As heresias são a principal arma do demônio e não há neste mundo quem mais contribua para a realização dos projetos diabólicos do que os hereges. O modo como eles agem, a gravidade do seu pecado e o tremendo dano que causam à Igreja disso nos certificam totalmente.
A. A ATITUDE HERÉTICA
Como é mais próprio da natureza angélica usar da persuasão para enganar aos homens, não há dúvida de que os homens que mais lhe servem e imitam neste mundo são os hereges, porque por hereges se entendem justamente falsos doutores que, com suas falsas doutrinas, procuram desviar os homens por meio de um cristianismo falsificado, adulterando o Evangelho de Jesus Cristo.
Nosso Senhor já tinha profetizado o seu advento em São Mateus XXIV, 11. 23-25: "E levantar-se-ão muitos falsos profetas, e enganarão a muitos… Então se alguém vos disser: Olhai, aqui está o Cristo, ou ei-lo acolá: Não lhe deis crédito. Porque se levantarão falsos Cristos, e falsos profetas: Que farão grandes prodígios, e maravilhas tais, que (se fora possível) até os escolhidos se enganariam. Vede que eu vô-lo adverti antes."
Os Apóstolos, por sua vez, puseram todo o peso de sua autoridade no combate a esses falsários da Palavra de Deus. Assim, São Paulo ordena: "Se alguém vos anunciar um evangelho diferente daquele que recebestes, seja anátema." (Gálatas I, 9). São João tem ao herege na conta de um sedutor, um anticristo, um homem que dissolve Cristo (cf. I São João IV, 3; II São João 7) e manda que nem sequer lhe seja feita saudação alguma: "Não o recebais em vossa casa, nem lhe digam 'Deus te salve'". (II São João 10). São Pedro, com a autoridade de seu ofício e fervor de sua fé, denuncia assim aos sectários: "Houve porém no povo até falsos profetas, assim como também haverá entre vós falsos doutores, que introduzirão seitas de perdição, e negarão aquele Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos apressada ruína: E muitos seguirão as suas dissoluções, por quem será blasfemado o caminho da verdade." (II São Pedro II, 1-2). São Judas fala de maneira semelhante em toda a sua epístola católica. Por fim, novamente São Paulo avisa aos perturbadores da unidade de fé em Corinto que "as armas da nossa milícia não são carnais, mas são poderosas em Deus para a destruição das fortificações, derribando os conselhos e toda a altura que se levanta contra a ciência de Deus, e reduzindo a cativeiro todo o entendimento, para que obedeça a Cristo, e tendo em nossa mão o poder de castigar a todos os desobedientes" (II Coríntios X, 4-6). Deste modo varonil combateram os Santos Apóstolos aos filósofos da gentilidade, aos judaizantes e todos aqueles que procuravam de um modo ou de outro alterar o verdadeiro conhecimento de Deus que lhes havia sido confiado por Revelação Divina.
Os Apóstolos não só procederam assim, como também mandaram que assim fizesse cada bispo em sua Igreja. Deste modo, São Timóteo recebe de São Paulo o preceito de combater pelas verdades da fé: "Este mandamento te encarrego… milites por elas boa milícia. Conservando a fé e a boa consciência, a qual porque ainda alguns repeliram, naufragaram na fé: Deste número é Himeneu, e Alexandre, os quais eu entreguei a satanás, para que aprendam a não blasfemar." (I São Timóteo I, 18-20). Ele também exorta os presbíteros da Igreja de Éfeso, dizendo: "Atendei, por vós e por todo o rebanho, sobre que o Espírito Santo vos constituiu Bispos, para governardes a igreja de Deus, que ele adquiriu pelo seu próprio sangue. Porque eu sei que depois da minha despedida, hão-de entrar a vós certos lobos arrebatadores, que não hão de perdoar ao rebanho. E que dentre vós mesmos hão de sair homens que hão de publicar doutrinas perversas, com o intento de levarem após si muitos discípulos. Por cuja causa vigiai, lembrando-vos que por três anos não cessei de noite e de dia de admoestar com lágrimas a cada um de vós." (Atos XX, 28-31). "Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus operários, guardai-vos dos falsos circuncidados", escrevia o mesmo Apóstolo aos Filipenses (III, 2), os cães sendo os mesmos falsos mestres indicados acima sob o título de "lobos arrebatadores".
Os Padres da Igreja não manifestaram maior clemência para com os pervertidos na fé. Um escritor protestante descreve assim a sua doutrina (Schaff-Herzog, v. Heresy): "Policarpo considerava Marcião como o primogênito do diabo. Inácio vê nos hereges plantas venenosas ou animais em forma humana. Justino e Tertuliano condenam seus erros como inspirações do Maligno. Teófilo os compara a ilhas áridas e rochosas, nas quais os navios naufragam. Orígenes diz que, assim como os piratas colocam luzes nos penhascos para atrair e destruir navios em busca de refúgio, o Príncipe deste mundo acende o fogo do falso conhecimento para destruir os homens. [Jerônimo chama as congregações dos hereges de sinagogas de Satanás (Ep. 123), e diz que sua comunhão deve ser evitada como a das víboras e escorpiões (Ep. 130).]"
