O Concílio Vaticano II tem ensinamentos infalíveis? O Magistério Ordinário e Universal

O CONCÍLIO VATICANO II ENSINOU INFALIVELMENTE?
O Magistério Ordinário e Universal

Por John S. Daly
Segunda Edição – Revisada

Publicado pela primeira vez na Revista “The Four Marks”.
Via NOVUS ORDO WATCH

Traduzido por Célio Adriel
Revisto por Diogo Rafael Moreira

Grande parte dos católicos ditos tradicionalistas sabem que o Concílio Vaticano II contém e ensinou heresias e outros erros doutrinários. Eles se recusam convictamente a aceitar esses falsos ensinamentos. Entretanto, quando confrontados acerca da possibilidade da rejeição de um Concílio Geral da Igreja Católica, eles respondem que o Vaticano II foi um tipo peculiar de concílio; este não foi dogmático e também não gozava de infalibilidade. Como tal, este poderia errar, e errou, e os católicos, nessa situação, podem rejeitar seus erros sem duvidar da legitimidade e da autoridade de quem promulgou esses erros. Muitas vezes, acrescentam que a própria autoridade promulgadora – Paulo VI – declarou explicitamente que seu concílio era pastoral.

Essa explicação comum ignora a doutrina católica e a realidade pura. O fato é que o Concílio Vaticano II preenche claramente as condições exigidas para gozar de infalibilidade, de modo que nem o próprio Paulo VI atreveu-se a negá-lo. Portanto, se seu ensino contém erros flagrantes contra a fé, essa condição põe em causa a legitimidade do ofício papal de Montini.

Para fins de demonstração, examinemos mais nitidamente às maneiras como a Igreja ensina a verdade divina aos seus filhos, de forma infalível. Aqui está o que o Concílio Vaticano I, em 1870, ensinou sobre essa questão:

Todas essas coisas devem ser cridas com a fé divina e católica que estão contidas na Palavra de Deus, escrita ou transmitida oralmente, e são propostas pela Igreja por um juízo solene ou por seu magistério ordinário e universal para serem cridas como divinamente reveladas.

(Constituição dogmática Dei Filius, capítulo 3, “De Fide”, Denzinger 1792)

É impressionante como muitos católicos tradicionalistas, e até alguns sedevacantistas, se esqueceram inteiramente de uma dessas duas maneiras que a Igreja utiliza para transmitir os seus ensinamentos. Frequentemente, afirma-se que apenas as definições solenes de papas e Concílios obrigam sob pena de heresia e são protegidas pela infalibilidade. No entanto, confere-se aqui precisamente um pronunciamento solene afirmando que os católicos têm uma obrigação idêntica de crer nos ensinamentos da Igreja (sob a mesma pena de heresia), não importando se este mesmo ensinamento for comunicado por “juízos solenes” ou pelo “magistério ordinário e universal”. Ambos são igualmente infalíveis. Nem deveria haver nada de surpreendente nisso, pois o “magistério ordinário” é precisamente a forma ordinária e usual pela qual os católicos recebem os ensinamentos da Igreja e é absurdo sugerir que seu conhecimento da doutrina não seja garantido como sendo verdade, pois nesse caso a grande massa de católicos que não consultam diretamente os textos de pronunciamentos dogmáticos seriam inaptos de fazer um verdadeiro ato de fé divina, pois eles teriam apenas uma opinião mais ou menos provável sobre o que a Igreja de Cristo de fato ensina.

Escrevendo na Clergy Review de abril de 1935, o cônego George D. Smith, Ph.D., DD, já estava alertando para este mal-entendido, que piorou entre os católicos tradicionalistas desde o Vaticano II:

O que pode ser esquecido é o ensinamento ordinário e universal da Igreja. Não é, de forma alguma, incomum encontrar a opinião, se não expressa, pelo menos nutrida, de que nenhuma doutrina deve ser considerada de caráter dogmático, a não ser que tenha sido solenemente definida por um Concílio Ecumênico ou pelo próprio Soberano Pontífice. Isso não é necessário de modo algum. Basta que a Igreja o ensine por seu magistério ordinário, exercido pelos Pastores dos fiéis, os Bispos, cujo ensinamento unânime em todo o mundo católico, seja veiculado expressamente por meio de cartas pastorais, catecismos expedidos pela autoridade episcopal, sínodos provinciais, ou seja de maneira implícita por meio de orações e práticas religiosas permitidas ou incentivadas, e também por meio do ensino de teólogos aprovados. Esses ensinamentos não são menos infalíveis do que uma definição solene emitida por um Papa ou um Concílio geral. Se, então, uma doutrina aparece nesses órgãos da Tradição divina como pertencente direta ou indiretamente ao depositum fidei [“depósito da fé”] confiado por Cristo à Sua Igreja, deve ser crida pelos católicos com fé divina e católica ou eclesiástica, mesmo que nunca tenha sido objeto de uma definição solene em um Concílio ecumênico ou de um pronunciamento Ex Cathedra do Soberano Pontífice.

