Ratzinger: 99% Protestante

RATZINGER: 99% PROTESTANTE

Ratzinger 99 protestante

Pelo Reverendo Padre Francesco Ricossa
Sodalitum Pianum nº 33, abr. 1993, pp. 3-10

Teria passado despercebido, exceto pelos peritos, se os periódicos 30 Giorni e Il Sabato, ligados à Comunhão e Libertação, não o tivessem destacado. Destaque bem merecido. Pretendo falar do colóquio que o “Cardeal Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé”, Joseph Ratzinger, realizou em Roma, em 29 de janeiro de 1993, no Centro Cultural Evangélico da comunidade valdense local.

O texto completo do discurso de Ratzinger e do prof. Paolo Ricca, valdense, pode ser lido na revista 30 Giorni n. 2, de fevereiro de 1993, páginas 66-73, publicado sob o título editorial (porém significativo) de “Ratzinger, o Prefeito Ecumênico”. Essa leitura deve ser completada por uma entrevista dada pelo teólogo luterano Oscar Cullmann ao Il Sabato n. 8, 20 de fevereiro de 1993, páginas 61-63, publicado sob o título editorial (e igualmente significativo) de: “O filho de Lutero e Sua Eminência”.

Para os leitores de Sodalitium, apresento um resumo das ideias do “Card”. Ratzinger (que deu a Monsenhor Guérard des Lauriers a honra de “excomungá-lo”) sobre a Igreja e o ecumenismo. Qualquer um pode verificar as fontes nas revistas mencionadas e constatar se Ratzinger ainda é católico ou se, como claramente faz parecer, não é mais católico.

Cullmann fala pela boca de Ratzinger

Quando o papa São Leão Magno, através de seus representantes, interveio no Concílio de Calcedônia, os Padres do Concílio disseram “Pedro falou pela boca de Leão”. Lendo o discurso de Ratzinger junto aos valdenses e a entrevista de Cullmann pode-se dizer que este fala pela boca de Ratzinger. As palavras são de Ratzinger, as ideias de Cullmann. Portanto, não é de se admirar que os valdenses “concordem com 99%, para não dizer 100%” (Ricca, 30 giorni, p. 69).

Mas quem é Cullmann?

Cullmann nasceu em 1902 em Estrasburgo, terra natal do reformador protestante Bucer, a quem ele se refere de bom grado (Il Sabato, p. 61). Alsaciano, ele vê nisso um “fato providencial” pois a população naquele lugar é metade católica e metade protestante.
Estudou teologia “sob a orientação de Loisy em Paris” (Ardusso-Ferreti-Pastore-Perone, La Teología Contemporánea. Marietti, 1980, p. 108). O exegeta modernista e excomungado certamente não era um bom professor. Menos ainda foi Bultmann, “o grande desmistificador dos Evangelhos” (Il Sabato, p. 63), com quem apresentou sua tese sobre a Formgeschichte (Crítica da Forma). “Bultmann disse que foi a melhor apresentação do seu Formgeschichte” (página 63). Mais tarde, separou-se “radicalmente” de Bultmann, uma vez que este mediava a leitura da Bíblia através da filosofia (existencialista), enquanto Cullmann não aceitava nenhuma mediação. Com isso, Cullmann não abandona de todo a abordagem protestante das Escrituras, nem “o método da história das formas” de Bultmann, segundo o qual “a tarefa do exegeta é descobrir o núcleo essencial da Bíblia: Cullmann o encontra no história da salvação” (Ardusso, op. cit. pag. 110).

Cullmann também ensinou na Faculdade Livre de Teologia Protestante em Paris (1948-72) e na Faculdade Teológica Valdense em Roma. Participou do Concílio Vaticano II como observador e Paulo VI o definiu como “um dos meus melhores amigos” (Il Sabato, p. 62). “Durante o Vaticano II, Cullmann, convidado pessoal do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, ajudou a determinar a orientação bíblica, cristocêntrica e histórica da teologia conciliar (…) mais recentemente Cullmann propôs um modelo de ‘comunidade de igrejas’ em seu livro “Unità attraveso la divesità” (Brescia 1988), modelo também apreciado pelo cardeal Ratzinger em seu discurso à igreja valdense de Roma em 29 de janeiro do ano passado” (p. 62).

