PADRE PAULO RICARDO VS. MAGISTÉRIO DA IGREJA CATÓLICA: EXAME DA TESE DE PADRE PAULO RICARDO SOBRE A LIBERDADE RELIGIOSA:
- Publicado em 13/02/2018
- Por Diogo Rafael Moreira
https://www.youtube.com/watch?v=nMyM87pv4HA&t=1s
INTRODUÇÃO
Recentemente um amigo chamou-me a atenção para o fato de muitos católicos estarem se deixando persuadir pelos argumentos de Padre Paulo Ricardo em favor da liberdade religiosa. Em vista de ser solicito ao pedido de um bom amigo e a fim de esclarecer os incautos, examinei detidamente tanto o
vídeo de Padre Paulo Ricardo sobre a liberdade religiosa quanto seu
texto-base sobre o mesmo assunto, disponíveis na página do autor. Ambos pretendem ser uma resposta católica sobre a liberdade religiosa. Examinemos, pois, se isto procede ou não.
1. A TESE DE PADRE PAULO RICARDO SOBRE A LIBERDADE RELIGIOSA
Primeiro, segue um breve resumo da tese de Padre Paulo Ricardo.
Segundo a Igreja (sto é, a
Dignitatis Humanae e o Catecismo de 1992
), o cristão precisa defender o direito do homem de professar e publicar livremente sua religião na sociedade civil, contanto que a ordem pública seja respeitada. A Igreja deve permitir esta liberdade religiosa não só a fim de dar ao homem liberdade suficiente para crer na verdade sem coerção, mas também para poder livremente cumprir sua missão de espalhar o espírito cristão nas mentalidades, costumes, leis e estruturas sociais. Este direito do homem se fundamenta na revelação divina e na razão humana. Dizê-lo em nada contradiz o Magistério da Igreja de dois mil anos, pois ela sempre defendeu a liberdade de consciência como doutrina, muito embora às vezes tenha falhado em aplicar este princípio na prática, mostra-o bem a deplorável política de Paulo IV e Gregório XIII concernente aos judeus. A falha na aplicação da doutrina, porém, não constitui uma mudança doutrinal, ela é apenas uma mudança pastoral que, como tal, pode ser criticável. A liberdade religiosa é a melhor forma de aplicar o princípio católico de liberdade de consciência ou tolerância em nosso tempo.
Para reduzir tudo ao essencial e ver logo se o que é dito acima é verdade ou não, convém observar que a tese se divide em duas partes: primeiro, o autor explica o significado e o valor do princípio de liberdade religiosa conforme o Vaticano II e o Catecismo; (2) depois, a partir de três argumentos, tenta refutar a acusação de que o Vaticano II contradiz a doutrina católica sobre a liberdade religiosa.
2. O SIGNIFICADO E O VALOR DA LIBERDADE RELIGIOSA
Segue a definição e explicação do conceito de liberdade religiosa conforme a lição de Padre Paulo Ricardo. A liberdade religiosa é o direito de professar e publicar a sua própria religião (qualquer que seja) na sociedade civil. Trata-se de respeitar o espaço que o homem necessita para encontrar por si mesmo a religião verdadeira. Esta liberdade não é absoluta, pois deve ser limitada pelo Estado em caso de perturbação da ordem pública; nem é um direito em qualquer âmbito, pois este se confina na esfera civil. O direito à liberdade religiosa se fundamenta na palavra divina e na razão. Graças a ele, a Igreja pode exercer sua missão livremente.
Do que foi dito, compreende-se que a doutrina sobre a liberdade religiosa, entendida nos termos do Vaticano II, não é senão uma medida pastoral que emana da doutrina católica sobre a liberdade de consciência ou tolerância - não se pode converter as pessoas à força -, como também da doutrina católica sobre o direito da Igreja de ensinar livremente a doutrina do Evangelho. Por um lado, ela seria necessária para fornecer ao homem condições de assentir livremente à fé católica; por outro, ela daria à Igreja condições de levar a cabo sua missão na sociedade civil.
No entanto, esta perspectiva não está nem de acordo com a doutrina católica sobre a toerância em matéria de religião, nem constitui a melhor ou única maneira de anunciar o Evangelho em liberdade. O motivo para tanto é que o Vaticano II embute estas três proposições no seu conceito de liberdade religiosa: (1) a liberdade religiosa é um direito civil, (2) basta que não perturbe a ordem pública, (3) fundamenta-se na razão e na revelação. Estas três proposições foram previamente condenadas pelo Magistério da Igreja pelas melhores razões concebíveis.
2.1. REFUTAÇÃO DA PRIMEIRA PROPOSIÇÃO
Sobre a primeira proposição é preciso dezer que tolerância e direito são coisas bem distintas, e isto pode ser facilmente comprovado pela razão e pela autoridade da Igreja.
