A canonização dos santos: a doutrina tradicional da Igreja versus o dogma tradicionalista de Gleize (FSSPX), Gherardini e de Mattei

Milão, 17 de Novembro 2018

XVII CONVEGNO DI STUDI ALBERTARIANI

Tema: Todos Santos… De ‘São’ João XXIII a ‘São’ Paulo VI, ou, na verdade, a Canonização do Vaticano II.

Relatore: don Francesco Ricossa

Via Católico Romano

I. Introdução: Paulo VI foi canonizado.

O tema do nosso encontro decorre desse acontecimento de pouco mais de um mês, ocorrido a 14 de outubro na Praça de São Pedro: a “canonização” entre aspas (e já explicaremos o porquê) de Paulo VI e, depois, de outros santos dos quais não falaremos, não porque não interessem, mas porque não teremos tempo para tanto.

“Normalmente, a canonização de um santo tem uma valência positiva, porém, no caso presente, essa valência é negativa”.

Esse acontecimento, como poderei explicar na segunda conferência, tem uma grande importância para a vida de um cristão. Normalmente, a canonização de um santo tem uma valência positiva, porém, no caso presente, essa valência é negativa. Como lhes foi dito agora há pouco, por séculos, pouquíssimos papas alcançaram à honra dos altares. Os dois únicos em idade moderna proclamados santos foram São Pio V e São Pio X, um foi elevado à honra dos altares, mas apenas como beato, Inocêncio XI – por Pio XII –, ao passo que, aparentemente (não à toa chamamos esta palestra “Todos Santos”), de João XXIII em diante a canonização parece assegurada para quem ocupa a sede de Pedro. Isso me lembra um imperador romano que, sentindo-se muito próximo da morte, preocupado e assustado, disse: “temo que estou para tornar-me um deus” (já que, após a morte, havia a deificação para o imperador defunto).

E hoje, provavelmente – desejando-lhes longa vida –, para Joseph Ratzinger e Jorge Mario Bergoglio é só questão de tempo: quando deixarem este triste mundo, devemos nos preparar para vê-los nos altares. Isso por princípio de indução, isto é, porque canonizaram todos os outros. João Paulo I, coitado, foi um pouco esquecido, mas, por sorte, ontem mesmo li que reconheceram um milagre seu, portanto ele também parte para a canonização e a lacuna será preenchida.

Pois bem, por ocasião da “canonização” (sempre entre aspas) de Paulo VI, eu fiz uma homilia sobre a questão, dando o nosso ponto de vista e do nosso instituto, e tive a agradável surpresa de ver que uma associação tradicionalista de Turim chamada Una Vox (divisão local da antiga Una Voce), inseriu em seu press review a transcrição dessa minha homilia. Porém, ao mesmo tempo, foram inseridos outros artigos sobre o mesmo tema que iam num sentido bem diferente da minha homilia, o que é normal, pois tot capita tot sententiae.

Entre esses, havia o artigo Falsos e verdadeiros santos do nosso tempo do prof. De Mattei, a quem devo agradecer pela resenha que fez sobre meu livro Vergonha da Tradição, mas do qual devo discordar.

II. Católicos Tradicionalistas rejeitaram a canonização de Paulo VI

A. Roberto De Mattei

1. Tese de De Mattei: O papa não é infalível nas canonizações.

Para resumir, De Mattei, que é o mais importante dentre aqueles que pensam da mesma maneira, rejeitou a canonização de Paulo VI (e nisso concordamos, já antecipo: não pensamos que Paulo VI seja verdadeiramente santo), mas, para fazê-lo sustentou que o papa não é infalível nas canonizações. Ou seja, ao declarar alguém santo, o papa – já que De Mattei, como a grande maioria dos tradicionalistas, reconhece a legitimidade do atual pontífice e de todos os outros desde Paulo VI – não é infalível nessa matéria.

É o único modo, pensa De Mattei e assim escreve e diz, de poder explicar o fato de que um legítimo papa, Pontífice da Santa Igreja e Vigário de Cristo, tenha canonizado a Paulo VI e que, não obstante, um fiel possa recusar essa proclamação e ter em consciência que Paulo VI não é santo.

2. Bases do Pensamento de De Mattei

Para sustentar essa hipótese, seu artigo se apoia na autoridade e resume brevemente os argumentos de alguns autores; cinco ou seis, mas dois em particular: todos esses autores, assim como De Mattei, são articulistas de publicações “tradicionalistas”, sempre entre aspas (uso esse termo por comodidade, embora não o considere muito exato), que:

  • por um lado, rejeitam a canonização de Paulo VI, ou ao menos a colocam em dúvida,
  • por outro, devem sustentar que o papa não é infalível ao canonizar.

Dois autores, porém, foram citados com maior atenção e são estes:

  • Monsenhor Brunero Gherardini, que nos deixou ano passado; foi professor na Pontifícia Universidade Lateranense, além de postulador da cananonização de Pio IX;
  • o outro é o Padre Jean-Michel Gleize, sacerdote da FSSPX e professor no seminário de Écône.
a. Mons. Gherardini e Padre Gleize

As opiniões de Mons. Gherar

dini e de Padre Gleize não são idênticas. Padre Gleize admite que, até o Concílio Vaticano II (este excluso), o papa era infalível nas canonizações, ao passo que Monsenhor Gherardini, estudando a coisa de modo mais aprofundado, sustenta que é possível colocar em dúvida, de modo mais geral – o que incluiria todas as canonizações do passado –, a infalibilidade papal nesse campo.

