderada, semelhante a mantida por Sozomeno entre os antigos, que Libério subscreveu a fórmulas deliberadamente cobertas com teriminologia ambígua que, embora aberta a uma interpretação heterodoxa, levou-o a genuinamente crer que a fórmula era uma expressão da fé católica. Esses escritores incluem Barônio, von Hefele, que foi um liberal, Funk e Duchesne, um modernista notório, que tem algumas de suas obras no Índice de Livros Proíbidos.
III. Escritores Pró-Liberianos
O mínimo que pode ser dito desta lista de escritores que defenderam a ortodoxia de Libério é que ela não é menos impressionante do que aquilo que vimos até aqui. Ela inclui Georgio Cedrenos (c. 1100), historiador medieval bizantino, fiel depositário da tradição da Cristandade Oriental; Stilting; Zacaria; Palma; Dom Gueránger (O Ano Litúrgico: Festa de Santo Eusébio); Cardeal Hergenröther, o famoso defensor da ortodoxia católica contra os ataques de Döllinger no tempo do Concílio do Vaticano de 1870; Jungmann, cuja obra sobre o assunto cobre oitenta páginas de argumentação forçosa e é, em minha opinião, por si só conclusiva; Grisar; Freis; Flavio; Corgne; Rohrbacher, cuja Histoire Universelle de l’Église Catholique foi justamente saudada como “sublime” (Palme), “monumental” (Enciclopédia Católica) e a obra de história eclesiástica mais bem-feita desde o século XVI, que qualquer um com habilidade de ler francês deveria ler quando encontrá-la; Dom John Cahpman em seu artigo para Enciclopédia Católica de 1913; Alzog em sua Universal Catholic History, Vol. I, p. 542; Darras em sua General History of the Catholic Church, 456 et seq.; Reinerding; Schneeman; Wouters; Barthélémyy em seu Erreurs et Mensonges Historiques que recebeu aclamação papal; Harrold na The American Catholic Quarterly Review, 1883; Pe. Luke Rivington em The Primitive Church and the See of Peter; Dumont; o renomado exegeta bíblico Menochius; Ballerine, historiador e teólogo muito douto; Galland; o próprio Breviário Romano (16 de dezembro); e o famoso Boussuet, bispo galicano, que em princípio argumentou em favor da capitulação de Libério mas que, segundo seu secretário D. Ledieu, desejou ter o que escreveu sobre esse assunto removido de suas obras. Nem devemos perder de vista o renomado Enchiridion Symbolorum primeiramente editado por Heinrich Denzinger e sucessivamente aparecendo em mais completas edições com vários editores eruditos, pois no número 93 lista-se a carta de Santo Anastácio defendendo o Papa Libério (referida anteriormente) sob o título “De Orthodoxia Liberii Papae” – “Sobre a ortodoxia de Papa Libério”.
B. Com base em qual critério Davies seleciona suas fontes?
Muito reveladora e instrutiva é a bibliografia do panfleto de Davies sobre Libério e Atanásio, listando seis obras utilizadas na elaboração de seu conteúdo. Oferecer uma breve avaliação dessas obras não tomará muito tempo.
Duas delas são “Dicionários católicos”, um deles publicado já nos anos 1970 e, portanto, não confiável. Uma terceira é um opúsculo chamado A Handbook of Heresies de M.L. Cozens, que, embora são, devota unicamente sete páginas ao assunto do arianismo e semi-arianismo e em nenhuma parte menciona Libério. Outra obra, o único livro completo, The Arians of the Fourth Century do herói de Davies, Careal Newman. E as obras restante são a Enciclopédia Católica de 1913 e a Nova Enciclopédia Católica de 1967.
Tendo em mente quão frequente e enfaticamente Davies expôs sua opinião sobre o que é reconhecido por todo mundo como sendo um assunto controverso, esta bibliografia é com certeza ridiculamente curta. Mas há uma outra característica desta que é de interessa ainda maior, a saber – algo já dito nesta Avaliação – enquanto as cinco obras dadas na bibliografia são também citadas no texto do panfleto – a maioria delas mais de uma vez – a sexta, a Enciclopédia Católica de 1913, não aparece no texto.
É realmente difícil de entender por que a Enciclopédia Católica aparece na bibliografia, a não ser que Davies, que a utiliza como obra de referência para muitos outros propósitos, esteja embaraçado por ter citado unicamente a Nova Enciclopédia Católica de 1967, tendo assim de admitir abertamente que ele está ignorando tudo na obra mais tradicional e obviamente mais confiável em favor de sua inferior substituta do Vaticano II, que em si mesma cai sob maiores acusações de heresia que o Papa Libério jamais caiu! Quanto ao motivo dele se opor ao que qualquer católico verdadeiro faria ao consultar uma enciclopédia, olhando unicamente para sua versão do Vaticano II publicada sob o guarda-chuva da Igreja Conciliar; não há nenhuma dificuldade em explicá-lo. A Enciclopédia Católica de 1913 que Davies frequentemente cita em suas obras sobre outros assuntos que não sejam o Papa Libério, contém um artigo excelente e cogente, argumentando que as diversas acusações feitas contra Libério eram inteiramente espúrias, e para Davies, isso é suficiente para fazer dela, em termos orwelianos, uma non-enciclopédia.
É desnecessário dizer que a horrorosa Nova Enciclopédia Católica, como todas as obras que emanaram da Igreja Conciliar a fim de “atualizar-se” e desatualizar as suas contra-partes pré-Vaticano II, aproveita toda oportunidade que tem para atacar a Igreja e diminuir a estima que os católicos devem ter pela Santa Sé, invariavelmente se alinhando com os inimigos do Vigário de Cristo nas alegações que eles trazem contra ele. Davies é desmascarado como o homem que está disposto a usar esse tipo de fonte a fim de reforçar os seus preconceitos ao mesmo tempo que abandona autoridades tradicionais e confiáveis que contradizem a tese que lhe parece conveniente defender.

 DALLY, John. Michael Davies: An Evaluation. Rouchas Sud: Tradibooks, 2015,  pp. 427-474

 

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