Pela razão os termos se distinguem claramente e não podem ser confundidos um com o outro: tolerância não é dada como um direito propriamente dito e nem direito é simplesmente uma forma de tolerância. Tolerância é suportar um mal por um bem maior, ou seja, dar certa liberdade a alguém por alguma conveniência; ao passo que direito significa reconhecer que alguém merece possuir um bem, ou seja, dar certa liberdade por uma questão de justiça. A tolerância é concedida a outro por ser útil, enquanto o direito por ser honesto. Assim, dizer que cada operário tem o direito de receber seu salário é bem diferente de dizer que é tolerável que o operário receba seu salário. A última afirmação supõe a existência de alguma circunstância implícita que a torne desejável, mas trata-se de uma liberdade concedida sob determinada condição. Já a primeira afirmação deixa claro que o salário pertence ao operário, ou seja, é obrigação do patrão dar-lhe a paga pelo serviço prestado.
Ora, esta mesma noção se aplica ao caso da liberdade religiosa: se entendida como tolerância, ela é uma liberdade concedida para evitar-se um mal maior, isto é, ela não é celebrada por si mesma, mas por ser um instrumento para lidar com uma circunstância infeliz - eis aí o entendimento tradicional de tolerância da liberdade religiosa; mas se esta tolerância é tida como um direito civil próprio de todo cidadão, então esta liberdade já não cabe no conceito de tolerância. Ela já não é a tolerância de um mal ditada pela utilidade, mas o reconhecimento de um bem ditado pela honestidade. Logo, do ponto de vista meramente conceitual, não é possível entender que a liberdade religiosa segundo o Vaticano II seja uma aplicação legítima do princípio de tolerância, pois ela em muito extrapola o sentido ordinário desta palavra.
Pela autoridade isto transparece ainda mais. O autor menciona dois Papas endossando o conceito de tolerância em si (não forçar ninguém a crer), mas ele não alude a nenhum que fale a respeito da necessidade de tolerar a liberdade religiosa propriamente dita (de culto e proselitismo). Suspeito que se ele assim o o fizesse, acabaria se embarassando. De fato, há sim um documento de um certo Romano Pontífice que se pronunciou acerca deste assunto especificamente, contudo, é precisamente este o documento que nega ser tal tolerância um direito.
A
Libertas Praestantissimum de Leão XIII é uma encíclica justamente sobre as ditas "liberdades modernas", dentre as quais se encontra a liberdade religiosa. Segundo o Pontífice, que aqui exerce seu Magistério Ordinário como Mestre dos fiéis, a liberdade de religião pode ser permitida quando as circunstâncias exigirem, mas jamais deve ser tida como um direito, pois este direito de ser pregada e difundida no âmbito civil - ou seja, dentre as nações - é exclusivo da relgiião verdadeira, um direito outorgado pelo próprio Deus.
Destas considerações segue-se, portanto, que de nenhum modo é lícito pedir, defender ou conceder a liberdade de pensamento, de imprensa, de ensino e também de religiões indiscriminadamente [itemque promiscuam religionum libertatem], como se fossem outros tantos direitos que a natureza conferisse ao homem. Se em verdade a natureza os houvesse conferido, haveria o direito de rejeitar à soberania de Deus [imperium Dei detrectari ius esset], e nenhuma lei poderia moderar a liberdade humana. Similarmente, segue-se também que estas diversas espécies de liberdade podem, por justas causas [si justae causa sint], ser toleradas, contanto que uma justa moderação as impeça de degenerarem até à licença e à desordem. Finalmente, nos países em que os usos puseram estas liberdades em vigor, os cidadãos devem servir-se delas para fazer o bem e ter a respeito delas os mesmos sentimentos que a Igreja tem; porque uma liberdade não se deve reputar legítima senão quando aumenta a nossa faculdade de fazer o bem. Fora disto, nunca.
[No original em latim:]
Itaque ex dictis consequitur, nequaquam licere petere, defendere, largiri, cogitandi, scribendi, docendi, itemque promiscuam religionum libertatem, veluti iura totidem, quae homini natura dederit. Nam si vere natura dedisset, imperium Dei detrectari ius esset, nec ulla temperari lege libertas humana posset. — Similiter consequitur, ista genera libertatis posse quidem, si iustae caussae sint, tolerari, definita tamen moderatione, ne in libidinem atque insolentiam degenerent. — Ubi vero harum libertatum viget consuetudo, eas ad facultatem recte faciendi cives transferant, quodque sentit de illis Ecclesia, idem ipsi sentiant. Omnis enim libertas legitima putanda, quatenus rerum honestarum maiorem facultatem afferat, praeterea nunquam.
