Engana-se rotundamente o homem que pensa que Jorge Mario Bergoglio, mais conhecido como Papa Francisco, verdadeiramente possua qualquer aspiração por ser coerente em suas ideias. Como modernista que é, o que lhe importa é a coerência na prática, isto é, dar continuidade, custo o que custar, à agenda modernista de transformação do catolicismo em uma religião sem dogmas e centrada no homem.
Portanto, quem quer que, sem essa perspectiva, leve a sério sua defesa do caráter magisterial do Concilio Vaticano II, não será capaz de apreciá-la devidamente, sobretudo naquilo que ela tem de mais profundo e - por que não dizê-lo? - cômico. Para que tal não suceda com os nossos diletíssimos leitores, segue uma breve análise de seu discurso do dia 30 de janeiro do corrente ano, no contexto de suas verdadeiras intenções à luz de outras declarações suas e do Magistério conciliar (análise subjetiva) e, por fim, como alguns já fizeram, uma reflexão sobre o valor intrínseco de suas afirmações (análise objetiva).
I. O FATO MEMORÁVEL
Dirigindo-se ao Escritório Catequético da Conferência Episcopal Italiana (CEI), por ocasião do 60.º aniversário de sua criação, Francisco, depois de salientar a importância de uma catequese inspirada no Concílio Vaticano II, emitiu as seguintes considerações:
"O concílio é Magistério da Igreja. Ou nós estamos com a Igreja e, portanto, seguimos o concílio, ou, se não seguimos o concílio ou o interpretamos à nossa maneira, à nossa própria vontade, não estamos com a Igreja. Temos que ser exigentes e rigorosos neste ponto. O concílio não deve ser negociado para ter mais destes… Não, o concílio é assim. E este problema que estamos a enfrentar, da seletividade do concílio, repetiu-se ao longo da história, com outros concílios."
"Para mim, isto faz-me pensar num grupo de bispos que depois do [Concílio] Vaticano I foram embora […] para continuar a 'verdadeira doutrina' que não era a do Vaticano I. 'Nós é que somos os verdadeiros católicos' … Hoje eles ordenam mulheres. A atitude mais severa para guardar a fé sem o Magistério da Igreja, leva-nos à ruína. Por favor, nenhuma concessão para aqueles que tentam apresentar uma catequese que não esteja de acordo com o Magistério da Igreja".
II. ANÁLISE SUBJETIVA: A SELETIVIDADE BERGOGLIANA
De um modo geral, Francisco fala do problema da seletividade com relação ao Magistério da Igreja, isto é, há católicos que não aceitam o Vaticano II ou não o interpretam da maneira oficial e autorizada. No entanto, cumpre dizê-lo: a mesma grave acusação pode ser feita contra ele mesmo.
De fato, em se tratando de tradicionalistas, Bergoglio não hesita em pôr entre notórios parêntesis a revolução da ternura, a cultura do diálogo e do encontro, o ir às periferias, o "acompanhamento" fraterno de pecadores públicos e tantas outras atitudes inspiradas na letra e no espírito do Vaticano II, para bruscamente nos falar de ser "exigentes e rigorosos".
Ora, esse posicionamento com relação aos tradicionalistas certamente destoa das intenções do Concílio e da nova orientação tomada em Roma daí por diante. Para verificá-lo, basta recordar o que disse João XXIII na Abertura do Vaticano II: "A Igreja sempre se opôs a estes erros [que se sucedem nos tempos]; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações." (João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia: Discurso Solene de Abertura do Vaticano II, n. 2).
Com os tradicionalistas não há nem remédio da misericórdia, nem um esforço em demonstrar a validez da doutrina do Vaticano II. Tampouco se fala, vejam só, em fazer concessões, algo que se tornou quase uma norma depois do Concílio. De fato, todos sabem que, sob os auspícios do Vaticano II, fizeram-se concessões aos luteranos (Concordata entre a Santa Sé e a Igreja Luterana sobre a justificação), aos judeus (remoção de qualquer coisa potencialmente ofensiva ao judaísmo farisaico-talmúdico-rabínico na liturgia e até mesmo no catecismo), aos maçons (sem excomunhão explícita e endosso de suas ideias político-religiosas fundamentais: liberdade, igualdade e fraternidade universal), aos comunistas (omissão de sua condenação no Concílio e colaboração política por debaixo dos panos), e ainda fizeram-se largas concessões aos hindus, budistas, animistas e até mesmo aos ateus (decorrentes de documentos conciliares tais como a Gaudium et Spes, a Nostra Ætate e a Dignitatis Hamanæ), fizeram-se, digamos logo, como consta no Declaração de Abu Dhabi e na Fratelli Tutti, ambos assinados pelo mesmo Francisco, concessões a toda e qualquer religião, pois Deus quer a diversidade de religiões. Porém, aqui, no tocante aos tradicionalistas, temos nada, "nenhuma concessão".