“É uma opinião que exponho como possibilidade, não como uma certeza”, diz.

Assim, para Gherardini, as canonizações não são infalíveis, e, para Gleize, as canonizações eram infalíveis, mas é lícito e legítimo ter sérias dúvidas ou até negar a infalibilidade das canonizações proclamadas em tempos recentes, sobretudo a partir de 1983, quando João Paulo II implementou mudanças no processo de canonização.

3. Dúvidas modernas de alguns ‘tradicionalistas’

Essa atitude na FSSPX começou a se manifestar em março de 2002, quando, num comunicado da assessoria de imprensa a respeito da iminente canonização do fundador da Opus Dei, Josemaria Escrivá de Balaguer, a fraternidade se coloca uma dúvida: “será que nesse último caso pode-se aplicar a infalibilidade pontifícia?”.

Este que vos fala respondeu a essa declaração da FSSPX com um artigo publicado na edição 54 de Sodalitium (nossa revista). Depois que Monsenhor de Balaguer foi declarado santo, publiquei na edição seguinte uma outra breve nota, sempre sobre o tema da infalibilidade nas canonizações.

Monsenhor Gherardini teve a bondade de citar-me entre os autores que recentemente defenderam a tese da infalibilidade, porém, como já dei a entender antes, não estava de acordo com o que escrevi.

De resto, disse, e com razão, que esses autores – sejam a favor ou contra a infalibilidade pontifícia nessa matéria – não disseram nada de novo sobre o tema, não fazendo mais que repetir o que já foi dito a respeito. E isso é verdade; também eu, nesse meu artigo, não disse nada de novo, limitei-me apenas a repetir o que ordinariamente afirmavam os teólogos.…para Gherardini, as canonizações não são infalíveis, e, para Gleize, as canonizações eram infalíveis.

Bem, isto posto, procuremos abordar a questão, que normalmente seria tema para especialistas, mas que torna-se importante para a vida concreta de cada simples cristão, de cada verdadeiro católico nos dias de hoje.

Em tempos normais somente um ímpio anticristão ou um protestante falariam mal de um santo.

4. Antes dessas dúvidas recentes ninguém colocava as canonizações em questão.

Um tema para especialistas que, porém, em tempos de paz, tranquilidade e ordem para a Igreja, não representava nenhum problema singular para os fiéis. O que quero dizer? Que um ímpio, um anticristão, um protestante poderia permitir-se falar mal de um santo, condená-lo, etc., mas jamais passaria pela cabeça de um católico que alguém venerado nos altares, de quem se lia a vida com admiração e se rezava com devoção pudesse não ser santo. Isto é, pensar que o Papa, Vigário de Cristo, pudesse enganar-se sobre alguém a quem oramos, assistimos a Santa Missa celebrada em sua honra, cujo nome está presente no calendário, de quem procuramos imitar a vida, as palavras e as virtudes, que é amado por todos e considerado nosso pai e irmão na Fé, a quem invocamos e do qual esperamos receber graças, com efeito, é coisa que não encontraríamos um único fiel para colocar em dúvida.

E essa fé do povo cristão correspondia à opinião unânime dos teólogos, ou seja, não é possível para um católico ter a mínima dúvida sobre a santidade de um personagem canonizado pela Igreja. Essa era a doutrina pacificamente sustentada pela Igreja.

Mesmo Monsenhor Gherardini, que em 2003 tentou propor uma opinião diferente e inovadora a esse propósito, admite o pacífico reconhecimento dessa doutrina, seja por parte dos doutores, seja pelos fieis. De fato, assim inicia seu artigo: “nada fazia pensar, até pouco tempo atrás, que a posição definitivamente alcançada com Bento XIV seria novamente discutida”.

5. O que levou Gherardini a reabrir uma discussão encerrada por Bento XIV?

O que houve, então, para um teólogo definido “o último da gloriosa escola romana de teologia” como Monsenhor Gherardini – que, além de tudo, foi postulador da causa de canonização de Pio IX durante boa parte de sua vida – quase dizer “meu esforço foi inútil, pois trabalhei para reconhecer uma santidade, mas, em realidade, esse decreto de canonização é evanescente, já que não temos nenhuma certeza de que alguém que o papa declara ser santo é santo de verdade”? O que o levou a tomar essa posição? Bem, fundamentalmente, foi o mesmo motivo que, no fim de sua vida, o levou a pôr em dúvida a infalibilidade do Magistério, por exemplo, no Concílio Vaticano II, uma vez que levanta a hipótese de que o Concílio contenha graves erros ou que, pelo menos, tem ensinamentos que entram em contraste com o ensinamento precedente da Igreja.

Assim, como o Magistério da Igreja, mesmo nos pontos onde normalmente se pensava que fosse infalível, tem sua autoridade posta em dúvida por causa do desconcerto que decorre da contradição entre o ensinamento atual e o precedente, da mesma forma, anos antes, Gherardini põe em xeque as canonizações.

Não diz qual canonização o inquietou

Não diz, contudo, a razão que o levou a isso, qual canonização que o inquietou – se foi a canonização de alguém em particular –, mas parece claro que se, até pouco tempo atrás, dizia “era ponto pacífico a infalibilidade do papa ao canonizar os santos” e agora tem sérias dúvidas é porque provavelmente também ele notou que, segundo seu parecer e de muitos, vinham sendo canonizados alguns homens que é difícil – para não dizer impossível – dizer que fossem santos.