Conheceu Ratzinger durante o Concílio, estimando-o “o melhor teólogo entre os chamados peritos… com uma reputação de ardoroso progressista” (página 63). Desde então, os dois estão em correspondência, primeiro em problemas exegéticos; mais tarde – declara Cullmann – “a correspondência cresceu, especialmente em relação à proposta do meu modelo de “unidade através da diversidade”, uma proposta que, como já dissemos, o Cardeal apreciou em particular e em público” (pag..63). Cullmann se regozija particularmente com uma carta em que Ratzinger escreve “que sempre aprendeu com seus escritos, mesmo quando não concordava”. E Cullmann comenta: “Unidos na diversidade” (p. 63).

“O trabalho de Cullmann (…) deve ser contado entre aqueles que mais contribuíram para o diálogo entre católicos e protestantes” (Ardusso, op. cit., pag. 112), mesmo permanecendo firmemente ligado à heresia, negando explicitamente a infalibilidade da Igreja Católica e a primazia de jurisdição de Pedro e seus sucessores (cf. Ardusso, op. cit., p. 112; Il Sabato, p. 62). Uma ponte, portanto, entre católicos e protestantes para tornar os católicos protestantes (fazendo-os crer, além disso, que permaneceriam católicos: “unidos” sim, mas… “na diversidade”!).

A conferência aos valdenses

Já professor em Roma, na faculdade de teologia valdense, Oscar Cullmann conhece bem os valdenses estabelecidos em Roma. Foi, talvez, ele quem os propôs a seu “discípulo” Ratzinger como um bom público para expor e lançar suas ideias comuns.

O tema da reunião de 29 de janeiro entre Ratzinger e o prof. Ricca (protestante valdense) era duplo. Antes de tudo, o ecumenismo em geral e o papado, depois os testemunhos. Mais precisamente: que solução ecumênica dar à questão do papado; como reviver o ecumenismo em crise; como dar um testemunho comum.

Parece-me que não traio o pensamento de Ratzinger resumindo-o nos seguintes pontos, a fim de comentá-los mais abertamente em seguida:

1) O ecumenismo é necessário, fundamental, inquestionável.
2) O Papado é o problema.
3) O ecumenismo tem um objetivo final: “A unidade das igrejas na Igreja”.
4) Este objetivo final será realizado em formas ainda desconhecidas por nós.
5) O ecumenismo também tem um objetivo próximo, “uma etapa intermediária”, cujo modelo é a “unidade na diversidade” de Cullmann.
6) Esse etapa intermediária é alcançada através de um contínuo “retorno ao essencial”…
7) … favorecido por uma purificação mútua entre as igrejas.

O Ecumenismo

“O ecumenismo é irreversível”, adora dizer Karol Wojtyla. Joseph Ratzinger vai além: “Deus é o primeiro agente da causa ecumênica” e “o ecumenismo é, acima de tudo, uma atitude fundamental, um modo de viver o cristianismo”. Não é um setor particular, ao lado de outros setores. O desejo de unidade, o compromisso com a unidade pertence à estrutura do próprio ato de Fé porque Cristo veio para reunir os filhos dispersos de Deus” (30 Giorni, p. 68). “Ecumenismo” (ou “reunião de cristãos”. Pio XI) não é concebido como “o retorno dos dissidentes à única Igreja verdadeira de Cristo, da qual, precisamente, um dia eles tiveram a infeliz ideia de se separar” (Pio XI , Mortalium Animos, datada de 1/6/1928), não é nem mesmo um método, ou uma iniciativa, entre outros, da atividade da Igreja. É o fundamento da vida cristã e um elemento constitutivo do ato de Fé. Não se pode ser fiel sem ser ecumenista (para Ratzinger); não se pode ser fiel se se é ecumenista (para Pio XI): “Aquele, portanto, que mantém tais tentativas e tem essas ideias, por este mesmo fato, como conseqüência manifesta, afasta-se da religião revelada por Deus” (Pio XI, Mortalium Animos).

