Continuação de O Triunfo de São Roberto Belarmino.
II. SÃO ROBERTO BELARMINO EXIGE UMA SENTENÇA DECLARATÓRIA?
Houve também quem dissesse que São Roberto Belarmino teria ensinado que, em caso de heresia manifesta da parte do Romano Pontífice, seria necessária uma sentença declaratória por parte da Igreja. Essa opinião inusual procura fazer malabarismos com o significado jurídico do termo "ipso facto", muito embora o Santo nem sequer o utilize no caso em questão. Em todo caso, essa afirmação não é capaz de manter-se de pé perante um exame sério da doutrina do papa herético segundo São Roberto Belarmino, seja exposta por ele mesmo, seja por um de seus melhores antagonistas.
A. A POSIÇÃO DE SÃO ROBERTO BELARMINO EXPOSTA POR ELE MESMO
Antes de tudo, cumpre ressaltar que para o Santo Doutor era mais provável e fácil de defender a sentença de que um papa nunca poderia cair em heresia. Contudo, como não se trata de uma opinião certa e unânime, ele aceita discutir qual seria a opinião verdadeira, se um dia pudesse haver um Papa herético. Assim diz ele em De Romano Pontifice, livro II, cap. XXX: "Papam non posse esse haereticum; proinde nec deponi in ullo casu, quae sententia probabilis est, et defendi potest facile, ut postea suo loco ostendemus. Quia tamen non est certa, et communis opinio est in contrarium, operae pretium erit videre, quid sit respondendum, si Papa haereticus esse possit." No livro IV, capítulo VI, São Roberto repete o mesmo parecer: "Probabile est, pieque credi potest, summum Pontificem non solum ut Pontificem errare non posse, sed etiam ut particularem personam haereticum esse non posse, falsum aliquid contra Fidem pertinaciter credendo. - É provável e piedoso crer que o Sumo Pontífice não possa errar, não só como Pontífice, mas também que como pessoa particular não possa ser herético, crendo pertinazmente em algo contra a fé."
Portanto, a posição do Santo Doutor nem sequer admite a necessidade de uma deposição, porque jamais acontecerá, segundo ele, de termos um Papa herético. É por isso que muitos em nosso tempo entendem que os Papas do Concílio Vaticano II jamais foram verdadeiros e legítimos papas, isto é, dizem que ou sua eleição mesma foi inválida, ou que, sendo válida a sua nomeação ao cargo, não receberam a jurisdição necessária para possui-lo formalmente. Ambas as posições podem ser chamadas de belarminianas, porque defendem que o Papado repugna à heresia de uma tal forma, que não pode existir um Papa herético. De fato, quem quer que leia o que a Constituição Dogmática Pastor Aeternus declarou sobre as prerrogativas da Santa Sé não terá a menor dificuldade de admitir esse parecer.
Contudo, é evidente que, se a hipótese de um papa herético fosse verdadeira, São Roberto Belarmino teria adotado a seguinte posição: "Est ergo quinta opinio vera, Papam haereticum manifestum per se desinere esse Papam et Caput, sicut per se desinit esse Christianus et membrum corporis Ecclesiae; quare ab Ecclesia posse eum judicari et puniri. Haec est sententia omnium veterum Patrum, qui docent, haereticos manifestos mox amittere omnem jurisdictionem. - Portanto, a quinta opinião é a verdadeira, o papa herético manifesto por si deixa de ser Papa e Cabeça, como por si deixa de ser cristão e membro do corpo da Igreja; pelo que a Igreja pode julgá-lo e puni-lo. Essa é a sentença de todos os antigos Padres, que ensinam que hereges manifestos perdem imediatamente toda a jurisdição." (De Romano Pontifice, livro II, cap. XXX.)
Novamente, segue aqui o Sato Doutor o princípio que tinha posto no argumento sétimo do capítulo anterior, isto é, não se pode julgar e punir ao papa enquanto este for um superior, logo ninguém pode julgar ou depor ao Papa enquanto tal. Como no caso de heresia manifesta a perda do cargo ocorre simultaneamente com a perda da condição de membro do corpo da Igreja, então já não se estaria falando de julgar um superior ou um igual, mas um inferior e um desertor da fé. Se quisermos usar a analogia do Concílio de Trento, seria a mesma coisa que julgar um soldado que por conta própria abandonou o exército. Logo, realmente a Igreja pode julgá-lo e puni-lo.