Bem, então qual é o ensinamento da Igreja sobre esse tema? Com tanta confusão, o que pensar? A canonização dos santos é infalível ou não?

III. Silogismo das conferências

A. Premissa maior: o papa é infalível na canonização dos santos

Já antecipo, para sermos claros e evitar equívocos – porque às vezes fala-se muito e, no fim, percebemos que quem nos ouvia não entendeu nada e que falamos à toa – o meu pensamento e o de nosso instituto. Por um lado – e essa será a primeira conferência que farei –, o papa é infalível na canonização dos santos. Ou seja, não concordo com De Mattei, com Gherardini e com os outros autores que recentemente colocaram em dúvida a canonização dos santos. Portanto, essa será a premissa maior do nosso raciocínio.

B. Premissa menor: é absolutamente irrazoável pensar que Paulo VI possa ser considerado santo.

Já na segunda conferência gostaria de explicar os motivos pelos quais penso – e nisso De Mattei está de acordo conosco, ou nós com ele; em suma, todos os católicos ditos “tradicionalistas” estão de acordo – que Paulo VI (e não somente ele) não pode ser considerado santo. É absolutamente irrazoável pensar que Paulo VI possa ser considerado santo. E essa é a premissa menor do nosso raciocínio.

Em resumo: o papa é infalível ao canonizar os santos (premissa maior e primeira conferência). Ora, Paulo VI foi canonizado em 14 de outubro por Mario Jorge Bergoglio e beatificado precedentemente pelo mesmo, tendo antes a heroicidade de suas virtudes reconhecida por Ratzinger sob o título de “venerável”. Bem, a premissa menor é que a canonização feita por Bergoglio é um fracasso porque Paulo VI não pode ser considerado santo razoavelmente.

A conclusão que exponho desde já não pode ser outra além desta: Mario Jorge Bergoglio não pode ser o papa, pois, do contrário, a canonização declarada solenemente por ele na Praça de São Pedro em 14 de outubro de 2018 seria infalível. Naturalmente, o mesmo raciocínio podemos aplicar a João XXIII e João Paulo II, já no aguardo de aplicá-lo a todos os outros que se preparam, seguindo os passos desses, para elevar-se à honra, não podemos dizer “dos altares”, mas da mesa do novo missal.

IV. Provando a Premissa Maior

Então, quais argumentos podemos dar em favor da canonização infalível dos santos? Num breve parêntese, recordo que, efetivamente, a canonização sofreu uma evolução histórica.

Na Igreja sempre houve

  • o culto dos santos,
  • de suas relíquias,
  • e de suas imagens.

Essas três realidades são verdades de Fé, portanto, verdades reveladas por Deus que todo católico deve crer por Fé.

A. Como católicos temos o dever de culto aos santos

Por exemplo, o Concílio de Trento, em 3 de dezembro de 1563, emitiu um decreto sobre a invocação, a veneração dos santos e de suas relíquias e imagens sagradas (Denzinger-Schonmetzer, 1821 em diante):

Manda o Santo Concílio a todos os bispos, aos encarregados do ensino e aos que mantêm cura, que instruam diligentemente os fiéis, sobretudo no que diz respeito à intercessão e invocação dos Santos, à veneração das suas Relíquias e ao uso legítimo das Imagens, segundo o costume da Igreja Católica recebido dos primórdios do Cristianismo, conforme o consenso comum dos Santos Padres e os decretos dos sacros Concílios.

Ensinem-lhes que os Santos reinam juntamente com Cristo e oferecem a Deus suas orações pelos homens, que é bom e útil invocá-los com súplicas e recorrermos às suas orações, ao seu socorro e auxílio, para obtermos benefícios que a Deus devem ser pedidos por intermédio de Seu Filho Jesus Cristo Nosso Senhor, único Redentor e Salvador nosso.

Pensam, pois, impiamente os que dizem que os Santos, que gozam da eterna felicidade no céu, não devem ser invocados; outro tanto se diga dos que afirmam que invocá-los para que orem por cada um de nós é oposto à palavra de Deus e contrário à honra do único mediador de Deus e dos homens, Jesus Cristo (cfr. l Tim 2, 5), ou que é estultície suplicar com palavras ou mentalmente aos que reinam no céu.

A fé católica, portanto, nos ensina que aos santos deve-se culto e oração; e a devoção dos fiéis, como dissemos, jamais duvidou disso. Santos são todos aqueles que estão em graça de Deus, que têm a graça santificante; mas um culto particular, com orações confiantes e devotas, deve ser decretado não a todos que estão na graça de Deus, ou que morreram na graça de Deus, mas somente àqueles que, tendo praticado heroicamente todas as virtudes, das teologais às cardinais e morais, são um exemplo a ser imitado pelos batizados de modo tal que, ao imitar suas vidas e absorvendo suas doutrinas, estaremos seguros de caminhar pela via da santidade. Podemos confiar também que, por serem amigos de Cristo e reinarem no céu com Ele, são nossos intercessores junto ao Senhor.

B. Pela canonização a Igreja nos orienta como colocar em prática essa verdade de fé.

Como, porém, não sabemos com certeza quem praticou heroicamente as virtudes, quem está na glória do céu, quem pode, portanto, interceder e orar por nós, a quem devemos prestar culto, eis que a Igreja coloca em prática essa Fé. Concretiza-a. E de que modo? Com a canonização dos santos.