Mas, afinal, se o católico deve aderir ao Vaticano II em particular e ao Magistério da Igreja em geral, onde está o homem que disse em Marrocos que "ser cristão não é aderir a uma doutrina"? Se com respeito ao Concílio temos de ser "exigentes e rigorosos", então onde está o homem que falou que "o pensamento rígido não é de Deus"? De uma maneira aparentemente inexplicável, ele está agora apregoando "nenhuma concessão para aqueles que tentam apresentar uma catequese que não esteja de acordo com o Magistério da Igreja". Estranho, não?
Não, de modo algum. Estranho seria se buscássemos uma coerência em suas ideias, como se Francisco, cresse realmente em verdades imutáveis. Mas a imutabilidade da verdade é a primeira coisa que todo modernista nega, pois para o modernista a verdade evolui com o homem (proposição condenada por São Pio X na Lamentabili) e não há verdade externa e objetiva em matéria de religião (trata-se do agnosticismo teológico, condenado por São Pio X na Pascendi).
Logo, é claro que o que ele diz hoje pode ser diferente do que ele diz amanhã, pois suas palavras não prestam obsequiosa homenagem a uma doutrina definida, mas simplesmente fazem parte da execução de um plano, uma agenda político-religiosa, a saber, a transformação do catolicismo em uma religião sem dogmas e centrada no homem. É algo diabólico, sem dúvida, pois é o diabo que se serve de palavras pragmaticamente, somente para inocular a rebelião contra a verdade de Deus.
Isso mesmo é o que acontece com calculada duplicidade em matérias de Vaticano II. O Concilio é um meio para provocar a anarquia religiosa e, enquanto ele a produz, ele é bom e deve ser mantido à risca, como um dogma de fé. Contudo, se há outros expedientes melhores, não há problema se alguém extrapolar o ensinamento do Vaticano II, dizendo o que ele não teve a coragem de dizer. Assim, os abusos doutrinais, litúrgicos e disciplinares dos "progressistas" são tolerados em um primeiro momento para, em seguida, logo serem autorizados, tal foi com a questão envolvendo o limbo, a pena de morte e a comunhão na mão. Mesmo se formos olhar para os tradicionalistas, as muitas concessões que Bento XVI e Francisco têm feito à FSSPX e outros grupos afins, não são senão meios mais eficazes de promover a destruição do conceito católico de autoridade papal. Então, por que não permitir que tal e tal grupo combatam ou desdigam o Concílio e o Papa em comunhão com Roma?
Portanto, não imaginemos ingenuamente que Francisco morra de amores pelo Vaticano II. Afinal, não foi ele que disse que a Igreja está duzentos anos atrasada? E não é ele, sempre ele, que, de novo e de novo, está propondo "desenvolvimentos da doutrina" que vão muito além do Vaticano II?
Pois bem. Mudem-se as lentes. Não estamos diante de um católico ou sequer de alguém que respeite o princípio de não contradição. O que temos é um modernista, filho da Revolução e inimigo da verdade eterna, cujo motto não é uma convicção doutrinal, mas um grito de rebelião: Non serviam. Se ouvirmos sua sedutora exortação, que nos quer longe das verdades eternas do catolicismo, seja com ou sem o Concílio, então se cumpriu a sua missão infernal.
III. ANÁLISE OBJETIVA: CERTO EM PRINCÍPIO, ERRADO NA APLICAÇÃO
Nesta segunda parte de nossa investigação, subtraíamos por um instante quem disse e o porquê disse e nos ponhamos a examinar essas duas teses principais, paráfrases fidedignas do discurso de Francisco: (1) o Concílio Vaticano II, enquanto parte do Magistério da Igreja, deve ser seguido e (2) os que resistem ao Concílio Vaticano II, quer o rejeitando ou o interpretando a seu modo, não estão com a Igreja, tal como alguns bispos e leigos que a deixaram depois do Vaticano I (os vétero-católicos ou velhos católicos).