Lucidamente, o valdense Ricca expõe o problema (sem Ratzinger contradizê-lo): “A crise do ecumenismo é essencialmente devida ao fato de que as igrejas não mudaram o suficiente por causa do ecumenismo. (…) Porque o ecumenismo certamente exige, com a paciência de que o cardeal Ratzinger falou, mudanças profundas. Em algum momento, ou a igreja muda ou o ecumenismo entra em crise. (…) Entendemos que esse discurso é válido para todas as igrejas” (30 Giorni, p. 71). Em resumo: a Igreja perece e o ecumenismo vive; ou vive a Igreja e perece o ecumenismo (porque mudar, substancialmente, para a Igreja é perecer). Hoje o ecumenismo é irreversível: portanto, a “Igreja” (como é agora, como era sobretudo antes do Concílio) deve perecer. Daí a questão do papado, que deve mudar com a Igreja, ou perecer.

O papado: “o maior obstáculo ao ecumenismo”

Paulo VI dixit. O herético Ricca lembra-o com complacência: “O Papado, sabemos, é uma questão crucial da questão ecumênica, porque, por um lado, estabelece a unidade católica e, por outro – me expresso um pouco brutalmente – impede a unidade dos cristãos [leia-se: ecumenismo n.d.a]. O Papa Paulo VI reconheceu isso muito corajosamente, devo dizer, em um discurso em 1967, no qual afirmou (e eu creio que seja o único papa a tê-lo feito) que o papado é o maior obstáculo para o ecumenismo. Um discurso muito nobre [é um herege que o diz! n.d.a], entre outras coisas, não só por essa afirmação, mas pelo conjunto. Aqui estamos, portanto, com o papado diante de um verdadeiro impasse” (30 Giorni, p. 70). Afinal, se um dogma da Fé (somente Ricca nos lembra que trata-se de um dogma) — que, além disso, “é o fundamento da unidade católica” — é um obstáculo, na verdade, o obstáculo ao ecumenismo, Paulo VI, Ratzinger e todos nós devemos concluir que o ecumenismo deve perecer. Porque é impossível que uma verdade revelada por Cristo para fundar a unidade desejada por Ele possa ser obstáculo… à unidade! [Na verdade, o Papado não é um obstáculo, mas é o único meio de participar da unidade da única Igreja: “Ninguém vive e persevera nesta única Igreja de Cristo, se não reconhece e aceita a autoridade e o poder de Pedro e seus legítimos sucessores”(Pio XI, Mortalium Animos)].

Ratzinger sabe disso e não pode falar tão livremente quanto seu “colega” (como chama Ricca).

No início, então, ele desconversa: “Eu acho que o papado é, sem dúvida, o sintoma mais palpável de nossos problemas, mas é bem interpretado apenas se for enquadrado em um contexto mais amplo. Por isso, penso que enfrentado imediatamente [como também fora na “programação” da reunião n.d.a.] não conceda facilmente uma saída (30 Giorni, página 66) “. Em suma: se falamos do Vaticano I, a utopia ecumênica morre ao nascer, os mal-entendidos se dissipam, o próprio Cullmann não concordaria mais, e os verdadeiros católicos logo compreenderiam. Assim, ensaboa-se o discurso lançando a fórmula de Cullmann: “Unidade na diversidade” (retornaremos a ela).

No final, porém, ele deve chegar ao problema do papado. E o que propõe? Certamente não o primado da jurisdição que a Fé atribui ao papa.

“Segundo a nossa fé”, Ratzinger explica, “o ministério da unidade é confiado a Pedro e seus sucessores” (30 Giorni, página 68). Mas em que esse “ministério da unidade” consiste? Ratzinger não diz. Para a Igreja consiste na primazia da jurisdição (autoridade) do Papa sobre todos os fiéis individuais.