Outro teólogo fez o mesmo ponto um pouco mais tarde:

Por uma estranha reversão, enquanto a infalibilidade pessoal do papa em um julgamento solene, por tanto tempo contestada, foi definitivamente colocada além de qualquer controvérsia [em 1870], é o Magistério Ordinário da Igreja Romana que parece ter sido perdido de vista. É como se o próprio brilho da definição do Vaticano I tivesse lançado na sombra a verdade até então universalmente reconhecida; poderíamos quase dizer como se a definição da infalibilidade dos juízos solenes os tornasse doravante o método exclusivo pelo qual o Soberano Pontífice deveria apresentar a regra de fé. (…) A marca teológica da heresia deve ser aplicada, não só ao que contradiz uma verdade definida, mas também ao que se opõe a uma verdade claramente exposta pelo Magistério Ordinário.

(Dom Paul Nau: O Magistério Ordinário da Igreja Teologicamente Considerado, Solesmes, 1956.)

Quando dizemos que muitos católicos tradicionalistas falharam totalmente em entender este ponto, temos um exemplo óbvio, fornecido pelo falecido Sr. Michael Davies. Em seu O Concílio Vaticano II e a liberdade religiosa, (p. 257), ele escreveu: “Os testemunhos que se seguem devem ser mais do que adequados para convencer qualquer pessoa razoável de que os documentos do Vaticano II não pertencem ao Magistério Extraordinário e, portanto, não são infalíveis, consequentemente, não são divinamente protegidos dos erros. (Grifo nosso.) Esta frase equivale a uma negação categórica da infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal, que, como acabamos de ver, é um dogma de fé!

Deve-se notar também que quando os Padres do Concílio Vaticano I discutiam o esboço de Dei Filius antes da votação, foram levantadas questões sobre o significado da palavra “universal” na expressão “Magistério Ordinário e Universal”. O “relator” oficial do Concílio, Dom Martin, referiu-os à Tuas Libenter do Papa Pio IX (21 dezembro de
1863). Este documento (Denzinger 1679-84) esclarece muito bem as obrigações dos fiéis com relação aos atos pelos quais os representantes da Igreja docente lhes comunicam a doutrina. Aqui está a parte mais relevante, que confirma precisamente as palavras de Mons. Martin:

Mesmo se limitando à submissão feita pelo ato da fé divina, esta não poderia se restringir ao que foi definido pelos decretos expressos dos concílios ecumênicos e pelos decretos desta Sé, mas deve se estender também ao que é aprovado como divinamente revelado pelo Magistério Ordinário de toda a Igreja espalhada pelo mundo…

(Denzinger 1683)

Assim, o “Magistério Ordinário e Universal” designa o poder docente do Papa e dos bispos de todo o mundo juntos. Nenhum tipo especial de ensino se faz necessário. Tampouco é preciso que o ensino seja ministrado por um longo período de tempo. Se a autoridade universal de ensino, ou seja, o Papa e os bispos com unanimidade moral, transmitirem aos fiéis um ensinamento revelado, estes são obrigados, sob pena de heresia, a acreditar nessa doutrina com fé divina. É uma negação do significado certo desse dogma rejeitar alguns ensinamentos que o Papa e os bispos estão transmitindo aos fiéis hoje, com o fundamento de que o mesmo consenso não pode ser buscado na história.

A infalibilidade da Igreja também se estende, é claro, a questões relacionadas com a revelação, mas não incluídas nela, e que devem ser cridas com fé eclesiástica em vez de divina, todavia, por enquanto não temos necessidade de alargar esta distinção. Devemos simplesmente sustentar o fato de que quando o Papa e os bispos concordam em comunicar aos fiéis certas declarações sobre fé e moral como pertencentes ao ensino da Igreja, o Espírito Santo protege esta doutrina de qualquer perigo de erro e todos os católicos estão tão comprometidos abraçar este ensino como se fosse ensinado por um juízo solene Ex Cathedra.

