Os filhos de Deus em Gênesis: Juízes, homens, anjos ou demônios?

Antes de retomar o estudo sobre a doutrina da inspiração bíblica, que tenho feito junto dos membros assinantes do canal, eu gostaria de responder publicamente a uma pergunta sobre como interpretar Gênesis VI, 1-4, onde encontramos pela primeira vez na Sagrada Escritura a menção dos filhos de Deus (béni Elohim) e dos gigantes (nephilim). Esse breve exame nos dará a oportunidade de mostrar a todos a grande utilidade dos estudos bíblicos, tanto para corrigir os que de boa fé caem em erros perigosos, como para instruir e santificar a todos que amam a verdade.

Em primeiro lugar, vejamos o texto em questão. A versão que utilizo é aquela do Padre Figueiredo, revista pelos sacerdotes da Liga de Estudos Bíblicos (LEB), disponível na íntegra em nosso site no link Bíblia Católica Comentada:

1 Como os homens tivessem começado a multiplicar-se, e tivessem gerado suas filhas;
2 vendo os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, tomaram por mulheres as que de entre elas escolheram.
3 E Deus disse: O meu espírito não permanecerá para sempre no homem, porque é carne; e o tempo da sua vida não será senão cento e vinte anos.
4 Ora naquele tempo havia gigantes sobre a terra. Porque como os filhos de Deus tivessem tido comércio com as filhas dos homens, pariram estas aqueles possantes homens, que tão famosos são na antiguidade.

Parece que as principais questões ou dificuldades levantadas por estes versículos são as seguintes:

1 – Quem são estes filhos de Deus (béni Elohim)?
2 – O que Deus quis dizer com o tempo de sua vida não será senão cento e vinte anos?
3 – Quem são os tais gigantes (nephilim) de que fala a Sagrada Escritura?

À primeira questão, que me ocuparei nesta primeira exposição, deram-se três respostas ao longo da história, que seguem mais ou menos a sorte das interpretações que se podem fazer do termo Elohim, conforme o uso das Sagradas Escrituras, isto é, ele pode ser tomado no sentido de juízes, anjos ou Deus.

A versão caldeia, árabe, Símaco, Abenezra e outros entenderam béni Elohim como filhos dos príncipes, dos poderosos, dos ilustres e outros sinônimos, em contraposição às filhas do povo ou plebeias. A justificativa é bem simples: a Sagrada Escritura chama os juízes, príncipes e sacerdotes do povo de Elohim, isto é, deuses, como em Êxodo 21, 6; 22, 28; Sl 81, 6, porque eles eram reverenciados como verdadeiros e legítimos representantes de Deus. Áquila, em sua tradução grega da Escritura, seguiu o mesmo sentido, optando por uma tradução mais literal: filhos dos deuses.

Afonso Tostado em seu Commentaria in Genesim facilmente dispensa essa hipótese dizendo que, como o dilúvio é um castigo universal, contra o pecado de todos os homens, não convém que o pecado de alguns particulares, os príncipes, seja a causa de um castigo tão geral. Cornélio a Lapide, por outra parte, concede que esse sentido pode ser mantido, desde que por príncipes se entenda a universalidade dos homens bons, representados pelos descendentes de Set que, pelo mesmo título de nobreza, também podem ser chamados filhos de Deus, do mesmo modo como as Escrituras chama aos montes mais elevados de montes do Senhor.

Alguns exemplares da Septuaginta verteram béni Elohim como anjos, que alguns antigos entenderam ao pé da letra. Assim Lactâncio (l. II, c. 14) acreditou que se tratava propriamente de anjos, dotados ainda de liberdade e do poder de merecer e não merecer. Esse sentimento foi muito comum entre os antigos, Flávio Josefo (Ant., l. 1, c. 4) afirmou seriamente que os anjos tinham buscado o comércio com as mulheres. Filão de Alexandria também imaginou aqui que por filhos de Deus se devem entender os espíritos que, voando pelos ares sem ligação com corpo algum, sentiram o desejo de fazer do corpo dos homens a sua morada.