Alguns desses cristãos que viveram praticando heroicamente as virtudes são declarados santos pela Igreja e pelo Papa, que é seu chefe visível e Vigário de Cristo, de tal maneira que o católico possa aplicar essa verdade de fé que, de outro modo, ficaria sem objeto.

Afinal, é preciso orar aos santos, mas quem são? É preciso venerar as relíquias e as imagens dos santos, mas quem são esses santos de quem devemos venerar as relíquias e as imagens? Teríamos um culto a não se sabe quem, deveríamos orar a não se sabe quem, deveríamos seguir o exemplo de não se sabe quem e poderíamos, por um erro de julgamento nosso, tributar essa honra a pecadores e até mesmo, talvez, a condenados ao inferno que, com o mau exemplo de suas vidas e doutrinas, poderiam induzir-nos a erro.

Ao invés de guiar-nos pela via da santidade, poderiam conduzir-nos pela via da condenação. A esse respeito, pensemos em todos os casos de falsos santos que surgiram na história da Igreja e como o Santo Ofício ocupava-se de punir a santidade afetada que engana os fiéis. Também muitas seitas nasceram a partir de pessoas que, falsamente, simulavam uma santidade que não era verdadeira.

“creio em tudo o que ensinou Jesus Cristo, mas não sei o que Ele ensinou”

1. A fé tem o seu objeto definido pela Igreja guiada pelo Espírito Santo

A Fé nos diz que devemos crer com Fé divina em tudo o que nos revelou Deus na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, seu divino Filho Unigênito. Porém, se não soubéssemos o que Cristo nos revelou, seríamos obrigados a dizer “creio em tudo o que ensinou Jesus Cristo, mas não sei o que Ele ensinou”. E quem nos diz aquilo que nos revelaram Nosso Senhor, os profetas que O antecederam e os apóstolos depois d’Ele? Quem nos diz o que devemos crer por Fé? A Igreja. A Igreja nos diz “isso Jesus Cristo revelou e faz parte do depósito da Revelação e aquilo Jesus Cristo não revelou e não faz parte do depósito da Revelação”. É como dizemos no ato de Fé: “creio tudo o mais que crê e ensina a Santa Igreja Católica Apostólica Romana porque Deus, verdade infalível, lho revelou”. Não é que a Santa Igreja inventa a Revelação. Ela nos assegura infalivelmente aquilo que Cristo revelou e, destarte, por oposição de contrariedade ou de contradição, o que devemos rejeitar como erro ou heresia.

“creio que devo cultuar os santos, mas não sei quem são os verdadeiros ou os falsos santos”

2. O culto aos santos tem seu objeto definido pela Igreja guiada pelo Espírito Santo.

Bem, analogicamente, a Fé nos diz que devemos prestar um culto aos santos, às suas relíquias e suas imagens, orar para eles e imitar suas vidas e virtudes, mas essa Fé ficaria sem objeto, não saberíamos distinguir entre os verdadeiros e falsos santos (como diz o título do artigo de Roberto de Mattei, “Veri e Falsi Santi del nostro tempo”) se a Igreja não nos dissesse quem devemos venerar e quem não, quem praticou as virtudes heróicas, a quem devemos rezar, a quem devemos prestar culto – notem bem que trata-se de um culto (dulia) que envolve a virtude de religião.

a. O culto dos santos é um ensinamento de fé e de moral: imitação de virtudes morais.

Como falamos de virtudes dos santos que devem ser imitadas, isso envolve a moral cristã, pois as virtudes praticadas por eles são a aplicação prática dessa mesma moral, e os vícios contra os quais os santos lutaram e venceram são o contrário da moral cristã. Enfim, já que não é possível ser declarado santo sem ter a virtude da Fé eminentemente, heroicamente vivida, então também o ensinamento dos santos é, para nós, como uma profissão de Fé.

Portanto, envolve o culto e a virtude de religião, toda a moral cristã e até mesmo a profissão de Fé cristã. Tudo isso está incluído na canonização dos santos. E, como o Papa e a Igreja devem ser infalíveis ao nos dizer o que foi revelado por Deus porque, do contrário, não teríamos nenhuma certeza sobre o que Deus revelou e que devemos crer e sobre o que Deus condenou e que devemos condenar, assim, analogicamente – não é a mesma coisa, mas o raciocínio é o mesmo –, nós, para sabermos com certeza a quem devemos render culto e a quem não, é necessário que a Igreja e o Papa possam nos dizer infalivelmente quem é santo e quem não é.

C. Devoção aos santos e canonização na História

Bem, como eu dizia antes de fazer essa enorme digressão, a fé no culto que se deve prestar aos santos sempre esteve presente desde o início do catolicismo, mesmo se, em maneiras diferentes, a Igreja propôs à nossa veneração o culto de determinados santos.

Nos primeiros séculos, era muito difundido o culto dos mártires, que derramaram seu sangue pela Fé; depois se desenvolveu o culto pelos confessores, que sofreram o cárcere e as perseguições por Cristo, embora não morrendo por Ele; em seguida vieram aqueles que consagraram toda sua vida à prática heroica da virtude.

No princípio, a canonização era declarada pelos bispos e também, naturalmente, pelo bispo de Roma, o Papa, que nesse caso tinha uma importância particularíssima. Aos poucos, a canonização papal, que valia para toda a Igreja e, portanto, era a única garantida pela infalibilidade, tornou-se a verdadeiramente decisiva – e isso desde a Alta Idade Média – até que, para abreviar, com Papa Sisto V, em 1588, surgiu a canonização como nós a conhecemos hoje.