É tudo de que precisamos para confirmar a afirmação de que o Vaticano II cumpriu as condições para a infalibilidade… se Paulo VI fosse um legítimo e verdadeiro papa. Pois foi certamente uma ocasião em que, ao que tudo indicava, o “Papa” e os bispos se uniram para transmitir aos fiéis um corpo substancial de princípios religiosos apresentados como autêntica doutrina católica. Assim, mesmo que o Concílio não tenha emitido os juízos solenes conhecidos como atos do Magistério Extraordinário, suas doutrinas necessariamente pertencem ao ensino infalível do Magistério Ordinário e Universal… desde que tenham sido sempre promulgadas por um legítimo Papa, dado que os bispos não detêm desta mesma proteção sem à Sua Cabeça.

Como já observamos, a resposta inevitável a esse argumento é que Paulo VI, e o próprio Concílio Vaticano II, afirmaram o contrário. Isso seria um paradoxo extraordinário se assim fosse, pois a infalibilidade não é uma opção que os papas possam ativar e desativar por capricho: quando um verdadeiro Papa e verdadeiros bispos católicos ensinam doutrina aos fiéis, o Espírito Santo os protege do erro, queiram eles ou não, se assim podemos expressar. Mas, o fato é que não é verdade que Paulo VI ou o próprio Concílio jamais negaram que o Vaticano II ensinou infalivelmente.

Vamos examinar as evidências frequentemente aduzidas. Para fazer isso, devemos voltar ao nosso extrato do Sr. Michael Davies. Em apoio da sua declaração, Davies cita as seguintes palavras de Paulo VI em uma audiência geral de 12 de janeiro 1966:

Tendo em vista a natureza pastoral do Concílio, evitamos quaisquer declarações extraordinárias de dogmas dotados da nota da infalibilidade, mas ainda assim deu ao seu ensino a autoridade do Magistério Ordinário que deve ser aceita com docilidade de acordo com o pensamento do Concílio a respeito da natureza e dos objetivos de cada documento.

Davies inquire exultante: “O que poderia ser mais evidente? O Papa Paulo VI afirma, sem equívoco, que os documentos do Vaticano II não pertencem ao Magistério Extraordinário e que não são dotados da nota da infalibilidade”. Mas embora concordemos com Davies que sua primeira reivindicação está certa – nenhum ato do Magistério Extraordinário – somos forçados a negar sua segunda reivindicação – nenhuma infalibilidade.

Sem dúvida as palavras de Giovanni-Battista Montini (Paulo VI) são um tanto ambíguas e tendenciosas aqui, mas ele definitivamente não afirma que nenhum ensinamento do Concílio foi protegido pela infalibilidade. Ele apenas afirma que nenhum ensinamento do Concílio pertenceu ao infalível Magistério Extraordinário (o que o Concílio Vaticano I chama de “juízos solenes”). Em seguida, acrescenta que tudo pertenceu ao Magistério Ordinário, sem comentar se isso também tem caráter infalível. Deve-se notar também que Davies enfraquece gravemente a ênfase do texto original, que diz: “fortificou seus ensinamentos com a autoridade do supremo Magistério Ordinário”.

Além disso, na sua carta de 21 de setembro 1966 ao cardeal Pizzardo sobre este assunto, Paulo VI afirma que o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre questões de fé e moral “constitui uma norma próxima e universal da verdade, da qual nunca é lícito que os teólogos se apartem…”. Evidentemente, isso é mais do que se pode afirmar indiscriminadamente de toda encíclica ou ato do Magistério Ordinário que não preencha a condição de universalidade. Isso só pode ter sido dito de ensinos protegidos pela infalibilidade. As pesquisas de Davies parecem não o ter levado à essa citação.

Sua segunda fonte e autoridade “decisiva” é a Notificação formal publicada em março de 1964 pelo secretário do Concílio, o Arcebispo Felici, e posteriormente anexada à Constituição Dogmática Lumen Gentium, afirma que “tendo em vista a prática conciliar e o propósito pastoral do presente concílio, este Sínodo sagrado define as questões de fé e moral como vinculativas para a Igreja apenas quando o próprio Sínodo o declara abertamente”. Mas, mais de uma vez, este texto apenas exclui definições solenes, (uma vez que o Concílio nunca pretendeu fazer qualquer uma), todavia, de forma alguma exclui a infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal, que ensina sem estas mesmas definições.