LEÃO XIII, Libertas Praestantissimum. versão portuguesa e latina.
Infelizmente, o Padre Paulo Ricardo não partilha dos mesmos sentimentos que a Igreja tem neste ponto. Se assim o fizesse, logo veria que não há como defender a liberdade religiosa indiscriminadamente, pois esta liberdade somente é desejada na falta de coisa melhor. É verdade que a liberdade religiosa é bem-vinda em terras onde um regime tirânico impede a propagação da fé, mas jamais tal liberdade pode ser aceita por si mesma como boa. Este é o ensinamento do Papa Leão XIII na
Immortale Dei:
Se existe algures, ou pelo pensamento se imaginar, um Estado que persiga disfarçada e tiranicamente o nome cristão, e se o confrontarmos com o gênero do governo moderno de que falamos, este último poderá parecer mais tolerável. Certamente, os princípios em que este último se baseia são de tal natureza, como dissemos, que em si mesmo por ninguém devem ser aprovados.
[No original em latim:]
Si talis alicubi aut reapse sit, aut fingatur cogitatione civitas, quae christianum nomen insectetur proterve et tyrannice, cum eaque conferatur genus id reipublicae recens, de quo loquimur, poterit hoc videri tolerabilius. Principia tamen, quibus nititur, sunt profecto eiusmodi, sicut ante diximus, ut per se ipsa probari nemini debeant.
LEÃO XIII, Immortale Dei, versão portuguesa e latina.
Já aqui o argumento do Padre Paulo Ricardo está arruinado. A Igreja já ensinou que jamais se pode aceitar o direito à liberdade religiosa incondicionalmente, apenas pode-se tolerar a existência desta lei onde as circunstâncias a exijam, nunca por si mesma.
Um exemplo clássico de tolerância necessária pelas circunstâncias é os Estados Unidos, onde o reconhecimento dos direitos do catolicismo sobre a nação levaria certamente à guerra civil. Ainda assim, este não é o melhor terreno para o florescimento do Evangelho, posto que a Igreja não é reconhecida como mestra enviada pelo própiro Deus: seria muito melhor ter as instituições do Estado submetidas aos ensinamentos de Cristo. Em carta sobre o catolicismo na nação mencionada acima, o Papa Leão XIII manifesta claramente este modo católico de pensar:
O fato do Catolicismo encontrar-se em boa disposição, ou melhor, estar gozando de um próspero crescimento deve ser sempre atribuído à fecundidade com a qual Deus dotou sua Igreja, em virtude da qual, salvo quando homens e circunstâncias interferem, espontaneamente se expande e propaga a si mesma; mas ela renderia ainda mais frutos se, além da liberdade, desfrutasse também do favor das leis e do patrocínio da autoridade pública.
WYNNE S.J., John (ed.). The Great Encyclical Letters of Leo XIII. New York: Benziger Brothers, 1903, p. 323. op. cit. CONNNELL S.Ss.R., Francis J. Reply to Father Murray. The Ecclessiastical Review, vol. CXXVI, jan. 1952, p. 57.
Assim é o curso natural das coisas, a Igreja é em princípio aceita pelo Estado para depois estabelecer-se como mestra soberana dele no que toca à fé e aos costumes. É precisamente isso o que a história mostra, primeiro Constantino concedeu liberdade aos cristãos, um século depois, Teodósio declarou o Catolicismo como a religião oficial do Império e fechou os templos pagãos.
Graças a esta salutar colaboração entre Trono e Altar, e não à liberdade religiosa que separa um do outro, hoje ainda somos católicos. Realmente, se o Vaticano II e pessoas como o Padre Paulo Ricardo tivessem vindo antes e informado os reis católicos de que eles deveriam deixar seus súditos professarem e espalharem as doutrinas que bem-entendessem, então logo a verdade do Evangelho seria obscurecida no meio de um turbilhão de mentiras. Concluí-lo, afinal, não é basear-se em meras conjecturas, basta olhar para o que acontece hoje em dia: em meio século de liberdade religiosa total, países tão impregnados de catolicismo como o nosso, tornaram-se vítimas de seitas e partidos mentirosos - tudo isto porque os homens que deveriam converter o Estado, voltaram as costas para o seu dever. Felizmente, os bons governantes e sacerdotes do passado fizeram o contrário: eles reprimiram o trabalho desonesto dos hereges e agitadores por meio da Inquisição e, como resultado, a fé católica se conservou mais viva nestes países do que noutros.
Infelizmente, o Padre Paulo Ricardo entende que dar este segundo passo nas relações entre Igreja e Estado seria um erro, a Igreja deveria sempre permanecer como uma mestra de indivíduos, uma entre muitas outras mestras na sociedade civil. De fato, ele crê que a liberdade religiosa é um direito do homem, ninguém pode violá-lo. Ainda assim, esta mesma noção de separação entre Igreja e Estado que lhe parece tão benéfica, não é tratada como tal pelo Magistério da Igreja.