São Justino, por sua vez, como se depreende do que se lê em sua Primeira Apologia, afirmava que aqueles que buscaram o comércio com as mulheres foram os anjos maus, isto é, os demônios. Atenágoras, outro grande apologista cristão, depois acrescentou que a queda dos anjos veio do seu amor impudico pelas mulheres. São Clemente de Alexandria parece ter tido os mesmos sentimentos (Stomat. III, Pedagog. II).

Entre os latinos, Tertuliano (De Idolatria c. 9; De Cultu Feminarum III, c. 10 etc.) atribuiu a esses anjos amantes das mulheres a invenção da astrologia, das pedras preciosas e dos metais e drogas que as mulheres costumam se servir para aumentar a beleza. Seu discípulo, São Cipriano de Cartago parece ter seguido seu mestre até os mais mínimos detalhes. Santo Ambrósio de Milão e ainda outros antigos autores eclesiásticos seguiram geralmente essa opinião, que estranhamente parece nos indicar que os anjos, bons ou maus, tinham corpos, eram capazes de sentir paixões sensíveis como nós e que seu estado definitivo ainda não tinha sido fixado por Deus. É provável que a facilidade com que aderiram a essa crença bem peculiar se deva ao fato de que esses Padres tinham por autêntico o livro apócrifo de Enoc, o qual pela sua origem obscura e relatos fabulosos, logo que se estabeleceu o cânon bíblico, foi totalmente rejeitado.

Por outra parte, defendendo essa tradução dos Setenta, Santo Agostinho observa que por vezes as Escrituras chamam de anjos aos mesmos homens, no sentido literal de mensageiros de Deus, como sucedeu ao falar de São João Batista (Mar. I, 2) e do profeta Malaquias (Mal. II, 7). Portanto, nada impede que esses anjos sejam os homens encarregados de transmitir para as próximas gerações à religião revelada, isto é, os patriarcas descendentes de Set.

O hebraico e a Vulgata entendem béni Elohim justamente como filhos de Deus e, além das possíveis interpretações assinaladas acima, temos aquela dos Padres que mais detidamente examinaram essa questão, segundo os quais os filhos de Deus referidos em Gn VI, 2 são os descendentes de Set que depois infelizmente se deixaram arrastar pela beleza das filhas e descendentes de Caim e, misturando-se com elas, corromperam-se irremediavelmente.

Entendendo que os anjos de Deus são espíritos, como ensina o Salmo CIII, 4, ao narrar poeticamente o primeiro dia da criação, e sabendo que não é próprio dos anjos, assim como não o é dos bem-aventurados no céu, tomar mulheres como suas esposas (Mat. XXII, 30), logo viram os Santos Padres que, seja pela graça que lhes mereceu o título de filhos de Deus, seja pela queda que lhes mereceu o castigo terrível do dilúvio, é aos filhos de Set que se deve entender por filhos de Deus. Assim julgaram São João Crisóstomo em sua Homilia 22 sobre o Gênesis; Teodoreto, na questão 48 sobre o mesmo livro; São Cirilo de Alexandria no livro 9, contra Juliano; e Santo Agostinho no livro 15 da Cidade de Deus, capítulo 23. Esse é o sentir comum de todos os Doutores Católicos.

É sabido que os antigos pagãos, como Platão em seu diálogo chamado Crátilo, acreditaram que os heróis nasceram do amor (eros) dos deuses pelas mulheres e assim muitos personagens da mitologia são tidos como semi-deuses como é o caso famoso de Hércules, dentre outros. Os poetas modernos também, provavelmente inspirados por essas histórias, gostam de tomar esse partido. Esse erro, porém, por antigo ou moderno que seja, não pode dar autoridade a outro anda maior. Permanecerá sempre o fato incontestável de que um exame diligente do contexto imediato, próximo e remoto de Gênesis VI, 1-4 revela claramente que “filhos de Deus” se refere aos filhos e descendentes de Set e “filhas dos homens” se refere às filhas e descendentes de Caim.