E pelo mesmo tipo de descuido infeliz que levou o Sr. Davies (que ele descanse em paz) a esquecer da palavra “supremo” em sua primeira citação, ele omitiu inteiramente a seguinte frase crucial: “Outros assuntos que o Sínodo sagrado propõe como sendo a doutrina do Supremo Magistério da Igreja devem ser recebidos e acolhidos por todos e cada um dos fiéis de Cristo, de acordo com as intenções do próprio Sínodo sagrado, manifestadas quer pelo assunto, quer pela forma de expressão, de acordo com as normas de interpretação teológica.”

Assim, vemos que o Concílio de fato afirma formalmente ter exercido o supremo Magistério da Igreja e nos remete para o reconhecimento do status e da autoridade de seus vários ensinamentos aos seus próprios textos e às normas tradicionais de interpretação teológica. Não fez “definições solenes” (Magistério Extraordinário), mas seus ensinamentos possuem a autoridade do Supremo Magistério Ordinário e todos os fiéis são obrigados, ele afirma, a recebê-los e abraçá-los.

É muito difícil ver como o “Magistério Ordinário Supremo” poderia ser outra coisa senão o “Magistério Ordinário e Universal” do Vaticano I e da Tuas Libenter do Papa Pio IX, que é necessariamente infalível em todos os seus ensinamentos sobre a fé e a moral. Não só porque os atos não-infalíveis do Magistério Ordinário não podem ser “supremos”, mas também porque o critério que distingue o Magistério Ordinário e Universal infalível dos atos não-infalíveis do Magistério Ordinário são precisamente a sua universalidade, e esta condição nunca foi tão evidentemente cumprida como no Concílio Vaticano II, quando quase todos os bispos do mundo estavam reunidos, e no momento da promulgação dos decretos pelo homem reconhecido como Papa, nenhuma voz dissidente foi ouvida.

Atendendo à Notificação de 1964 e às palavras de Paulo VI, sejamos instruídos pelo Concílio quanto às suas próprias intenções quanto ao estado dos seus ensinamentos. Dois de seus decretos são chamados de “constituições dogmáticas”, e “dogmático” é uma palavra inusual para identificar doutrinas falíveis ou não obrigatórias. Uma das constituições dogmáticas é a Lumen Gentium, concernente à Igreja, que estabelece a seguinte regra teológica:

Embora os bispos não gozem individualmente da prerrogativa da infalibilidade, ainda quando, mesmo dispersos pelo mundo, mas mantendo o vínculo de comunhão entre si e com o sucessor de Pedro, eles concordam em ensinar autenticamente uma única doutrina de fé e moral como para ser definitivamente guardada, eles expressam infalivelmente o ensino de Cristo.

Mesmo se já não fosse uma verdade católica, como sendo ensinada por todo teólogo aprovado, esta declaração de forma clara e inegável evidencia a mente do próprio Concílio Vaticano II quanto às condições para a infalibilidade do Magistério Ordinário e Universal. E uma vez que é evidente que os bispos do Vaticano II concordaram em ensinar um grande número de doutrinas de fé e moral a ser definitivamente realizada em virtude do ensinamento do Concílio, segue-se que eles certamente atribuíram a infalibilidade ao seu próprio Concílio sempre que este claramente ofereceu tal ensino.

Também não há nada de novo sobre a doutrina acima da Lumen Gentium. É a doutrina padrão dos teólogos e é afirmada muito claramente pelo Papa Pio XII em um ato do Magistério Extraordinário, a constituição Munificentissimus Deus, definindo a Assunção de Nossa Senhora. Referindo-se às declarações dos bispos do mundo feitas antes da promulgação do dogma, o Papa diz:

Essa “singular concordância dos bispos e fiéis” em julgar que a assunção corpórea ao céu da Mãe de Deus podia ser definida como dogma de fé, mostra-nos a doutrina concorde do magistério ordinário da Igreja, e a fé igualmente concorde do povo cristão ― que aquele magistério sustenta e dirige ― e por isso mesmo manifesta, de modo certo e imune de erro, que tal privilégio é verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou à sua esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o declarar. (…) Por essa razão, do consenso universal do magistério da Igreja, deduz-se um argumento certo e seguro para demonstrar a assunção corpórea da bem-aventurada virgem Maria (…) é, portanto, verdade revelada por Deus, e por essa razão todos os filhos da Igreja têm obrigação de a crer firme e fielmente. Pois, como afirma o mesmo concílio Vaticano “temos obrigação de crer com fé divina e católica, todas as coisas que se contêm na palavra de Deus escrita ou transmitida oralmente, e que a Igreja, com solene definição ou com o seu magistério ordinário e universal, nos propõe para crer, como reveladas por Deus”.