Se a inteligência adere as opiniões falsas, se a vontade escolhe o mal e a ele se apega, nem uma nem outra atinge a sua perfeição, ambas decaem da sua dignidade nativa e se corrompem. Não é, pois, permitido dar a lume e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito menos ainda colocar essa licença sob a tutela e a proteção das leis. Não há senão um caminho para chegar ao céu, para o qual todos nós tendemos: é uma boa vida. O Estado afasta-se, pois, das regras e prescrições da natureza se favorece a licença das opiniões e das ações culposas ao ponto de se poderem impunemente desviar os espíritos da verdade e as almas da virtude.
Quanto à Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, excluí-la da vida pública, das leis, da educação da juventude, da sociedade doméstica, é um grande e pernicioso erro. Uma sociedade sem religião não pode ser bem regulada; e, mais talvez do que fora mister, já se vê o que vale em si e em suas conseqüências essa pretensa moral civil.
[No original em latim:]
Si mens adsentiatur opinionibus falsis, si malum voluntas adsumat et ad id se applicet, perfectionem sui neutra consequitur, sed excidunt dignitate naturali et in corruptelam ambae delabuntur. Quaecumque sunt igitur virtuti veritatique contraria, ea in luce atque in oculis hominam ponerenon est aequum: gratia tutelave legum defendere, multo minus. Sola bene acta vita via in caelum, quo tendimus universi: ob eamque rem aberrat civitas a regula et praescriptione naturae si licentiam opinionem praveque factorum in tantum lascivire sinat, ut impune liceat mentes a veritate, animos a virtute deducere.— Ecclesiam vero, quam Deus ipse constituit, ab actione vitae excludere, a legibus, ab institutione adolescentium, a societate domestica, magnus et perniciosus est error. Bene morata civitas esse, sublata religione, non potest: iamque plus fortasse, quam oportet, est cognitum, qualis in se sit et quorsum pertineat illa de vita et moribus philosophia quam civilem nominant. Vera est magistra virtutis et custos morum Ecclesia Christi: ea est, quae incolumia tuetur principia,unde officia ducuntur, propositisque causis ad honeste vivendum efficacissimis, iubet non solum fugere prave facta, sed regere motus animi rationi contrarios etiam sine effectu. — Ecclesiam vero in suorum officiorum munere potestati civili velle esse subiectam, magna quidem iniuria, magna temeritas est. Hoc facto perturbatur ordo, quia quae naturalia sunt proponuntur iis, quae sunt supra naturam: tollitur aut certe magnopere minuitur frequentia bonorum, quibus, si nulla re impediretur, communem vitam Ecclesia compleret: pratereaque via ad inimicitias munitur et certamina quae, quantam utrique reipublicae perniciem afferant, nimis saepe eventus demonstravit.
LEÃO XIII, Immortale Dei, versão portuguesa e latina.
2.2. REFUTAÇÃO DAS OUTRAS PROPOSIÇÕES
Já vimos a falsidade desta primeira proposição sobre a liberdade religiosa como direito civil, agora passemos para a demonstração da falsidade das outras duas, a saber, que tal liberdade deva ser limitada somente quando ela for ocasião de desordem na sociedade e que esta mesma liberdade se fundamenta na razão e na revelação divina. Desta vez, seguimos direto para o ensinamento do Papa Pio IX a respeito delas:
E, contra a doutrina da Sagrada Escritura, da Igreja e dos Santos Padres, não duvidam em afirmar que "a melhor forma de governo é aquela em que não se reconheça ao poder civil a obrigação de castigar, mediante determinadas penas, os violadores da religião católica, senão quando a paz pública o exija". E com esta ideia do governo social, absolutamente falsa, não hesitam em consagrar aquela opinião errônea, em extremo perniciosa à Igreja católica e à saúde das almas, chamada por Gregório XVI, Nosso Predecessor, de feliz memória., loucura, isto é, que "a liberdade de consciências e de cultos é um direito próprio de cada homem, que todo Estado bem constituído deve proclamar e garantir como lei fundamental, e que os cidadãos têm direito à plena liberdade de manifestar suas idéias com a máxima publicidade - seja de palavra, seja por escrito, seja de outro modo qualquer -, sem que autoridade civil nem eclesiástica alguma possam reprimir em nenhuma forma". Ao sustentar afirmação tão temerária, não pensam nem consideram que com isso pregam a liberdade de perdição, e que, se se dá plena liberdade para a disputa dos homens, nunca faltará quem se atreva a resistir à Verdade, confiado na loquacidade da sabedoria humana; mas Nosso Senhor Jesus Cristo mesmo ensina como a fé e a prudência cristã hão de evitar esta vaidade tão danosa. [...] Em meio desta tão grande perversidade de opiniões depravadas, Nós, com plena consciência de Nossa missão apostólica, e com grande solicitude pela religião, pela sã doutrina e pela saúde das almas a Nos divinamente confiadas, assim como até pelo próprio bem da sociedade humana, temos julgado necessário levantar de novo Nossa voz apostólica. Portanto, todas e cada uma das perversas opiniões e doutrinas determinadamente especificadas nesta Carta, com Nossa autoridade apostólica as reprovamos, proscrevemos e condenamos; e queremos e mandamos que todas elas sejam tidas pelos filhos da Igreja como reprovadas, proscritas e condenadas.