Para Cullmann, consistiria no máximo (bondade sua!) em uma primazia de honra (que é uma heresia: DS 2593): “Eu considero o serviço petrino um carisma da Igreja Católica, do qual nós protestantes também deveríamos aprender” – declara a Il Sabato – mas depois continua: “O Papa é bispo de Roma e, como tal, a ele poderia ser dada a presidência naquela ‘comunidade de igrejas’ proposta por mim. Pessoalmente, eu veria seu papel como fiador da unidade. Poderia ser aceito se não tivesse jurisdição sobre toda a cristandade, mas uma primazia de honra” (30 Giorni, p. 62).

Para Ricca, existem três possibilidades: “O Papado permanece e permanecerá (…) mais ou menos o que é hoje (…) e então devemos pensar que, precisamente, a união será um presente final que nos será dado quando Cristo voltar [ou seja: “Nós sob o Papa? Nunca, nunca! N.d.a.]

A segunda possibilidade é que o papado mude. Que mude em uma espécie de conversão ecumênica do papado. (…) ‘Até agora estive a serviço da unidade católica; de agora em diante, coloco-me a serviço da unidade cristã’ (…) [Papa = presidente de uma nova igreja ecumênica, n.d.a].

A terceira hipótese, em vez disso, é que o papa permaneça o que ele é, mas não se proponha como o eixo central da unidade cristã, mas simplesmente como o centro da unidade católica. (…) As igrejas poderiam (…) reconhecer-se como igrejas de Jesus Cristo, realmente unidas entre si e realmente diferentes umas das outras, reunindo-se de tempos em tempos em um Conselho verdadeiramente universal (…) [Papa = chefe de uma igreja cristã entre outras unidas em um Conselho Ecumênico. N.d.a] (30 Giorni, pp. 70-71).

Para Ratzinger, qual é o papel do papa? Ele se cala, ou melhor, não reafirma a fé católica (a primeira hipótese de Ricca) e nos permite vislumbrar a terceira hipótese como um passo intermediário e a segunda como a meta final. Por enquanto, recorda que “as igrejas ortodoxas” (heréticas e cismáticas n.d.a) “não devem mudar em seu interior muito, quase nada, no caso de uma unidade com Roma” (30 Giorni, p. 68) “e que em substância”, isso “é válido não apenas para as igrejas ortodoxas, mas também para aquelas nascidos na Reforma” (30 Giorni, página 69) a ponto de estudar, com amigos luteranos, vários modelos possíveis de uma “Ecclesia catholica confessionis augustanæ” (“Igreja Católica da Confissão Augsburgo”, que segue as heresias protestantes da “Confissão de Augsburgo”, uma espécie de “Credo Protestante” apresentado pelo heresiarca Melanchton a Carlos V) (cf. 30 Giorni, p. 68).

Isso não se assemelha às propostas (heréticas) de Cullmann e Ricca (segunda versão)? Teríamos uma Igreja presidida pelo “papa”, com um ramo “ortodoxo” que permanece “ortodoxo” e um ramo protestante que permanece protestante. Por outro lado, para Ratzinger, os “ortodoxos” (e, mutatis mutandis, os protestantes) “têm uma maneira diferente de garantir a unidade e a estabilidade na fé comum, diferente de como a temos na Igreja Católica do Ocidente.” (Ou seja, para os “ortodoxos”, liturgia e monaquismo) (30 Giorni, página 68).

Ora, quem não vê que a liturgia e o monaquismo entre os “ortodoxos” (como a Bíblia entre os protestantes) não são suficientes para garantir a unidade e a Fé? De fato, apesar da liturgia, do monaquismo e da Bíblia, eles são cismáticos (sem unidade) e hereges (sem fé)! Querer reduzir os dogmas da Fé e o que os preserva, isto é, a condenação do erro (que institucionalizamos no Santo Ofício, do qual o Papa é prefeito) a características, não da Igreja Católica (= universal), senão às particularidades do ramo ocidental (e romano) é aberrante! E certamente não são as citações do teólogo “ortodoxo” Meyendorff (ele que critica o universalismo em sua forma romana, mas também critica, como ele diz, o regionalismo tal como se formou na história das igrejas ortodoxas” – Ratzinger em 30 Giorni, pag 68) que darão ao “prefeito ecumênico” um certificado de catolicidade. Meyendorff, no fundo, mais uma vez propõe a aberração de Ricca: as igrejas, todas as igrejas, até mesmo a Igreja Católica, devem mudar profundamente para garantir o ecumenismo.