1. A AUTORIDADE DO CONCÍLIO E DO MAGISTÉRIO PÓS-CONCILIAR
Primeiramente, cumpre observar, contra os tradicionalistas lefebvristas e os conservadores ao modo da TFP, Montfort, Arautos do Evangelho, Centro Dom Bosco e outros grupos, que as afirmações de Francisco estão certíssimas, se ele realmente fosse o Papa e o Vaticano II realmente fosse um Concílio da Igreja. Os motivos são simples e fáceis de provar dentro de uma perspectiva católica, porque dizem respeito à obediência que os súditos devem aos legítimos pastores, sobretudo ao Romano Pontífice, e a consequente adesão de espírito e coração, não só ao que é dogmático, mas também a tudo o que é pastoral.
Para demonstrá-lo cabalmente não necessitamos senão citar dois documentos do Papa Leão XIII, o qual goza do respeito e submissão de todos os católicos tradicionais, os quais, de modo algum, ousariam levar a sua resistência para além dos papas do Concílio Vaticano II.
Quando observamos certos indícios, não é difícil de ver que, entre os católicos, há alguns, talvez por causa do infortúnio dos tempos, que, não contentes com o papel de submissão que lhes pertence na Igreja, creem poder tomar parte em seu governo. No mínimo, eles imaginam que têm permissão para examinar e julgar, de acordo com sua própria maneira de ver, os atos de autoridade. Seria uma grave desordem, se isso prevalecesse na Igreja de Deus, onde, pela expressa vontade do seu divino Fundador, duas ordens distintas se estabelecem claramente, a Igreja docente e a Igreja dissente, os Pastores e o rebanho e, entre os pastores, um deles que é de todos o Cabeça e Pastor supremo. Somente aos pastores foi dado pleno poder para ensinar, julgar e governar; aos fiéis foi imposto o dever de seguir estes ensinamentos, de se submeter com docilidade a esses julgamentos, de se deixar governar, corrigir e conduzir à salvação. Assim, é absolutamente necessário que os simples fiéis se submetam de espírito e de coração aos próprios pastores, e estes, com eles, ao Cabeça e ao Pastor supremo. Desta subordinação, desta obediência, dependem a ordem e a vida da Igreja. É a condição essencial para fazer o bem e chegar feliz ao porto. Se, pelo contrário, os simples fiéis se atribuem autoridade, se pretendem constituir-se como juízes e doutores; se os inferiores preferem ou procuram fazer prevalecer, no governo da Igreja universal, uma direção diferente daquela da autoridade suprema, isso é, de sua parte, subverter a ordem, para confundir um grande número de espíritos e se desviar do caminho certo.
E não é necessário, para deixar de cumprir tal dever sagrado, fazer um ato de oposição aberta, seja aos Bispos, seja ao Chefe da Igreja; tudo o que é necessário é essa oposição que se dá de forma indireta, tanto mais perigosa quanto mais se procura velá-la com aparências contrárias. - Também não se cumpre a este sagrado dever quando, ao mesmo tempo que se mostra zelo pelo poder e prerrogativas do Sumo Pontífice, não se respeitam os Bispos que estão em comunhão com ele, ou não se toma devidamente em consideração a sua autoridade, ou seus atos e intenções são interpretados desfavoravelmente antes de qualquer juízo da Sé Apostólica. - É também uma prova de submissão pouco sincera, aquela de estabelecer uma oposição entre Soberano Pontífice e Soberano Pontífice. Aqueles que, entre duas direções diferentes, rejeitaram a do presente para se apegar ao passado, não obedecem à autoridade que tem o direito e o dever de dirigi-los e, em alguns aspectos, assemelham-se àqueles que, depois de uma condenação, desejam apelar para um futuro Concílio ou a um Papa melhor informado.
O que se deve ter presente a este respeito é, portanto, que no governo geral da Igreja, além dos deveres essenciais do ministério apostólico impostos a todos os Pontífices, cada um deles é livre para seguir a regra de conduta que, segundo os tempos e outras circunstâncias, julga ser melhor. Nisto, Ele é o único juiz, tendo, nesse ponto, não só luzes especiais, mas também o conhecimento da situação e das necessidades gerais da catolicidade, de acordo com as quais convém que seja regulada a sua solicitude apostólica. É Ele quem deve buscar o bem da Igreja universal, ao qual se articula o bem de suas diversas partes, e todos os demais que estão sujeitos a essa coordenação devem secundar a ação do Diretor supremo e servir aos Seus desígnios. Do mesmo modo que a Igreja é una, que sua Cabeça é única, do mesmo modo único é o governo, ao qual todos devem se conformar.