Contexto Imediato. Estes quatro versículos são a primeira parte da preparação para a história do dilúvio universal. Nessa primeira parte (Gn VI, 1-4) se retrata a corrupção geral do gênero humano. A segunda parte (Gn VI, 5-8), traz a consequência desse estado de corrupção geral dos homens, isto é, o anúncio do dilúvio, do qual só escaparia o justo Noé e a sua família, oito pessoas apenas. Então, a preparação do dilúvio consiste destas duas partes: Gn VI, 1-4: A profunda corrupção do gênero humano provocada pela mistura entre os filhos de Deus e as filhas dos homens e Gn VI, 5-8: o anúncio do dilúvio para castigar a corrupção humana resultante desse conúbio.

Portanto, sendo os homens em sua totalidade o objeto de semelhante narrativa, a mistura ocorre entre raças de indivíduos humanos que somadas equivalem a toda humanidade. Logo, não se refere nem a anjos, nem a alguns homens em particular.

Contexto Próximo. No capítulo anterior, Gênesis V, temos a genealogia de Adão por Set até Noé, uma lista dos longevos e piedosos patriarcas ante-diluvianos, entre os quais encontramos Enoc que andou com Deus, isto é, viveu santa e piedosamente, e por isso foi arrebatado ao Céu. Josefo diz inclusive que é a partir desse tempo que começa o comércio dos filhos de Deus com as cainitas, mostrando-nos que o que se segue em Gn VI, 1-8 seria uma espécie de digressão. Ora, essa linhagem de Set sobreviverá ao dilúvio e é dela que nos vem o Patriarca Abraão, o Rei Davi e sobretudo o Messias Nosso Senhor Jesus Cristo.

Já no capítulo anterior, Gênesis IV, depois da famosa história de Caim e Abel, encontramos aquela linhagem maldita que não sobreviverá ao dilúvio, não mais a do justo Set, mas a do impenitente Caim, essa toda diferente daquela: não vemos nem longevidade, nem piedade da parte dos descendentes de Caim, antes vemos na pessoa de Lamec como que concentrada toda a impiedade de sua raça, ele que foi o primeiro a violar, movido pela concupiscência dos olhos, o santo matrimônio, com a prática da bigamia, e a jactar-se de sua conduta homicida com ímpios versejos. Como bem se vê, ninguém nessa raça se sobressai por obras pias, eles somente pensam nas coisas da terra, e assim um se destaca por ter inventado a metalurgia, outro a música, outro as tendas etc.

Contexto Remoto. Daí fica evidente que depois da criação e queda de Adão e Eva (Gn I-III), e como uma consequência do pecado e impenitência de Caim (Gn IV, 1-15), havia duas raças bem distintas entre os homens: uma que perseverava na esperança do Redentor prometido, outra que vivia no esquecimento de Deus e das coisas santas. É nesse contexto que o autor sagrado vem nos apresentar a causa da corrupção dos homens, que exigiria tão rigoroso castigo da parte de Deus.

Portanto, eis como devemos entender a relação entre filhos de Deus e filhas dos homens descrita em Gênesis VI, 1-2:

As duas raças humanas, aquela de Caim e aquela de Set, depois de terem vivido separadamente, encontram-se e dessa união derivam os maiores males. Diz-se que os filhos de Deus vêem a formosura das filhas dos homens, isto é, com olhos profanos e sensuais, mais como o bígamo Lamec do que como o justo Enoc, dando mais valor à beleza, que tinham em comum com os maus, do que à virtude, que os distinguia e enobrecia.

Claro está que os filhos de Deus não são os anjos, como quiseram São Justino, São Clemente de Alexandria, Tertuliano, Atenágoras, Lactâncio e muitos poetas modernos que tomaram esse partido, os anjos são puros espíritos (cf. Sl CIII, 4) que por sua própria natureza não se casam e dão em casamento como fazem os homens (Mt XXII, 30). Essa expressão designa propriamente os descendentes de Set, que, pelo seu caráter religioso, multiplicaram-se até então como verdadeiros filhos do Senhor. Do mesmo modo, por filhas dos homens, deve-se entender as mulheres saídas da raça de Caim, e que traziam consigo sentimentos mundanos. Tomaram-nas por mulheres e logo foram atraídos para seus caminhos mundanos e perversos, como aconteceu tantas vezes desde então.

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