Em suma, Pio XI havia colocado o dedo na ferida quando escreveu (parece até que falava de Cullmann): “Alguns admitem e concedem que o Protestantismo, por exemplo, precipitadamente descartou certas pontos capitais da Fé e alguns rituais de culto externo que, pelo contrário, a Igreja Romana ainda considera válidos. Mas, imediatamente acrescentam também que esta fez coisas que corromperam a antiga religião, acrescentando e propondo doutrinas não só alheias ao Evangelho, mas contrárias ao mesmo, como, apressam-se a dizer, a primazia da jurisdição atribuída a São Pedro e aos seus sucessores na Fé de Roma. Há também aqueles que se deixam levar e concedem ao Romano Pontífice a primazia da honra, ou mesmo uma certa jurisdição ou certo poder: eles não são muitos, no entanto; apenas exigem que isso seja feito por consentimento dos fiéis e não por direito divino. Há aqueles que até têm o desejo de ver o próprio Papa à frente desses congressos! Por outro lado, existem muitos não-católicos que enchem a boca com esses sermões de união fraterna; no entanto, a ninguém passa pela cabeça se submeter e obedecer ao ensinamento, sob o comando do Vigário de Cristo” (Pio XI, Mortalium Animos). Como se vê, de 1928 até hoje, os protestantes não deram um único passo adiante, enquanto nós tivemos que ver muito mais do que a presença do “Papa” nos “congressos coloridos” dos não-católicos.

O fim último: a unidade da Igreja

Mas voltemos a Ratzinger. Para evitar abordar o problema do papado, ele começa seu discurso com o ecumenismo. Neste, “o objetivo final é, evidentemente, a unidade das igrejas na única Igreja” (30 Giorni, página 66). É “a unidade da Igreja de Deus à qual tendemos” (30 Giorni, nº 2, p. 67). O fim para o qual Ratzinger quer nos dirigir está errado desde o começo. Se a “Igreja é única”, o que fazer com “as igrejas”? Essa “Igreja única” é ou não é a Igreja Católica? Ou a Igreja Católica é uma daquelas “igrejas” que devem se juntar (cada vez mais) no futuro para formar “a Igreja única”? No primeiro caso (Igreja Única = Igreja Católica), o fim já foi alcançado, a Igreja já é “una”, não há ecumenismo, mas uma meta a ser alcançada: a abjuração dos hereges e cismáticos de seus erros; e “igrejas” nada mais são do que seitas e grupelhos que não devem se juntar à Igreja, mas desaparecer.

No segundo caso (Única Igreja = União mais ou menos estreita entre “igrejas” mais ou menos diferentes entre si), Ratzinger nos oferece o erro condenado por Pio XI na Mortalium Animos: “E aqui se nos oferece a oportunidade de expor e refutar uma falsa teoria da qual parece depender toda essa questão, e que originou a ação múltipla e a confabulação de não-católicos que trabalham, como já dissemos, pela união das igrejas cristãs. Os autores deste projeto não deixam de repetir quase infinitas vezes as palavras de Cristo: “que todos sejam um… haverá um só rebanho e um só pastor” (João XVII, 21; X, 16), quase como se nessas palavras o desejo e aspiração de Jesus Cristo, não tivessem surtido efeito. Acreditam, portanto, que a unidade da Fé e do governo, nota distintiva da verdadeira Igreja de Cristo, no fundo jamais existiu, e mesmo agora inexista: pode-se, certamente, desejá-la e talvez até alcança-la com um pouco de boa vontade comum, mas, no entanto, do jeito que vão as coisas, é um ideal e mais nada. Acrescentam que a Igreja por si mesma, isto é, por sua própria natureza, é dividida em partes; ou seja, é composta de várias comunidades distintas, separadas umas das outras, semelhantes em alguns pontos da doutrina, embora diferindo em outros, e cada uma com seus direitos” (Pio XI, Mortalium Animos, Carta Encíclica de 6 de janeiro de 1928 contra o ecumenismo).