O esquecimento desses princípios resulta, para os católicos, em uma diminuição do respeito, veneração e confiança naquele que foi dado a eles como Cabeça. Os laços de amor e obediência que devem unir todos os fiéis aos seus pastores, e os fiéis, bem como seus pastores, ao Pastor Supremo, são enfraquecidos. E, no entanto, é desses laços que a preservação e a salvação de todos dependem principalmente. Quando se esquece e deixa de observar estes princípios, a mais ampla margem se abre para dissensões e discórdias entre os católicos, e isso em gravíssimo prejuízo da união que é o caráter distintivo dos fiéis de Jesus Cristo. Essa união deve ser sempre, mas particularmente nesta época, por conta da conspiração de tantas potências inimigas, do interesse supremo e universal, na presença do qual deve desaparecer qualquer sentimento de complacência pessoal ou vantagem privada.
Um tal dever, que se incumbe a todos sem exceção, é de modo mais rigoroso aquele dos jornalistas que, se não forem animados por esse espírito de docilidade e submissão, tão necessária a todo católico, contribuiriam para ampliar e agravar sobremaneira os males que Nós deploramos. A obrigação que eles têm de cumprir em tudo o que diz respeito aos interesses religiosos e à ação da Igreja na sociedade é, pois, submeter-se plenamente de espírito e coração, como todos os outros fiéis, aos seus próprios bispos e ao Romano Pontífice, para seguir e reproduzir seus ensinamentos, apoiar de todo o coração seu ímpeto, respeitar e garantir que as suas intenções sejam respeitadas. Os escritores que agissem de outra forma, para servir aos pontos de vista e interesses daqueles cujo espírito e tendências Nós condenamos nesta carta, faltariam no cumprimento de sua nobre missão e se gloriariam em vão de servir aos interesses e à causa da Igreja, como aqueles que buscam atenuar e diminuir a verdade católica, ou se contentam em ser seus muito tímidos apoiadores.
Papa Leão XIII, Epistola Tua ao Cardeal Guibert, 17 de junho de 1885.
Quanto à determinação dos limites da obediência, não imagine alguém que basta obedecer à autoridade dos pastores de almas e, sobre todos, do Pontífice Romano, nas matérias de dogma, cuja rejeição pertinaz traz consigo o pecado de heresia. Nem basta ainda dar sincero e firme assentimento àquelas doutrinas que, apesar de não definidas ainda com solene julgamento da Igreja, são todavia propostas à nossa fé pelo magistério ordinário e universal da mesma como divinamente reveladas e, as quais, por decreto do concílio Vaticano I devem ser cridas com fé católica e divina. É necessário também que os cristãos contem entre os seus deveres o de se deixarem reger e governar pela autoridade e direção dos bispos e principalmente da Sé Apostólica. Bem fácil é de ver o razoável dessa sujeição. Efetivamente das coisas contidas nos divinos oráculos, umas referem-se a Deus e outras ao mesmo homem e aos meios necessários para chegar à eterna salvação. Pois bem, nestas duas ordens de coisas, isto é, quanto ao que se deve crer e ao que se deve fazer, compete por Direito Divino à Igreja e, na Igreja, ao Romano Pontífice determiná-lo. E eis a razão do porquê o Romano Pontífice deve ter autoridade para julgar que coisas contenha a palavra de Deus, que doutrinas concordem com ela e quais dela desdigam; e, do mesmo modo, determinar o que é bem e o que é mal; o que se deve fazer e o que se deve evitar para conseguir a salvação eterna. Se isso não se pudesse fazer, o Papa não seria intérprete infalível da vontade de Deus, nem o guia seguro da vida do homem.
Papa Leão XIII, Sapientiæ Christianæ, 10 de janeiro de 1890.
Diante de tais ensinamentos, o mito do Magistério pós-conciliar pastoral e não obrigatório, cai por terra. E aqui, e somente aqui, deve-se conceder que Francisco se portou de maneira muito mais católica do que os tradicionalistas lefebvristas e os modernistas de linha conservadora em geral, pois ele de fato entendeu que os católicos, em questão de governo da Igreja, devem seguir aos pastores legítimos, não só da boca para fora, mas de espírito e coração, e, na prática, isso significa a adesão não só ao dogmático, mas também ao pastoral. Aliás, vale lembrar, a própria proposição, segundo a qual só se deve aderir ao que é dogmático foi condenada no Syllabus como um entre outros erros modernos:
A obrigação à qual estão absolutamente vinculados os os mestres e os escritores católicos se limita àquelas coisas que pelo infalível juízo da Igreja são propostas como dogmas de fé pra serem acreditadas por todos.