B. A POSIÇÃO DE SÃO ROBERTO BELARMINO EXPOSTA POR UM DE SEUS RIVAIS
É muito claro o ensinamento do Santo, mas é bom aduzir à interpretação de um de seus mais célebres antagonista, João de São Tomás, para que seja a todos manifesto o seu pensamento sobre o assunto. Depois de ter exposto e defendido o pensamento de Caetano, João de São Tomás procura responder aos argumentos contrários de São Roberto Belarmino, pois de fato este, no mesmo De Romano Pontifice, livro II, cap. XXX, fez uma refutação à posição de Caetano sobre a necessidade de uma declaração jurídica para depor o papa herético. O teólogo lusitano assim expõe o pensamento de São Roberto Belarmino:
"Argumenta Bellarmini, et Suarez, contra praedictam sententiam facilis solutionis sunt. Objicit enim Bellarminus. Quod Apostolus dicit haereticum hominem post duas correptiones esse evitandum, id est postquam manifeste apparet pertinax ante omnem excomunicationem, et Judicis sententiam; ut ibi scribit Hieronymus. Quia haeretici per se discedunt a Corpore Christi. Et ratio est, Quia non Christianus non potest esse Papa, nec enim est caput, qui non est membum; Haerticus autem Christianus non est, ut docent communiter Patres: ergo manifestus Haereticus Papa esse non potest. Nec obstat, quod in ipso adhuc manet character nam si ratione characteris maneret Papa, cum hic sit indelebilis nunquam deponi poterit. Unde Patres communiter docent Haereticus ratione haeresis, et independenter ab excommunicatione carere omni jurisdictione, et potestate ut Cyprianus, Hieronymus, et Ambrosius. - Os argumentos de Belarmino e de Suárez contra a sentença acima são de fácil resolução. Belarmino então objeta que o Apóstolo disse que o homem herético deve ser evitado depois de duas correções, isto é, depois que se apresente manifestamente pertinaz, antes de qualquer excomunhão e sentença do juiz; como escreve Jerônimo neste lugar. Pois os hereges por si mesmos se separam do Corpo de Cristo. E a razão é que um não cristão não pode ser papa, nem tampouco pode ser cabeça quem não é membro; o herege, porém, não é membro, como ensinam comumente os Padres: logo o Papa herético manifesto não pode sê-lo. Não obsta que se diga que permanece o caráter, pois se ele permanecesse Papa em razão do caráter, como este é indelével, ele nunca poderia ser deposto. Donde os Padres comumente ensinem que hereges em razão de heresia, e independentemente de excomunhão, carecem de todo poder e jurisdição, como Cipriano, Jerônimo e Ambrósio." (Cursus Theologicus in Secundam Secundae D. Thomae (vol. VI), Disputatio VIII, Articulus III, p. 139, Solvuntur Argumenta, n. 1)
Até aqui João de São Tomás faz uma paráfrase do que diz Belarmino sobre a opinião quinta. É importante ressaltar que está muito claro para ele que, segundo São Roberto Belarmino, não é necessária sentença alguma de juiz, basta a constatação do fato, isto é, que o tal Papa herético dê mostras de aderir obstinadamente à heresia. Na sua resposta, João de São Tomás tornará ainda mais evidentes as implicações práticas da posição do Santo Doutor:
"Respondetur Haereticus esse evitandum propter duas correptiones juridice scilicet factas, et ab Ecclesiae authoritate, et non secundum privatum judicium; sequeretur enim magna confusio in Ecclesia si sufficeret hanc correptionem esse factam ab homine privato, et quod facta manifestatione haeresis non tamen declarata ab Ecclesia, et proposita omnibus ut evitent Pontificem teneri omnes illum evitare, nec enim omnibus fidelibus potest esse publica haeresis Papae, nisi ex relatione aliorum: relatio autem ista cum non sit juridica non obligat, ut ei omnes credant et illum evitent: requiritur ergo quod sicut Ecclesia designando ipsum omnibus juridice ipsum ut electum proponit, sic declarando et proponendo eum ut Haereticum evitandum eum deponat. Unde sic videmus practicatum in Ecclesia quod in casu depositionis Papae causa ista in generali Concilio prius tractata