O “prefeito ecumênico” pode explicar-se? Para ele, a única Igreja de Cristo já existe, sim ou não? É a Igreja Católica, sim ou não?

Como será a Igreja do futuro?

Infelizmente, temo que já tenha sido explicado. O objetivo final (a união na Igreja das igrejas) se dará no futuro, um futuro distante e… desconhecido.

“Este é, pois, o propósito, a finalidade de toda obra ecumênica: chegar à unidade real da Igreja [que não existe agora? Que é apenas aparente? Irreal? N.d.a.], a qual implica pluriformidade em formas que ainda não podemos definir” (30 Giorni, p. 66). E em outro ponto: “No momento, eu não ousaria sugerir realizações concretas, possíveis e pensáveis ​​para o futuro” (30 Giorni, página 68).

Ricca, protestantemente, apreciou muito essas expressões de Ratzinger. Porque coincidem com seu pensamento. Depois de recordar os oito séculos de lutas entre valdenses e católicos, Ricca acrescenta: “Por que estamos juntos?” Estamos juntos porque, se é verdade que sabemos bem quem somos e muito bem quem fomos, ainda não sabemos quem seremos. E a própria reserva do cardeal em não propor modelos, isto é, precisamente em não saber, é precisamente aquela atitude que, no fundo, nos liga” (30 Giorni, p. 69). Unidos, valdenses e seguidores do Vaticano II, em não saber como a Igreja será! (Porque, como Ricca explica, ou as igrejas mudam ou o ecumenismo morre). Que um protestante se reconheça na ideia de uma futura Igreja desconhecida, vá lá. Mas um católico? Como tudo isso pode ser conciliado com a indefectibilidade da Igreja? Que outro modelo de Igreja pode ser proposto aos protestantes, senão o desejado por Cristo e fundado em Pedro? Como pode um “cardeal” não saber como a Igreja deveria ser, quando Cristo a fundou há dois mil anos?

Parece que Ratzinger tem sobre a Igreja a mesma concepção que Teilhard de Chardin tem de Deus: a Igreja não existe… ainda; está evoluindo em direção ao seu ponto ômega, o objetivo final do ecumenismo.

Unidade na diversidade

A Igreja então será uma (na multiplicidade); isso no futuro. Quando? Só Deus sabe. E nesse ínterim? Provisoriamente estamos em um “tempo intermediário” (30 Giorni, nº 2, página 66): “unidade na diversidade”. Ratzinger explica: “Esse modelo pode ser definido com a conhecida fórmula da ‘diversidade reconciliada’, e neste momento me sinto muito próximo das ideias formuladas pelo meu querido colega Oscar Cullmann” (30 Giorni, nº 2, pág. 67). Qual seja o modelo Cullmann, já vimos; agora vamos ver como Ratzinger o apresenta. Basta dizer que Ricca o entendeu perfeitamente: “Antes de tudo”, diz ele, “quero dizer que concordo com 99%, para não dizer 100%, com o que o cardeal Ratzinger acabou de dizer. Aliás, estou feliz e satisfeito com suas palavras. Sobre essa base é possível construir: a mesma ideia de diversidade reconciliada é, como vocês sabem, de origem luterana)” (30 Giorni, nº 2, p. 69). Ratzinger, portanto, quer nos levar a uma igreja pluriforme, ainda indeterminada, partindo de um fundamento luterano.

Retorno ao essencial

Mas como se concretiza essa “diversidade reconciliada”? Não é uma questão, adverte Ratzinger, de “estar contente com a situação que temos”, de se resignar estaticamente a ser diferente (página 68).