Proposição n. 22, condenada pelo Papa Pio IX no Syllabus, 8 de dezembro de 1864.
No entanto, não se insista mais nesse ponto, pois, embora o princípio seja certo e indiscutível, in re ele não se aplica ao Vaticano II pelo simples motivo de que esses ensinamentos não se aplicam a uma falsa igreja e a um falso papa. Ora, um diligente exame do caráter da religião conciliar, quer tomando-a em si mesma pela análise de seu gênero, espécie e diferença específica, quer comparando-a com a Santa Igreja Católica em suas propriedades e notas, demonstra que ela não é a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo e que seu Chefe não é o Vigário de Cristo sobre a terra. Aos que desejam saber mais sobre o tema, convido à leitura de nossa síntese intitulada Exposição Escolástica do Sedevacantismo.
2. OS TRADICIONALISTAS COMO VELHOS CATÓLICOS
A segunda tese, consequência da primeira, também não se aplica, mas aqui não só por conta da invalidade de toda e qualquer inovação modernista, mas ssobretudo porque a comparação entre os tradicionalistas (que rejeitam o Concílio Vaticano II) e os vétero-católicos (que rejeitaram o Concílio Vaticano I, especialmente no que diz respeito à infalibilidade papal) é não só um tanto imprecisa, como altamente irônica.
Mas não é a primeira vez que Francisco usa os velhos católicos como um exemplo de cisma, símile ao dos tradicionalistas, que, no fim, não acabou muito bem. Em uma conferência aos jornalistas, dada em setembro de 2019, em sua viagem de retorno da África, ele comentou:
Na Igreja aconteceram muitos cismas. Após o Vaticano I, por exemplo, à última votação, aquela da infalibilidade, um bom grupo saiu e fundou os vétero-católicos para serem justamente “honestos” com a tradição da Igreja. Depois eles encontraram um desenvolvimento diferente e agora fazem as ordenações das mulheres. Mas naquele momento eles eram rígidos, iam atrás de uma ortodoxia e pensavam que o concílio tivesse cometido um erro. Outro grupo saiu em silêncio, mas não quiseram votar … O Vaticano II teve entre as consequências essas coisas.
Fonte: IHU
Embora não careça de fundamento certa associação dos tradicinalistas lefebvristas e similares aos vétero-católicos, posto que ambos têm uma noção distorcida de autoridade eclesiástica e muitas vezes se servem dos mesmos argumentos, por muitos motivos ela não é justa.
Mas o primeiro e principal é porque os vetero-católicos que resistiram ao Vaticano I em 1870 não eram a ala conservadora do Concílio, dita ultramontana ou infalibilista, mas precisamente a ala liberal.
O pensamento de Ignaz von Döllinger, que foi a alma do movimento vetero-católico, já estava eivada de galicanismo, liberalismo e filo-protestantismo muito antes de sua ruptura com Roma, como se depreende de alguns rasgos de sua biografia:
Ele ficou firmemente persuadido de que a ciência teológica só poderia ser salva pela Igreja Católica Alemã, não pela Igreja Católica na Alemanha… Sua aversão à educação do clero nos seminários, mais tarde bastante evidente, foi outro resultado dessa atitude mental, tendência que revelou em várias ocasiões… Aos poucos passou a ser visto como um galicano, não só por causa de sua forte antipatia pelos jesuítas, frequentemente expressa. Muitas pessoas, entre elas os melhores e mais leais apoiadores da Igreja, desde então olharam com certa ansiedade para o curso tomado por Döllinger. Não se podia dizer que o núncio de Munique o admirava sem reservas. Por outro lado, entre as fileiras do clero alemão e austríaco, ainda havia apenas um conhecimento teológico medíocre, o legado de um período anterior de infidelidade e racionalismo, e o conceito de doutrina e disciplina católicas diferia amplamente do verdadeiro ideal eclesiástico de ambos…
É digno de nota também que por volta de 1855 o autor do trabalho sobre a Reforma começou gradualmente a modificar suas opiniões a tal ponto que eventualmente (em 1889) ele escreveria um panegírico ao protestantismo…
O ano de 1857 foi marcado pelo aparecimento de seu "Heidenthum und Judenthum, Vorhalle des Christenthums" (Paganismo e Judaísmo, o Portal do Cristianismo), a primeira parte de sua longa história contemplada da Igreja, a segunda parte se seguiu em 1860 (2ª ed., 1868) como "Christenthum und Kirche in der Zeit der Grundlegung", tratando da era apostólica. A obra, como ele havia planejado, nunca foi concluída. A maior parte do abundante material que ele reuniu para uma história exaustiva do papado foi posteriormente utilizado de forma jornalística e efêmera. Nunca empreendeu a obra em si, e se o tivesse feito, é possível que tivesse entrado em conflito com a Santa Sé muito antes do que o fez.