est quo pro non Papa habitus, sicut supra retulimus. Non ergo Papa ipso facto quo Haereticus est, etiam publice desint esse Papa ante omnem Ecclesiae sententiam, et antequam ipsum, ut evitandum fidelibus proponat. Nec Hieronymus quando dicit Haereticum per se discedere a corpore Christi, excludit ipsum Ecclesiae judicium praesertim in re tam gravi, qualis est depositio Papae, sed criminis indicat qualitatem, quod per se sine alia censura superaddita excludit ab Ecclesia, dummodo tamen per Ecclesia declaretur, licet enim ex se separet ab Ecclesia, tamen quoad nos non intellegitur facta separatio sine ista declaratione. Et similiter ad rationem Resp. Quod non Christianus, qui quoad se, et quoad nos Christianus non est, non potest esse Papa; si tamen quoad se Christianus non sit, quia fidem amisit, quoad nos autem adhuc non sit juridice declaratus, ut Infidelis, vel Haereticus, quantumcumque manifestus sit secundem privatum judicium, adhuc quoad nos est membrum Ecclesiae, et consequenter caput. Requiritur ergo judicium Ecclesiae, quo proponatur, ut non Christianus, et evitandus, et tunc desint quoad nos esse Papa, et consequenter antea non desinerat etiam in se, quia omnia quae faciebat erant valida in se. -Responda-se [a Belarmino] que o herético deve ser evitado depois de duas correções feitas juridicamente e com a autoridade da Igreja, e não segundo um juízo privado; com efeito, seguir-se-ia uma grande confusão na Igreja se bastasse que essa correção fosse feita por um homem privado e que a manifestação dessa heresia tendo sido feita, sem ser declarada pela Igreja e proposta a todos, para que evitassem o pontífice, todos fossem obrigados a evitá-lo: pois uma heresia do papa não pode se tornar pública a todos os fiéis senão pela comunicação de outros: e esta comunicação, se não é jurídica, não obriga que todos creiam nela e evitem o pontífice; e, por conseguinte, como a Igreja o designa propondo-o a todos juridicamente como eleito, é preciso igualmente que ela o deponha declarando-o e propondo-o como herege a ser evitado. De onde vemos que assim sempre foi praticado pela Igreja em caso de deposição do papa, a qual se trata no Concílio geral antes que se tenha o papa por não papa, como dissemos mais acima. Portanto, não é por ser o papa herético, mesmo publicamente, que ele cessa por este fato de ser papa antes da declaração da Igreja, e antes de que ele seja proposto aos fiéis como a se evitar. E quando São Jerônimo diz que um herege se separa por si só do Corpo de Cristo, ele não exclui um juízo da Igreja, sobretudo em um caso tão grave como a deposição de um papa, mas indica a qualidade do crime que exclui por si só da Igreja, sem censura complementar, no mínimo a partir do momento em que é declarado pela Igreja; com efeito, mesmo que o crime de heresia separe por si mesmo da Igreja, porém, quanto a nós, ele não se entende como feito sem essa declaração. Por semelhante razão, respondo que um não cristão em si e quanto a nós não pode ser papa; contudo, caso ele não seja cristão em si mesmo, porque perdeu a fé, mas quanto a nós não for juridicamente declarado, como infiel ou herético, por mais evidente que isso seja segundo um juízo privado, quanto a nós ele ainda seria membro da Igreja e consequentemente cabeça. Portanto, exige-se um juízo da Igreja, pelo qual ele seja proposto como não cristão e a se evitar, e cesse de ser papa quanto a nós, e consequentemente antes disso ele não deixou de sê-lo, inclusive em si mesmo, já que tudo o que fazia era válido em si." (Cursus Theologicus in Secundam Secundae D. Thomae (vol. VI), Disputatio VIII, Articulus III, p. 139, Solvuntur Argumenta, n. 2)
Portanto, é evidente que no conceito de João de São Tomás, São Roberto Belarmino efetivamente ensinou que, na hipótese de um Papa herético, o tal cessaria de sê-lo sem necessidade alguma de declaração jurídica por parte da Igreja, bastando ao fiel um indício de sua perda de fé.