[No original em latim:]
Atque contra sacrarum Litterarum Ecclesiæ sanctorumque Patrum doctrinam, asserere non dubitant, «optimam esse conditionem societatis, in qua Imperio non agnoscitur officium coercendi sancitis pœnis violatores catholicæ religionis, nisi quatenus pax publica postulet». Ex qua omnino falsa socialis regiminis idea haud timent erroneam illam fovere opinionem Catholicæ Ecclesiæ, animarumque saluti maxime exitialem a rec. mem. Gregorio XVI prædecessore Nostrodeliramentum appellatam (2) nimirum «libertatem conscientiæ et cultum esse proprium cuiuscumque hominis ius, quod lege proclamari, et asseri debet in omni recte constituta societate, et ius civibus inesse ad omnimodam libertatem nulla vel ecclesiastica, vel civili auctoritate, coarctandam, quo suos conceptus quoscumque sive voce, sive typis, sive alia ratione palam publiceque manifestare, ac declarare valeant». Dum vero id temere affirmant, haud cogitant et considerant, quod libertatem perditionis(3) prædicant, et quod si «humanis persuasionibus semper disceptare sit liberum, nunquam deesse poterunt, qui veritati audeant resultare, et de humanæ sapientiæ, loquacitate confidere, cum hanc, nocentissimam vanitatem quantum debeat fides et sapientia christiana vitare, ex ipsa Domini Nostri Iesu Christi institutione cognoscat » (4). [...] In tanta igitur depravatarum opinionum perversitate, Nos Apostolici Nostri officii memores, ac de sanctissima nostra religione, de sana doctrina, et animarum salute Nobis divinitus commissa, ac de ipsius humanæ societatis bono maxime solliciti, Apostolicam Nostram vocem iterum extollere existimavimus. Itaque omnes et singulas pravas opiniones ac doctrinas singillatim hisce Litteris commemoratas auctoritate Nostra Apostolica reprobamus, proscribimus atque damnamus, easque ab omnibus Catholicæ Ecclesiæ filiis, veluti reprobatas, proscriptas atque damnatas omnino haberi volumus et mandamus.
PIO IX, Quanta Cura, versão portuguesa e latina.
O fato do Papa Pio IX deixar claro que esta doutrina é contra a doutrina da Escritura, da Igreja e dos Santos Padres [
contra sacrarum Litterarum Ecclesiæ sanctorumque Patrum doctrinam] e, ademais, o fato de colocar todo o peso de sua autoridade apostólica contra ela, simplesmente fulmina com qualquer possibilidade de entender a liberdade religiosa de Padre Paulo Ricardo como coisa católica. Aí o Papa nega o direito à liberdade religiosa categoricamente, condena a doutrina de que se deve reprimir uma seita herética somente quando ela gera alguma perturbação da ordem pública e, com certeza, ao chamá-la de loucura e absolutamente falsa, indica que ela não se fundamenta nem na razão, nem na revelação.
Em suma, todos os marcos da liberdade religiosa segundo a
Dignitatis Humanae são repugnantes ao catolicismo. No Catolicismo a liberdade religiosa não é tida como um direito (
mas algo tolerado sob certas condições), não é limitada tão somente pelo bem da ordem pública (
mas também para reprimir o falso culto e o proselitismo das seitas) e não se apoia na razão e na revelação (
mas sim na insanidade daqueles que não amam a verdade).
Curiosamente, no vídeo o Padre Paulo Ricardo tenta mostrar que a liberdade religiosa é uma coisa boa em si, como se dar passe-livre à difusão de más ideias fosse um bom negócio para o católico. Isto é falso não só pelos fatos que atestam o mal enorme causado pelas seitas, que corrompem toda a população, mas também porque é bastante previsível que possuir um Estado que promova a doutrina de Cristo em suas leis é bem mais favorável à religião verdadeira do que um Estado que simplesmente o trate como uma religião entre outras.