Em vez disso, é necessário perseverar dinamicamente em “caminhar juntos, na humildade que respeita o outro, mesmo onde a compatibilidade na doutrina ou práxis da igreja ainda não foi obtida; consiste na disposição de aprender com o outro e deixar-se corrigir pelo outro, em alegria e gratidão pelas riquezas espirituais do outro, numa essencialização permanente de Fé, doutrina e práxis, sempre purificadas e nutridas pelas Escrituras, mantendo o olhar fixo no Senhor…” (30 Giorni, página 68).

Quantas contradições em tão poucas linhas!

Como “caminhar juntos” pensando e caminhando em modos diferentes?

Como poderia a “Cátedra da Verdade”, a Igreja de Cristo, aprender (algo que já não conhecesse) e até mesmo deixar-se corrigir por hereges? Como é possível respeitar a heresia e o cisma, em outras palavras, o pecado? Pois é pela condição de hereges e cismáticos que as seitas protestantes e “ortodoxas” se distinguem de nós.

E finalmente, o que significa “essencialização” (permanente!) da Fé? Essa ideia é o ponto central do pensamento de Ratzinger (e não apenas dele): “A busca pelo wesen, pela essência do cristianismo, é uma busca típica da teologia alemã há mais de um século. Basta recordar-se dos trabalhos de L. Feuberbach (1841), de A. Harnack (1900), de K. Adam (1924), de R. Guardini (1939), de M. Schmans (1947) e da recente proposição de K. Rahner em relação a uma formulação sintética da mensagem cristã. Assim como as tentativas mencionadas acima, a busca de Ratzinger pela essência do cristianismo ostenta claramente o selo da época em que ele a viu nascer, mais frequentemente designada como “a era pós-cristã da fé”, caracterizada não tanto pela negação dessa ou daquela verdade de fé, como pelo fato de que a fé como um todo parece ter perdido seu interesse, sua capacidade de interpretar o mundo diante de outras concepções que parecem dotadas de maior eficácia operacional” (Ardusso, op. cit., p. 457).

De fato, qualquer tentativa de “essencializar” a fé corre o risco de destruir a própria fé. Contra os ecumenistas, Pio XI já escreveu: “Além disso, no que se refere ao que se deve acreditar, não é lícito estabelecer aquela diferença em voga entre pontos fundamentais e não-fundamentais; os primeiros, que devem ser cridos e aceitos absolutamente, e os segundos, que ao contrário podem ser deixados ao livre-arbítrio dos fiéis; pois a virtude da Fé tem sua causa formal na autoridade reveladora de Deus, que não admite distinção desse tipo. Portanto, todos os que realmente pertencem a Cristo emprestarão a mesma Fé ao dogma da Mãe de Deus concebida sem pecado original, como, por exemplo, ao mistério da augusta Trindade; acreditarão com a mesma firmeza no Magistério infalível do Pontífice Romano, no mesmo sentido com que o Concílio Ecumênico Vaticano o definiu, como na Encarnação do Senhor. Pelo fato que a Igreja definiu e sancionou essas verdades com decretos solenes em épocas diferentes, e algumas recentemente, não se pode, por isso mesmo, dizer que são menos certas ou menos críveis. Não foram todas reveladas por Deus?” (Mortalium Animos).

Ratzinger não explica claramente o que seria o essencial da fé e o que seria “superestrutura” (seria essencial “que esta [Igreja] fosse apresentada como uma igreja de fé totalmente a serviço dos homens e livre das superestruturas que obscurecem a pureza de seu rosto”, segundo Ardusso, op.cit., página 458).

No entanto, Ratzinger conclui afirmando que, no que diz respeito à palavra “essencialização”, seu “pensamento coincide com o do professor Ricca” (30 Giorni, nº 2, página 72). “Devemos realmente voltar ao centro, ao essencial; ou, em outras palavras, o problema central do nosso tempo é a ausência de Deus, portanto, o principal dever dos cristãos [católicos e não-católicos, n.d.a] é dar testemunho do Deus vivo” (30 Giorni, No. 2 página 73). Certo, assim os cristãos de todos os gêneros (ou quase!) estarão de acordo sobre aquele mínimo que é a existência de Deus, “a realidade do julgamento e da vida eterna” (página 73), e esse “imperativo”, com efeito, “une” porque “todos os cristãos estão unidos na fé desse Deus que se revelou, encarnado em Jesus Cristo” (30 Giorni, No. 2, p. 73). (Para a condenação dessa ideia de testemunho comum, refira-se sempre à Mortalium Animos).