(Itálico nosso)

Estamos, portanto, inteiramente justificados em nossa conclusão de que os ensinamentos do Vaticano II sobre questões de fé e moral preenchem todas as condições necessárias para o exercício infalível do Magistério Ordinário e Universal, se a autoridade promulgadora for verdadeiramente um papa. E longe de ser contradita por qualquer texto de Paulo VI ou do próprio Vaticano II, este fato é inequivocamente afirmado por ambos.

Na verdade, isso é tão evidente e, ao mesmo tempo, tão patentemente inaceitável para muitos tradicionalistas, que frequentes tentativas têm sido feitas para escapar disso. Essas tentativas foram tão numerosas que lembram a máxima do marinheiro: “Se você não consegue fazer bons nós, faça muitos”. Mas argumentos fracos permanecem pouco convincentes para mentes sérias, por mais numerosos que sejam.

Examinemos alguns deles:
• 1-) Às vezes, afirma-se que o ensino do Vaticano II foi insuficientemente unânime. No entanto, o que importa não é a divergência expressa no plenário do Concílio durante os debates, mas o consentimento na votação e no momento da promulgação. Mesmo assim, é unanimidade moral que importa, não a ausência de um pequeno número discordante. No caso da liberdade religiosa, por exemplo, houve de fato 70 votos contra (“non placet”) contra 2.308 votos favoráveis (“placet”). Essa proporção já supera o consenso pró-infalibilidade do Concílio Vaticano I, que sempre foi considerado moralmente unânime. E quando a declaração foi promulgada pouco depois, ao mesmo tempo que três outras, quase todos os bispos adversários assinaram o texto, incluindo o Arcebispo Lefebvre e o Bispo de Castro Mayer. As tentativas de negar o fato dessas assinaturas se revelaram inúteis. O debate quanto à sua importância continua, mas claramente, pelo menos, parecem implicar consentimento, e, se algum bispo continuou a rejeitar o ensino da Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa após sua promulgação e apesar de sua assinatura, os católicos de todo o mundo permaneceram inteiramente alheios a esse fato por pelo menos os dez anos seguintes.

• 2-) Argumenta-se que o Concílio foi “pastoral” e, portanto, não “dogmático” – os dois sendo alegadamente incompatíveis. Essa afirmação, entretanto, falha em (a) lógica e (b) fato.

• (a) Logicamente, envolve um flagrante erro de categoria, pois é tão absurdo opor “pastoral” a “dogmático” quanto opor “circular” a “amarelo”. A incompatibilidade das duas qualidades é inteiramente imaginária. “Pastoral” significa simplesmente “à maneira de um pastor”. No uso cristão, a metáfora do pastor representando o bispo ou papa não só não exclui o papel do ensino autorizado, mas na verdade significa principalmente esse papel, pois o primeiro dever dos pastores cristãos é ensinar, já que o primeiro dever dos pastores é alimentar suas ovelhas em pastagens saudáveis. Portanto, não há nada anti- pastoral em ensinar verdades religiosas de maneira infalível. Um conselho “pastoral”, se ensinando sobre fé e moral, também tem caráter doutrinário ou dogmático.

• (b) Na verdade, duas das constituições do Concílio descrevem-se expressamente como “dogmáticas” (viz. Lumen Gentium, a “constituição dogmática sobre a Igreja” e Dei Verbum, a “constituição dogmática sobre a Revelação Divina”). Portanto, a afirmação de que o Concílio não tenha oferecido nenhum ensinamento dogmático contradiz diretamente o próprio Concílio. Além disso, o próprio Paulo VI, reafirmou expressamente o fato de que um papel pastoral mais implica do que exclui o ensino doutrinário em seu “motu proprio” Pastorale munus de 30 de novembro de 1963, segundo o qual “Cristo Jesus ligou ao ofício pastoral o dever de ensinar…” (“Pastorale munus, cum quo Christus Iesus gravissima coniunxit officia docendi…”) – uma afirmação inteiramente tradicional.