Em 1861, algumas das principais senhoras de Munique solicitaram-lhe que proferisse uma série de discursos públicos sobre o poder temporal… Suas declarações, no entanto, foram tão imprudentes e tão claramente inspiradas pelo liberalismo que, no meio de um deles, o núncio papal, Monsenhor Chigi, levantou-se indignado e saiu do salão. A impressão causada por esses discursos no mundo católico foi dolorosa ao extremo.
Baumgarten, Paul Maria. Johann Joseph Ignaz von Döllinger. The Catholic Encyclopedia. Vol. 5. New York: Robert Appleton Company, 1909.
E quando examinamos as primeiras mudanças feitas pelos vetero-católicos, longe de descobrirmos homens interessados em preservar a antiga tradição doutrinal, litúrgica e disciplinar da Igreja até o tempo do Concílio do Vaticano, o que nós vemos, em realidade, é uma atitude muito semelhante àquela dos modernistas logo depois do Vaticano II, isto é, intenso ecumenismo com protestantes e cismáticos, mudança da liturgia para o vernáculo e participação do leigos em papéis que até ontem eram reservados ao clero. Portanto, chamá-los de católicos tradicionais é algo "totalmente estranho, pois nas doutrinas essenciais e no culto, eles dificilmente diferem de uma forma liberal do protestantismo. (Baumgarten, Paul Maria. Old Catholics. The Catholic Encyclopedia. Vol. 11. New York: Robert Appleton Company, 1911). No dizer do Papa Pio IX, os hereges não eram nem velhos, nem católicos (Etsi Multa).
Assim, o que Francisco tentou fazer foi uma acomodação, forçando uma interpretação dos fatos que melhor servisse para provar o seu ponto. O que ela prova, porém, é que modernismo de Francisco e seus sequazes é uma seita herética feita à imagem e semelhança do vétero-catolicismo, com seu ecumenismo fanático, sua liturgia em vernáculo e, com certeza, uma maior participação da mulher e dos leigos em geral em papéis que antes eram próprios dos sacerdotes. Não foi o próprio Francisco que, dias depois desse discurso, nomeou pela primeira vez uma mulher, com poder de voto, para participar do Sínodo dos Bispos? Mais um passo vétero-católico de Francisco: Rumo as Diaconisas!
CONCLUSÃO
Diante dos pensamentos a que nos levou a reflexão de Francisco sobre o caráter magisterial do Vaticano II, a exigência e rigor para com aqueles que o entendem de uma maneira seletiva e o argumento dos vétero-católicos, percebemos em que mundo estranho nós estamos: nem os tradicionalistas são realmente tradicionalistas, nem os modernistas são realmente modernistas, quando o que procuramos é uma coerência na ordem da verdade. Ambos efetivamente traem os próprios princípios quando se trata de levar a cabo uma agenda cômoda e alheia à profissão integral do catolicismo.
Para os tradicionalistas, seguir a autoridade eclesiástica é um ponto facultativo, uma mera formalidade, que não deve ser acompanhada do assentimento de espírito e coração. Para os modernistas, as doutrinas religiosas são apenas meios imperfeitos de expressão, pelos quais o homem exercita sua liberdade de pensamento sobre Deus e o destino do homem. E assim, por incrível que pareça, caminham juntos e de mãos dadas os aparentes inimigos na declaração unânime do direito de resistir à autoridade da verdade e ao Papa, o seu representante sobre a terra.
De fato, todo esse pragmatismo é fruto de falta de amor à verdade. E porque não há amor à verdade, também não há profundo ódio ao erro. Temos de constatar, pois, ao fim desse exame, a intrínseca maldade dessas abordagens de coexistência, adotadas tanto pelos modernistas quanto pelos tradicionalistas depois do Vaticano II, pois, se a verdade é uma só e todos devemos abraçá-la, então nos estão privando do bem maior aqueles que as escondem de nós a verdade católica pura e integral. Estes são os nossos maiores inimigos e os que não os tratam como tais não são dignos de imitação. Com efeito, já dizia o Padre Frederick Faber, "onde não há ódio à heresia, não há santidade."