D. Ensinamentos sobre a canonização

Todavia, a infalibilidade papal na canonização dos santos já era defendida muito antes de Sisto V, já que a encontramos, por exemplo, não apenas vivida na vida cotidiana dos fiéis, mas também defendida e sustentada por São Tomás de Aquino, que é o doutor universal da Igreja e que a mesma nos propõe como doutor comum, portanto, que podemos seguir com tranquilidade.

1. São Tomás de Aquino, doutor comum.

São Tomás dedicou ao tema uma questão de quodlibet, onde se pergunta se aqueles que foram canonizados pelo papa são real e certamente santos ou se podem ser, eventualmente, danados, e dá os argumentos para explicar como a Igreja e o Papa não podem errar nessa matéria.

2. Bento XIV

Sobre o tema, temos duas grandes autoridades: a de São Tomás, que é a autoridade geral em todas as questões de teologia, e a autoridade em particular sobre a questão da canonização dos santos, que é a de Bento XIV, já mencionado anteriormente. É verdade que esse papa escreveu seu livro, que é uma “bíblia” para quem se ocupa da canonização dos santos, quando não era ainda papa, logo não podemos falar do magistério oficial do papa; mas, ao mesmo tempo, também é verdade que a Cúria Romana e os próprios papas, em todas as matérias concernentes ao culto dos santos, sempre consideraram o livro de Bento XIV, De Servorum Dei Beatificatione et Beatorum Canonizatione, como autoridade incontestável. Pio XII mesmo, num memorável discurso, recordou ainda uma vez a autoridade absoluta de que desfruta essa obra de Bento XIV na Igreja.

Bem, e o que sustenta Bento XIV nessa obra que, segundo o próprio Monsenhor Gherardini, era “uma posição definitivamente adquirida que não passaria pela cabeça de ninguém discutir outra vez”?

No capítulo 43 de sua obra, Bento XIV sustenta e defende, com os argumentos que citarei, a infalibilidade do papa na canonização de um beato.

No capítulo 44, se coloca algumas objeções e as responde.

Finalmente, no capítulo 45 se pergunta se é uma verdade de Fé que o papa seja infalível nas canonizações e se é uma verdade de Fé que o canonizado seja realmente santo. Ora, a conclusão a que o papa chega no capítulo 43 é de que as canonizações são infalíveis e, para endossar essa doutrina, no capítulo 45 ele defende que trata-se de uma verdade de Fé.

Diante, porém, do fato de outros doutores que também estavam convencidos da infalibilidade papal sobre o tema argumentarem que não se trate de uma verdade de Fé, mas de uma doutrina infalível da Igreja – o que parece a mesma coisa, embora não seja –, eis que Bento XIV chega a esta conclusão:

“essas pessoas que colocam em dúvida a infalibilidade da canonização dos santos, aquele que o nega, se não é herege, é, todavia, ao menos temerário, portador de escândalo para toda a Igreja, injurioso para com os santos, favorecedor dos hereges que negam a autoridade da Igreja na canonização dos santos, pessoa próxima à heresia enquanto abre o caminho para os infiéis rirem dos que creem, partidário de uma proposição errada e sujeito a gravíssimas penas”.

Tudo isso é referido a quem ousasse afirmar que o papa errou nesta ou naquela canonização ou que o papa não é infalível na canonização dos santos. No mínimo, se não herege. Monsenhor Gherardini cita esse texto. Era absolutamente cônscio. Não obstante, coloca em dúvida a infalibilidade do papa na canonização dos santos.

a. Argumentos de Bento XIV

Quais são os argumentos que Bento XIV dá em favor da infalibilidade papal na canonização dos santos? São quatro.

i. A Igreja não poderia ser induzida ao erro em questão moral pelo Sumo Pontífice

O primeiro: não pode ser que a Igreja Universal seja induzida a erro pelo Sumo Pontífice nas coisas que envolvem a moral, e isso aconteceria ou poderia acontecer se pudesse errar nas canonizações, pois se trata de um juízo público sobre a santidade e glória de um homem defunto. E reevoca, com isso, São Tomás, o qual diz que na Igreja não pode haver erro condenável (é importantíssimo isso).

Ora, seria erro condenável se se venerasse como santo um pecador, o que poderia induzir os fieis a erro. Portanto, a Igreja não pode errar em tais casos.

teólogo tomista Melchior Cano diz: “É muito importante e costume comum de toda a Igreja saber quem deve ser venerado com virtude de religião. Se a Igreja errasse nisso, erraria gravemente em matéria moral. Não é diferente prestar culto ao diabo ou a um danado. A Igreja erraria torpemente em matéria de moral se legiferasse de prestar culto a um santo que, se não fosse santo, seria contra a razão do Evangelho venerar. Os cânones dizem: ‘se alguém diz ser justo o injusto e injusto o justo, é abominável aos olhos de Deus’. Similarmente, quem diz ser santo quem não o é e não santo o santo é abominável aos olhos de Deus. Eis o primeiro argumento.

ii. O papa goza da inspiração do Espírito Santo para as canonizações

O segundo: a inspiração do Espírito Santo. Alguém objeta – Monsenhor Gherardini o faz, me parece, e São Tomás o faz a si mesmo – que ninguém pode estar certo do estado de uma alma, nem mesmo da própria (se se é ou não em graça de Deus). E mais, quem julga servindo-se de um meio falível, como é o testemunho humano, não pode alcançar mais do que uma conclusão falível, pode errar.