• 3) Alguns alegaram que o assunto do Concílio não se enquadrava na esfera da fé e da moral. Aqueles que fazem esta afirmação parecem nunca ter lido os textos e estão contradizendo a declaração expressa da Notificação do Concílio de 1964 e a carta de setembro de 1966 de Paulo VI citada acima. As doutrinas totalmente errôneas e escandalosas do Vaticano II tocaram em campos como a natureza da Igreja e seu Magistério, suas relações com as falsas religiões, a conduta correta da atividade missionária, a situação atual do povo eleito do Antigo Testamento, i.e, os judeus, os meios de obter graça e salvação, etc. Tudo isso diz respeito à fé e à moral. Além disso, no célebre caso da liberdade religiosa, em relação ao qual o Vaticano II ensinou, com palavras quase idênticas, o exato oposto da Quanta Cura do Papa Pio IX (um ato do Magistério Extraordinário), o Concílio insistiu que sua doutrina dizia respeito a um direito humano natural fundado na dignidade da pessoa humana como tornado conhecido pela revelação divina.

• 4) Outros escapistas, não querendo falsificar fatos facilmente verificáveis sobre o próprio Concílio, alteraram alegremente a doutrina católica. Eles afirmam em particular que o Magistério Ordinário e Universal é infalível somente quando o ensinamento que ele propõe não é apenas ensinado por todos os bispos em um determinado momento, mas também pode ser mostrado ter sido ensinado por eles durante um longo período. Para justificar essa afirmação, eles apelam ao famoso “Cânon Vicentino” ou pedra de toque da doutrina tradicionalista: “O que sempre foi crido, em toda parte e por todos”. Este requisito é útil também para aqueles que negam o ensinamento da Igreja de que o Batismo “in voto” (por desejo) pode bastar para a justificação e, portanto, para a salvação. Mas esse requisito é de fato herético! O ensino do Concílio Vaticano I sobre o assunto é dogmático e claro e qualquer dúvida de interpretação é resolvida com referência às discussões conciliares. O termo “universal” implica universalidade no lugar, não no tempo. Em termos técnicos, é a universalidade sincrônica, não a universalidade diacrônica, que condiciona a infalibilidade. O que sempre se acreditou em toda parte é infalivelmente verdadeiro, mas o ensino pode ser infalivelmente verdadeiro sem ter sido explicitamente crido sempre e em toda parte. O ensino atual da autoridade suprema de ensino da Igreja, seja expresso em um juízo solene ou por atos ordinários, é necessariamente infalível e, portanto, totalmente incapaz de introduzir doutrinas falsas ou novas, embora possa tornar explícito o que foi até agora implícito ou tornar certo o que caiu na dúvida. Se uma doutrina flagrantemente falsa é ensinada em condições que deveriam garantir a infalibilidade, não é apenas a novidade que deve ser rejeitada, mas a autoridade que a impõe também, pois a autoridade legítima não pode errar em tais casos e o erro flagrante é, portanto, uma prova segura de ilegitimidade.