Se hoje ter o catolicismo como religião de Estado é um pensamento muito distante da realidade dos fatos, isto simplesmente se deve ao abandono da doutrina católica por parte dos aderentes do Vaticano II. Antes dele, ninguém negará que haviam boas relações entre Igreja e muitos estados católicos e que isso em nada prejudicava os governantes e governados, antes beneficiava a todos. As pessoas de outras religiões não eram e nunca foram forçadas a crer no Evangelho, mas eram, para o seu próprio bem, impedias de espalharem seus erros e corromperem os costumes, ou seja, de exercerem uma liberdade que contribuiria ainda mais para o dano de suas próprias almas.
Conclusão. O conceito de liberdade religiosa apresentado pelo Padre Paulo Ricardo não emana do conceito católico de tolerância. Trata-se de um conceito bem mais largo, do conceito maçônico de tolerância, de um conceito condenado por Pio VII na
Post Tam Diuturnas, por Gregório XVI na
Mirari Vos, por Pio IX na
Quanta Cura, por Leão XIII na
Immortale Dei e na
Libertas Praestantissimum.
3. OBJEÇÃO AOS TRADICIONALISTAS
O que foi dito acima seria o suficiente para impugnar a tese de Padre Paulo Ricardo como um todo, mas procederei com o estudo de sua objeção aos tradicionalistas a fim de remover toda confusão a este respeito.
Esta segunda parte divide-se em três argumentos principais, exporei e responderei a cada um deles concisamente.
3.1. PRIMEIRO ARGUMENTO
Embora a doutrina sobre a tolerância afirme que o erro não tem o direito de existir, ninguém pode ser convertido à força. Logo, a liberdade religiosa deve ser garantida para permitir que as pessoas aceitem o catolicismo livremente.
Já foi visto que o conceito de liberdade religiosa do Vaticano II ( de culto e proselitismo) não equivale ao conceito de tolerância (não converter à força). Além disso, acrescento que não se segue que um Estado sem liberdade religiosa seja intolerante. Dizê-lo é repugnante à razão e seria uma grande calúnia contra a doutrina e prática da Igreja Católica. Com efeito, não é necessário permitir que hereges e racionalistas espalhem seus erros e maus costumes livremente para que todos tenham a liberdade de aderir ou não à religião cristã. É claro que o assentimento da fé é unicamente voluntário, mas também é verdade que negar a fé não dá a ninguém o direito de molestar a fé verdadeira mediante uma inundação de mentiras. Se assim fosse, como recorda o Papa Leão XIII, o homem teria o direito de opor-se a Deus, o que é falso.
3.2. SEGUNDO ARGUMENTO
Os Papas Nicolau I e Alexandre II dizem claramente que não se deve usar de violência para converter à fé, mas o Denzinger-Schonmetzer demonstra que esta violência já foi usada por Paulo IV e Gregório XIII. Logo a Igreja falhou na aplicação deste princípio.
A prova dada pelo autor é a seguinte nota-de-rodapé do Denzinger-Schonmetzer:
Podem-se citar, sobre este assunto, diversas cartas de Gregório I; em particular *480; além disso, as cartas “Scribendi” aos bispos Virgílio de Arles e Teodoro de Marselha, de 3 jun. 591, e “Supplcaverunt”, aos bispos Bacaudo e Agnelo, de set. ou out. 519. Não todos os papas seguiram esta opinião. Entre os documentos mais deploráveis mencione-se a constituição de Paulo IV “Cum nimis absurdum”, de 14 jul. 1555, que, entre outras coisas, ordena a criação de um gueto para os judeus em Roma. Não se coaduna com a opinião de Gregório I a prática de forçar os judeus a escutar teólogos que pregassem para eles.
Se um erro pequeno no princípio leva a um erro grande na conclusão, imagine o que dizer de um erro enorme no princípio? Ele termina na difamação da memória de homens sensatos. É precisamente aí onde termina o raciocínio falaz de Padre Paulo Ricardo sobre a liberdade religiosa: na reverberação de uma calúnia modernista.
Ora, a separação entre judeus e cristãos não contraria a doutrina católica da tolerância, porque o que se almeja é proteger os cidadãos cristãos da incredulidade judaica. Isso é ainda mais necessário quando se considera que a seita judaica prega que se podem cometer injustiças contra os não judeus e que uma de suas cerimônias públicas pede perdão antecipado pelas mentiras que serão ditas por eles.
Muito menos se pode dizer que exigir que infiéis ouçam a pregação do Evangelho seja uma violação da tolerância, se assim fosse, o Papa não enviaria teólogos, mas militares. Aliás, dentre os teólogos que pregaram aos judeus se achava Santo Inácio de Loyola, o qual obteve muitos frutos. Quantos judeus não se livraram de pena maior pela moderação de seu proselitismo pelas ordens dos Papas? Quantos deles não atingiram o bem supremo graças à pregação oportuna e inoportuna destes teólogos enviados pelo governo?