Esse conceito dos antigos sobre a heresia foi fielmente transmitido e posto em prática pela Igreja Católica nas épocas subsequentes. Quem quer que examine as Atas dos Concílios, veja os procedimentos inquisitoriais de Gregório IX contra os albigenses, leia a Bula de Leão X contra Lutero, ou, mais recentemente, as encíclicas Satis Cognitum de Leão XIII, Pascendi de São Pio X, Mostalium Animos de Pio XI, Humani Generis de Pio XII verá a mesma atitude apostólica em face das heresias. Numa palavra, não há quebra na tradição de São Pedro a São Pio XII.
Por outra parte, quem quer que considere o aggiornamento de João XXIII, o culto do homem de Paulo VI, o Encontro de Assis de João Paulo II, a Nova Evangelização de Bento XVI e a Cultura do Diálogo e do Encontro de Francisco rapidamente notará uma ruptura com o modo de proceder dos Apóstolos, dos Santos Padres e da Igreja Católica em geral, além de achar nelas uma flagrante violação do preceito do mesmo Cristo, que manda submeter ao Evangelho os infiéis (São Mateus XXVIII, 20) e tratar como pagãos e publicanos aos que não dão ouvidos à Igreja (São Mateus XVIII, 17).
Essa atitude nova, qualificada por Pio XII como irenismo, porque dissente do modo de agir da Igreja do passado e, ainda mais, por ser aplicação de heresias já condenadas, a saber, do liberalismo e do modernismo, promove, sem dúvida, a união pacífica de todos os homens, mas somente para ajuntá-los em uma comum ruína (Humani Generis). Ora, uma instituição que já não promove obstáculos eficazes no combate dos erros, em fidelidade aos preceitos dominicais e apostólicos, apostatou da religião de Jesus Cristo, que não admite esse tipo de coisa.
Contudo, não romperam com essa tradição os assim-chamados tradicionalistas, uma vez que eles permanecem no combate dos erros modernos, em especial do modernismo. É por isso que, em nosso tempo, a Igreja de Cristo está justamente aí, onde a fé de sempre é preservada e são mantidos intactos os bons costumes.
B. A GRAVIDADE DO PECADO DE HERESIA
Os hereges também servem e imitam ao demônio mais perfeitamente, porque a infidelidade é o mais grave de todos os pecados e, das espécies de infidelidade que existem, a heresia é a pior de todas.
São Tomás assim o demonstra na Suma de Teologia II-II, q. 10, aa. 3 e 6: "Todo pecado consiste formalmente na aversão a Deus, como disse acima, consequentemente, quanto mais um pecado separa o homem de Deus, mais grave ele é. Ora, não há nada que separe mais o homem de Deus do que a infidelidade, porque nesse estado ele nem sequer tem o verdadeiro conhecimento de Deus e, pelo falso conhecimento de Deus, o homem não se aproxima dele, mas dele fica cada vez mais distante… Quem resiste à fé depois de aceitá-la peca mais gravemente contra a fé do que quem resiste sem tê-la aceito, assim como quem não cumpre o que prometeu, peca mais gravemente do que se nunca o tivesse prometido. Desta forma, a infidelidade dos hereges, que confessam sua fé no Evangelho, e resistem a essa fé corrompendo-a, é um pecado mais grave do que o dos judeus, que nunca aceitaram a fé do Evangelho. No entanto, visto que eles aceitaram a figura dessa fé na Lei Antiga, que eles corrompem com suas falsas interpretações, sua infidelidade é um pecado mais grave do que a dos gentios, porque estes não aceitaram a fé do Evangelho de maneira alguma."
C. O PREJUÍZO QUE CAUSA À IGREJA
Além disso e para concluir, comprova-se a maior serventia e semelhança dos hereges ao demônio, pelo maior dano que estes causam à Igreja. Santo Afonso Maria de Ligório, no Prefácio de sua Storia delle Eresia colle loro confutazioni, observa que por maiores que tenham sido as perseguições que a Igreja tenha sofrido por causa da idolatria dos gentios, ainda maiores foram aquelas que ela teve de suportar dos hereges saídos de seu próprio seio: desses homens ímpios que, por orgulho ou ambição, ou por licença de costumes, esforçaram-se para rasgar as entranhas de sua própria mãe.
Por isso, a heresia foi chamada de câncer: "Propaga-se como um câncer: Ut cancer serpit" (II São Timóteo II, 17), pois assim como o câncer infecta todo o corpo, a heresia infecta toda a alma, a mente e o coração, o intelecto e a vontade. É por isso também que recebeu o nome de praga, pois não infecta apenas a pessoa contaminada por ela, mas aqueles que a ela se associam, e a isso se deve que a disseminação dessa praga no mundo prejudicou mais a Igreja do que a idolatria, e essa boa mãe sofreu mais com seus próprios filhos do que com seus inimigos externos.
Portanto, se é sumamente útil e benéfico curar um câncer ou livrar-se de uma peste, assim também será de grande valor refutar todas as heresias, que em realidade são mais nocivas do que todas essas coisas, já que pervertem a parte mais elevada do homem, seu intelecto e vontade, e assim fazem com que este se mude de filho de Deus para instrumento do demônio.