Assim, para a canonização dos santos interrogam-se testemunhas humanas, todas falíveis; é qualquer coisa de contingente, portanto pode-se chegar a uma conclusão errada. Não é possível atribuir infalibilidade ao testemunho dos homens, mesmo sendo testemunhos históricos da parte de testemunhas oculares. Alguma possibilidade de erro sempre existe.

São Tomás responde essa dificuldade: “antes de tudo, o papa não apenas baseia seu juízo em pesquisas acuradas, mas goza nessa matéria da inspiração do Espírito Santo e a Providência preserva a Igreja de ser enganada por tais testemunhos”.

Portanto, humanamente falando, um juízo histórico sobre alguém pode ser quase certamente verdadeiro, mas alguma dúvida pode restar sempre.

Mas a Igreja não é uma sociedade puramente humana; é assistida por Deus em matéria de Fé e de moral, como somos nesse campo, pois a canonização dos santos diz respeito à Fé e à Moral.

iii. O culto de um santo é como uma profissão de Fé

Terceiro argumento: o culto de um santo é como uma profissão de Fé, logo o juízo do Papa, que lhe ordena o culto, deve ser infalível. São Tomás diz “porque a honra que damos aos santos é uma certa profissão de Fé com a qual damos glória aos santos, também nisso o juízo da Igreja não pode errar”.

iv. Se pudesse errar, o papa já teria errado em tantas canonizações

O quarto argumento, a posteriori, é: se pudesse errar, o papa já teria errado em tantas canonizações. Ora, o papa jamais errou – pelo menos até o concílio (e, para mim, até depois, já que esses aí não são papas), – enquanto que os bispos ou o próprio martirológio já erraram. Portanto, trata-se de uma verdade de Fé, ou, de qualquer forma, certamente e indiscutivelmente de uma verdade infalível.

3. Outra referência

Gostaria também de apresentar o parecer de um autor de um manual que era estudado por todo os seminaristas e pelo clero católico nos tempos, digamos, de ordem na Igreja.

a. Objetos primário e secundário da infalibilidade

Bem, a infalibilidade do papa na canonização dos santos faz parte do objeto secundário da infalibilidade. O primário são as verdades explícita e formalmente reveladas por Deus; o secundário são as verdades ligadas necessariamente à Revelação. Ou seja, a Igreja tem a missão de guardar integralmente aquilo que Deus revelou, sem acrescentar ou tirar nada, e de condenar tudo o que lhe é contrário, mas não pode, concreta e eficazmente, realizar esse papel – que lhe foi dado por Deus e que é a razão de sua existência – se não for infalível também nesse objeto secundário, isto é, em todas as coisas tão estreitamente ligadas ao dado revelado que, se não posso pronunciar-me infalivelmente a respeito, tampouco poderei defender e transmitir com eficácia a Revelação de Deus.

Esse objeto inclui as conclusões teológicas, os fatos dogmáticos, os decretos disciplinares e, no caso, as canonizações e as aprovações definitivas das ordens religiosas. Essa tese é ao menos teologicamente certa, uma vez que foi proposta pelo Concílio Vaticano I e estava próxima à definição, pois já estavam preparados o cânone e a excomunhão para quem negasse essa doutrina; sua proclamação não aconteceu apenas por causa dos bersaglieri que interromperam o Concílio.

b. aquilo que é requerido como exigência pela finalidade do Magistério infalível e que a Igreja infalivelmente reivindica, a Igreja possui.

O argumento geral é: aquilo que é requerido como exigência pela finalidade do Magistério infalível e que a Igreja infalivelmente reivindica, a Igreja possui. Ora, a finalidade do Magistério infalível exige e a Igreja infalível reivindica a infalibilidade para as verdades ligadas à Revelação. Logo, a Igreja é infalível também nessas verdades.

E isso, em particular, nas canonizações. A finalidade do Magistério exige a dita infalibilidade, exige as coisas necessárias para dirigir os fiéis sem erro à salvação mediante um culto reto e mediante a imitação dos exemplos de virtude cristã. Ora, para tal escopo é necessária a infalibilidade nas canonizações.

  • A premissa maior se funda no poder de santificação da Igreja.
  • A menor: a Igreja não apenas tolera, mas recomenda e ordena a todos os fiéis prestar culto aos canonizados, propondo-os como modelos a imitar, e a Igreja reivindica tal infalibilidade, antes de tudo, porque define com solene juízo, e muitas vezes fala até mesmo de juízo infalível, como fizeram Pio XI e Pio XII.

E aqui temos muitas citações de proclamações de santos feitas por esses dois papas, nas quais é dito explicitamente que seu juízo é infalível:

Infallibilem Nos, uti catholicæ Ecclesiæ supremus Magister sententiam in hæc verba protulimus ; Nos ex Cathedra divini Petri uti supremus universalis Christi Ecclesiæ Magister infallibilem hisce verbis sententiam solemniter pronuntiavimus.

(Nós emitimos este juízo infalível enquanto Mestre supremo da Igreja Católica; Nós, desde a cátedra de São Pedro, enquanto supremo e universal Mestre da Igreja de Cristo, pronunciamos solenemente, com estas palavras, o nosso juízo infalível.)