• 5) O que devemos pensar da afirmação de que “o Vaticano II não cumpre os requisitos para a infalibilidade do Magistério Ordinário, porque não impõe aos fiéis o dever de crer em seu ensinamento”? Este argumento tropeça duas vezes, pois em primeiro lugar, a teologia não conhece tal requisito de infalibilidade, e, em segundo lugar, porque o Vaticano II, em qualquer caso, deixou bem claro que os fiéis devem crer em seus ensinamentos. É verdade que a autoridade da Igreja para ensinar deriva de seu poder de exigir o assentimento, mas não é de forma alguma necessário que ela explicitamente exija o assentimento sempre que ensina. Ao contrário, o fato de ela transmitir aos fiéis sua doutrina – por qualquer meio que ela escolher – é suficiente para manifestar o dever que incumbe aos fiéis de se submeterem a esse ensinamento. Por isso é que a Tuas Libenter afirma o dever de crer como infalivelmente verdadeiro tudo o que “é transmitido como divinamente revelado pelo Magistério ordinário de toda a Igreja espalhada pelo mundo…” (Denzinger 1683). Nenhum modo especial ou tom de ensino é designado – a palavra utilizada é o termo genérico “transmitir” (“traduntur”). Na verdade, já vimos o Papa Pio XII declarar que o acordo moralmente unânime dos bispos de que a Assunção é uma verdade divinamente revelada constitui prova infalível de que assim era, mesmo antes dessa verdade ter sido comunicada aos fiéis. E vimos o Cônego George Smith observar que, “… o ensino unânime [dos bispos] em todo o mundo católico, seja expressamente transmitido por meio de cartas pastorais, catecismos emitidos pela autoridade episcopal, sínodos provinciais, ou implicitamente através de orações e práticas religiosas permitidas ou encorajadas, ou através do ensino de teólogos aprovados, não é menos infalível do que uma definição solene emitida por um Papa ou um Concílio geral.” É evidente que essas formas de comunicar a verdade religiosa aos fiéis raramente expressa qualquer ordem formal para acreditar nessa verdade; o dever de fazer isso é tão claro que não precisa de declaração explícita. Por outro lado, a “Notificação” do Vaticano II anexa à Lumen Gentium afirma expressamente que tudo o que “o Sagrado Sínodo propõe como sendo a doutrina do Supremo Magistério da Igreja deve ser recebido e acolhido por todos e cada um dos fiéis de Cristo”. Além disso, quem quiser consultar o volume de 1965 da Acta Apostolicae Sedis pode ver de relance que Paulo VI promulgou o texto sobre a gravemente errônea liberdade religiosa, e muitos outros, em 8 dezembro de 1965, com todas as formalidades que poderiam ser exigidas, se ele tivesse sido um verdadeiro papa promulgando a verdade sã e obrigatória. Aqui está um extrato: “… ordenamos e mandamos que tudo o que o Concílio decidiu no sínodo seja sagrada e religiosamente sustentado por todos os fiéis de Cristo, para a glória de Deus … Estas coisas nós publicamos e prescrevemos, decretando que esta presente carta deva sempre ser e permanecer firme, válida e eficaz e obtenha e mantenha seus efeitos plenos e integrais … Dado em Roma, sob o anel do pescador…” De fato, não poderia haver dúvida do caráter obrigatório de uma doutrina assim apresentada, se apenas tivesse sido apresentada por um católico e não fosse manifestamente falsa e herética.

• 6) Isso nos leva à tentativa final de evitar a conclusão óbvia – a afirmação perfeitamente exasperante, endêmica entre os apoiadores da FSSPX, de que para o ensino ser infalível, deve ser ortodoxo e, portanto, o ensino do Concílio Vaticano II não pode ser infalível. É claro que isso é verdade no sentido de que nenhuma expressão de erro flagrante possa estar protegida pela infalibilidade. Mas é desastrosamente falso, se for usado para transformar a ortodoxia da doutrina ensinada em uma condição da intervenção protetora do Espírito Santo, que chamamos de infalibilidade, ou em um padrão pelo qual os fiéis possam julgar o que é infalível e o que não é. A ortodoxia garantida de um determinado ensinamento é uma consequência de sua infalibilidade. Não pode ser um critério para detectar essa infalibilidade. Isso destruiria todo o propósito da infalibilidade. Os fiéis não seriam mais capazes de reconhecer a sã doutrina pelo fato de ter sido ensinada pelo Papa e pelos bispos em união. Eles teriam que avaliar o ensino do papa e dos bispos à luz de um critério extrínseco e não infalível de ortodoxia. Não seriam mais sujeitos dóceis do Magistério, mas seus juízes e, portanto, superiores a ele. Admitindo-se que as doutrinas do Vaticano II são falsas e perniciosas e, portanto, não estavam protegidas pela infalibilidade, surge a pergunta: por que não? O fato de elas serem falsas não é uma resposta a essa pergunta. Estamos perguntando por que o Espírito Santo não as protegeu de serem falsas.

Os fatos mostram que as condições para a infalibilidade aparentemente foram cumpridas, pois os bispos de 7 de dezembro de 1965 sob Paulo VI eram moralmente unânimes em apresentar o seu ensinamento sobre fé e moral para a Igreja como definitivos e para ser cridos como consequência da própria revelação divina. Se eles não eram de fato infalíveis, isso só pode ser porque faltava o eixo de seu consenso, a autoridade de um verdadeiro bispo de Roma.

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