Purificação recíproca

Mas como se dará a “essencialização” permanente no plano prático (que Congar – recorda Ricca – chamava de “retorno às fontes”)?

Para Ratzinger, esse processo positivo vem das outras “igrejas”. A Igreja Católica seria assim continuamente purificada… pelas seitas heréticas. É por isso que, na expectativa da unidade (pluriforme), é bom que haja diversidade (reconciliada).

Oportet haereses esse“, diz São Paulo. Talvez não estejamos todos maduros ainda para a unidade, talvez precisemos do espinho na carne, que é o outro em sua alteridade, para despertarmos de um cristianismo incompleto e redutor. Talvez seja nosso dever ser um espinho para o outro. E existe o dever de se deixar purificar e enriquecer pelo outro. (…) Entendendo o momento histórico em que Deus ainda não nos concede a perfeita unidade, reconheçamos o outro, o irmão cristão, reconheçamos as igrejas irmãs, amemos a comunidade do outro, enxerguemo-nos juntos em um processo de educação divina em que o Senhor usa as diferentes comunidades, uma para a outra, para nos tornar capazes e dignos da unidade definitiva” (30 Giorni, nº 2, pág. 68).

Segundo Ratzinger, então, Deus desejaria as “heresias” (enquanto ele somente as permite, como permite o mal); da mesma forma, Deus quer, temporariamente, as divisões, as diferentes comunidades, para que uma aperfeiçoe a outra. Por conseguinte, a Igreja Católica seria “despertada”, “purificada”, “enriquecida” e não mais “incompleta” graças às seitas heréticas das quais o Senhor se serve. E vice-versa, a Igreja Católica teria uma função análoga às outras igrejas. Todas, dialeticamente, a caminho da futura unidade ainda indeterminada de uma Igreja desconhecida que deve resultar desse processo.

Modelo, mas apenas modelo, dessa Igreja futura é a Igreja primitiva, a qual estava unida “em três elementos fundamentais: Sagrada Escritura, regula fidei e estrutura sacramental da Igreja” (30 Giorni, No. 2, p 66), mas muito plural em todo o resto. Contudo, não era unida sob o magistério e o governo do papa? E mesmo com suas diversidades locais, não professava a mesma Fé, o que não é o caso dos protestantes e dos ortodoxos?

Ratzinger nos pede para aderir a uma futura igreja desconhecida, modelada em uma falsa igreja antiga, falseada para abandonarmos, na realidade, a eterna e imutável Igreja de Cristo.

Conclusão: Pio XI julga Ratzinger

Se Ratzinger não sabe para qual modelo futuro essas igrejas “espinhosas na carne” vão, que “essencializam” umas às outras, Pio XI lhe dirá. O Papa pronunciou naquela encíclica que o próprio Ratzinger se atreveu a declarar em conformidade com o Vaticano II (!), Mortalium Animos.

A teoria ecumênica, ou teoria pan-cristã, como era então chamada, “abre o caminho para o naturalismo e o ateísmo” (p. 79), prepara “uma suposta religião cristã que está a mil milhas da Igreja de Cristo”, “é o caminho para negligenciar a religião, ou indiferentismo, e para o modernismo”, “é um disparate e uma bestialidade”. Mas não vamos colocar toda a culpa em Ratzinger. Ele é apenas o fiel intérprete do Vaticano II, assim como Karol Wojtyla. Esse é o corpo estranho que deve ser extirpado e que as forças saudáveis ​​da Igreja, esposa de Cristo, sem dúvida rejeitarão. Quanto a nós, queremos pertencer à Igreja Católica e não às ruminações heterodoxas de Oscar Cullmann e seu discípulo, diferentemente unido e unidamente diferente, Joseph Ratzinger.

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