Pio XI

Nos universalis catholicæ Ecclesiæ Magister ec Cathedra una super Petrum Domini voce fundata falli nesciam hanc sententiam solemniter hisce pronuntiavimus verbis.

(Nós, enquanto Mestre supremo da Igreja Católica, fundada sobre a cátedra de Pedro, pronunciamos solenemente este juízo que não conhece erro.)

Pio XII

Afirmam, portanto, a prerrogativa da infalibilidade, e não é possível que os papas se atribuam aquilo que não têm, pois, do contrário, enganariam toda a Igreja.

E. Argumentos Contrários dos ‘Tradicionalistas’

Mas, na verdade, a Fraternidade São Pio X diz: “nenhum problema para as canonizações antigas; o problema nasce com as canonizações modernas”.

Porém, os motivos dados para colocar em dúvida o processo de canonização recente comparado ao antigo são absolutamente frágeis.

1. FSSPX

a. Novo processo

Pretende-se que as canonizações poderiam ser postas em dúvida pela insuficiência do processo: o procedimento foi definhado, os milagres são ainda requeridos, mas não como antes…

Mas está na autoridade e no poder do papa decidir o procedimento utilizado. Na Idade Média, por exemplo, o procedimento utilizado depois não existia, nem por isso alguém colocou em dúvida a canonização de um Domingos ou de um Francisco. Aliás, houve quem o fez: o herege John Wyclif, condenado pelo Concílio de Constança por dizer que São Bento e outros santos estariam no inferno se tivessem mantido certas doutrinas que ele, Wyclif, rejeitava. E foi condenado pelo Concílio, dentre outras heresias, também por isso; porque afirmou que santos canonizados pela Igreja – embora não, certamente, com o procedimento da Contrarreforma – poderiam não ser santos ou até mesmo danados.

b. Canonização colegiada

A Fraternidade também coloca dúvidas sobre a colegialidade, porque, atualmente, as canonizações são feitas como ato colegial. Mas é sempre o papa em pessoa que pronuncia a canonização. Se chama junto a si os bispos de todo o mundo, como é feito nos concílios, não faz mais que reforçar – como se fosse necessário – essas canonizações.

c. Os santos modernos tem virtudes modernas falsas.

E, finalmente, objeta-se que as virtudes heróicas de que se declara ser dotado o santo são virtudes modernas, ou seja, que esses santos seriam santos de uma doutrina moderna. Isso é absolutamente verdadeiro. Mas o problema é que, se o papa é mesmo infalível, é infalível também ao dizer que essas virtudes modernas são verdadeiras.

d. Eles não tem intenção de declarar nada infalivelmente

O problema seria então, com efeito, este outro: dizem “mas [os papa pós-conciliares] não querem, na realidade, definir infalivelmente”. Que esses tradicionalistas creiam na infalibilidade do papa, podemos pôr em dúvida, mas que a fórmula utilizada, por exemplo, em 14 de outubro seja uma fórmula definidora, não há como duvidar, pois as diferenças são mínimas em comparação com as fórmulas usadas anteriormente.

Assim disse Bergoglio – em latim – na Praça de São Pedro:

“Para a honra da Santíssima Trindade, pela exaltação da Fé Católica, com a autoridade da Fé católica e pelo incremento da vida cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos apóstolos Pedro e Paulo e nossa, depois de termos longamente refletido, invocado muitas vezes a ajuda divina e escutado o parecer de muitos dos nossos irmãos no episcopado, declaramos e DEFINIMOS santos os beatos…”

e o primeiro da lista é Paulo VI.

“E os escrevemos no álbum dos santos, estabelecendo que, em toda a Igreja, sejam honrados entre os santos. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

Ora, o termo DEFINIMOS é próprio das definições. Definimus. E a definição é um ato irrevogável, irreformável e infalível, razão pela qual não se vê, se Bergoglio é verdadeiro, legítimo e canônico papa, como se possa duvidar da canonização de Paulo VI.

Suponhamos que os opositores da Infalibilidade tenham alguma razão.

Quero, porém, fazer o papel de advogado do diabo e, por um instante, pensar que, contrariamente a tudo o que eu disse, que disse São Tomás, que disse Bento XIV, que disse Pio XI, que disse Pio XII, que disseram todos os teólogos em concordância até o Concílio, etc., etc., etc., sem incorrer nas censuras de Bento XIV (isto é, de ser meio herege, que cheiro a heresia, que favoreço os hereges), por um instante quero pensar que seja possível dizer que o papa não é infalível na canonização dos santos.

2. De Mattei

O professor Roberto de Mattei, como todos os tradicionalistas que se opõem às canonizações feitas recentemente, deduz desse fato consequências que não são deduzíveis. Suponhamos que o papa não seja infalível nessa matéria, ou que, mesmo sendo, não se trata de uma verdade de Fé.

a. As canonizações não são dogmas de fé, logo posso ignorar

Diz o professor de Mattei:

“Qual crédito devemos dar a essas canonizações? Mesmo se a maior parte dos teólogos considerem que as canonizações sejam atos infalíveis da Igreja, não nos encontramos diante de um dogma de Fé […] Não sendo a canonização um dogma de Fé, não existe para os católicos uma positiva obrigação de dar-lhe assentimento”.

Ou seja, não há obrigação de dar nosso assentimento à canonização de Paulo VI; dizer “sim, eu obedeço e creio que Paulo VI é realmente santo”.