Além disso, em ambos os casos, os Papas se comportavam não como chefes da Igreja, mas na capacidade de chefes de Estado que zelam pelo bem de seus cidadãos. Certamente o Padre Paulo Ricardo virá dizendo que isto não pertence ao poder temporal, que o Estado não deve se envolver em questões espirituais, deve "tirar suas mãos da religião". Mas novamente o sábio Papa Leão XIII corrige o descurado erro do autor:
Visto, pois, que é necessário professar uma religião na sociedade, deve-se professar a única que é verdadeira e que se reconhece, sem dificuldade, pelo menos nos países católicos, pelos sinais de verdade que com tão vivo fulgor ostenta em si mesma. Esta religião, os chefes de Estado a devem pois conservar e proteger, se querem, como é obrigação sua, prover prudente e utilmente aos interesses da comunidade. Pois o poder público foi estabelecido para utilidade daqueles que são governados, e conquanto ele não tenha por fim próximo senão conduzir os cidadãos à prosperidade desta vida terrestre é, contudo, para ele um dever não diminuir, mas pelo contrário aumentar, para o homem, a faculdade de atingir esse bem supremo e soberano, no qual consiste a eterna felicidade dos homens: o que se torna impossível sem a religião.
[No original em latim:]
Cum igitur sit unius religionis necessaria in civitate professio, profiteri eam oportet quae unice vera est, quaeque non difficulter, praesertim in civitatibus catholicis, agnoscitur, cum in ea tamquam insignitae notae veritatis appareant. Itaque hanc, qui rempublicam gerunt, conservent, hanc tueantur, si volunt prudenter atque utiliter, ut debent, civium communitati consulere. Publica enim potestas propter eorum qui reguntur utilitatem constituta est: et quamquam hoc proxime spectat, deducere cives ad huius, quae in terris degitur, vitae prosperitatem, tamen non minuere, sed augere homini debet facultatem adipiscendi summum illud atque extremum bonorum, in quo felicitas hominum sempiterna consistit: quo perveniri non potest religione neglecta.
LEÃO XIII, Libertas Praestantissimum. versão portuguesa e latina.
Era precisamente isto o que os Papas Paulo IV e Gregório XIII estavam fazendo em sua função de chefes dos Estados Papais, um punindo a transgressão de lei antiga, outro esforçando-se para aumentar o número dos cidadãos que atingirão o bem supremo e soberano.
[Mais informações sobre este assunto em
The Holy See and the Jews, artigo publicado originalmente em revista dirigida pelo Mons. Jouin.]
3.3. TERCEIRO ARGUMENTO
A Igreja é infalível na doutrina, mas falível na prática pastoral. Prova-o o exemplo anterior, onde ela falha em aplicar o princípio de tolerância no caso dos judeus. Logo, parece que a liberdade religiosa, como princípio de razão prática, é uma forma mais correta de aplicação desta doutrina no âmbito civil, pois evita abusos na aplicação da doutrina.
Já foi visto que os Papas do exemplo anterior não agiam na capacidade de Romanos Pontífices dando ordens para a Igreja Universal,
mas de chefes de Estado da cidade de Roma. Logo, o exemplo não se aplica ao caso em questão. Além disso, viu-se que tal decisão dos Papas não era repreensível, pois atendia a uma necessidade real: o governante deve zelar para que os seus cidadãos atinjam o bem supremo. Ainda assim, resta a questão a respeito das ações pastorais da Igreja, isto é, o argumento de que erro pastoral não implica em erro doutrinal.
Por um lado, este argumento acaba enfraquecendo a defesa do conceito de liberdade religiosa segundo o Padre Paulo Ricardo, pois sendo ele supostamente uma aplicação pastoral da doutrina da tolerância, ele mesmo é falível e pode ser criticado. Logo, ninguém deveria falar mal dos tradicionalistas que assim fazem o tempo todo. Por outro lado, este mesmo argumento é a razão que talvez salvaria a frágil possibilidade deste conceito maçônico aparecer em um documento promulgado pela Igreja Católica. Com efeito, sendo uma medida meramente pastoral, a
Dignitatis Humanae poderia conter erros.
Para não errar nesse ponto, necessário é relembrar que a Igreja é uma instituição divina, não humana. É verdade que ela não possui prudência suprema para resolver todos os problemas do mundo, mas também é verdade que quando se trata do bem das almas a Igreja jamais pode mandar nada que seja para o dano dos fiéis. É nesta esfera que Cristo prometeu a assistência do Espírito Santo a sua Esposa: não só a doutrina da Igreja é santificada pelo Paráclito, mas também seu culto é santo, suas leis são santas e muitos de seus membros são atualmente santos. Nisto consiste o caráter sobrenatural da Igreja e é por isso que, mesmo onde ela não é infalível, deve o fiel receber o que ela lhe oferece como seguro. De fato, por promessa divina, ela jamais pode agir contra a fé católica e a moral do Evangelho. O fiel não precisa se preocupar acerca do que é ou não é infalível, ele deve acolher docilmente tudo o que procede da hierarquia católica.
[Esta é a doutrina católica encontrada nos catecismos, nos ensinamentos dos Romanos Pontífices, nas obras dos Santos Padres e Doutores e nos manuais dos grandes teólogos. Mais informações no Apêndice ao fim da página.]
É por este motivo que, se o Vaticano II fosse um concílio católico, todos nós deveríamos aderir a tudo o que ele ensinou, mais ou menos como tenta fazer o Padre Paulo Ricardo. Mas o problema é que o Vaticano II já foi condenado pela Igreja e sobre seus aderentes pesa o estigma de fazer profissão pública de heresia. Não houve, de fato, mudança na doutrina da Igreja sobre a liberdade religiosa, a doutrina continua a mesma ontem e hoje; o que houve realmente foi o abandono desta doutrina por parte daqueles que aderiram ao Vaticano II. Este abandono da profissão pública da fé católica separa-os da Igreja de Cristo. É isto, afinal, o que os torna pastoralmente tão falíveis.
Certamente, os padre apóstatas do Vaticano II não faziam muito caso de ser católicos, eles desejavam a liberdade religiosa não só para os outros, eles também a queriam para si mesmos: cansados de ter que dissimular suas ideias para escapar à censura eclesiástica, queriam o direito de falar livremente sobre suas novas doutrinas, todas elas repletas de liberalismo. Queriam dar adeus à exatidão do tomismo, ao Santo Ofício, ao
Index e, sobretudo, ao Juramento Antimodernista que eles fizeram questão de quebrar com suas palavras e ações. Na busca deste direito, desta liberdade de perdição, eles abandonaram a fidelidade à religião de seus pais para errarem soltos pelas veredas da apostasia. É realmente uma pena que homens tão sábios aos olhos do mundo tenham feito tamanha loucura e, ainda mais triste, que depois de todos os frutos amargos produzidos por eles, ainda hajam pessoas inteligentes que não veem mal algum em fazer o mesmo.
Conclusão. Os argumentos de Padre Paulo Ricardo sobre a liberdade religiosa não são capazes de impugnar a noção de uma mudança doutrinal, ou melhor, de um abandono doutrinal. De fato, a tolerância pode existir sem liberdade religiosa (
como sempre existiu em terras cristãs), os exemplos aduzidos para demonstrar a existência de erros legislativos da Igreja em matéria de tolerância não se aplicam, pois não são atos do Magistério em nenhum sentido do termo,
mas atos do Papa como governante de um domínio temporal e, por fim, uma medida pastoral da Igreja não é criticável,
mas deve ser acolhida pelos fiéis com fé eclesiástica. Portanto, o Vaticano II com a sua
Dignitatis Humanae, não foi uma mudança nem doutrinal, nem pastoral dentro da Igreja Católica, ele foi um evento que selou a separação oficial, que até hoje existe, entre um punhado de modernistas seguido por uma multidão de covardes e os fiéis da Igreja Católica Apostólica Romana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se o Padre Paulo Ricardo deseja dar aos seus fiéis uma resposta mais católica, ele precisará explicar como conciliar a
Quanta Cura de Pio IX com o Vaticano II, ou então, o que dá no mesmo, como é que um direito tão importante quanto este pôde ter sido ignorado por tanto tempo pela Igreja, a despeito dos insistentes esforços dos maçons e protestantes liberais para promovê-lo? Assim pelo menos ele poderia defender sua tese sem apelar para os supostos defeitos que a Igreja possui na sua atividade pastoral.
Todavia, a resposta católica genuína consiste em reconhecer que os membros da Igreja do Vaticano II se desviaram dos ensinamentos da Igreja de Cristo. Eles preferiram trocar a sagrada doutrina do Salvador pelas doutrinas falaciosas de Loisy, Buonaiuti, Tyrell, Le Roy, Rahner, Ratzinger, Jungmann, Wojtyla, de Lubac, von Balthasar, Congar, Chenu, Danielou, de Chardin, King, Blondel, Bouyer, Laberthonniere, Maritain, Mounier, Murray e muitos outros infelizes.
APÊNDICE
A leitura da
Satis Cognitum de Leão XIII e da
Mystici Corporis de Pio XII são muito úteis para compreender a natureza da Igreja e a dignidade de seu Magistério. Além desses, os textos a seguir trazem outros documentos que revelam a real extensão da infalibilidade da Igreja Católica.