De Mattei e também todos os tradicionalistas, lefebvrianos ou não, que não são como nós [sedevacantistas], sujos, feios e maus, dizem que podemos negar nosso assentimento à canonização de Paulo VI.

E continua: “podemos, portanto, em consciência, manter todas as nossas reservas sobre essas canonizações”.

Ora, essas palavras, entendidas ao pé da letra, são diretamente contrárias ao ensinamento da Igreja. Por exemplo, o cânone 1324 e também a carta de Pio IX Tuas Libenter contra o herege Döllinger, que criou o cisma dos velhos católicos negando a infalibilidade papal no Vaticano I.

Em 21 de dezembro de 1863, ao bispo de Munique e Frisinga, escreveu Pio IX:

…estamos intimamente convencidos de que a obediência a que estão sujeitos os mestres e escritores católicos [como é o caso de de Mattei] não se refere apenas àquelas verdades que são propostas a todos os fieis pelo infalível Magistério da Igreja como dogmas de Fé.

E, portanto, estamos também intimamente convencidos de que estes [mestre e escritores] não quiseram declarar que a perfeita adesão às verdades reveladas, por eles reconhecida como absolutamente necessária para o verdadeiro progresso das ciências e para a refutação dos erros, é possível se se presta fé e obediência apenas aos dogmas expressamente definidos pela Igreja.

Com efeito, mesmo se se tratasse da obediência que concretamente se deve à Fé divina, essa obediência não se deveria limitar às verdades expressamente definidas pelos decretos dos concílios ecumênicos ou dos pontífices romanos e desta Sé Apostólica, mas deve estender-se também às verdades que, pelo magistério ordinário da Igreja, difusa em todo o mundo, são transmitidas como divinamente reveladas e, por isso mesmo, são consideradas matéria de Fé pelo comum e universal consenso dos teólogos católicos.

E completa:

Mas porque se trata da obediência a qual, em consciência, são submetidos todos os católicos que se dedicam às ciências especulativas para dar, com seus escritos, novas contribuições à Igreja, exatamente por isso os participantes do Convênio devem admitir que para os estudiosos católicos não é suficiente que acolham com veneração os dogmas da Igreja, mas é também necessário que adiram seja às decisões que, em matéria doutrinal, são tomadas pelas congregações pontifícias, seja àqueles pontos de doutrina que, do consenso comum dos católicos, são considerados verdades teológicas e conclusões certas, ao ponto que as opiniões contrastantes, ainda que não possam ser chamadas heréticas, são, porém, teologicamente censuráveis.

Portanto, não basta dizer:

  • “não é um dogma de fé (talvez!),
  • logo, se o nego não sou um herege (talvez!),
  • logo posso não levar em conta
  • e, em consciência, não aceitar uma canonização feita pelo papa”,

pois:

  • a canonização é infalível
  • e, mesmo se não o fosse,
  • é pelo menos teologicamente certa.

Assim, nenhum católico pode se dar o direito de não acolhê-la dizendo que não é infalível.

Além do mais, o bom senso nos faz entender que, se a Igreja, repito, pudesse ensinar, por exemplo, que Paulo VI – que, como veremos, praticou o ecumenismo – é santo, do fato que o católico deve imitar os santos se deduziria que os fiéis deveriam imitar o ecumenismo. Não? Paulo VI é santo e reformou a liturgia da missa, logo a reforma da missa é obra de um santo que eu devo aprovar, etc., etc.

Nós dizemos “não é possível, não é verdade”; então não podemos admitir que a Igreja nos induza a erro, pois foi isso o que fez a Igreja. Pode a Igreja induzir-nos ao erro? Absolutamente não. Portanto, se ainda acreditamos na Igreja, não podemos acreditar que nos induza a erro, canonizando um santo que, na verdade, santo não é.

3. Gherardini

a. Já canonizaram até pessoas que nem existem

Mas Monsenhor Gherardini argumenta: “canonizaram santos que jamais existiram ou que não são santos”. Não nos diz, porém, de quem se trata. Parece ser uma alusão a São Nepomuceno. Nem tudo o que se diz numa bula de canonização é verdade de Fé; é possível que se relatem dados sobre a vida de um santo que depois se revelem inexatos. Mas o fato é que São Nepomuceno existiu; se não morreu naquele ano, morreu em outro. Enfim, existiu e a Igreja o declarou santo.

Mesmo se admitíssemos (o que não fazemos) que a Igreja tenha se enganado declarando santo alguém que não existe ou alguém que não é santo, o problema é mais grave.

Monsenhor Gherardini diz: “a Igreja pode ter canonizado um santo que não é santo ou um santo que não existe e não acontece nada”. Porém, acontece.

F. Mesmo que estivessem certos isso não resolve o problema atual.

[HIPÓTESE ESTRANHA, OFENSIVA AOS OUVIDOS PIOS (talvez?) ]

Uma coisa é canonizar um santo que não existe – o que descarto, mas admito aqui como mera hipótese – ou um santo que não é santo, digamos, uma boa pessoa, mas que não tinha as virtudes heroicas. Mas o que dizer se eu canonizo uma pessoa que na doutrina, na Fé, no ensinamento e na moral favorece a impiedade? É possível isso? Não.

Uma coisa é canonizar um santo que não existe, mas que me dizem que fez milagres, que ensinou a caridade e a pobreza evangélica; está bem, então eu sou impelido a seguir a pobreza, a caridade e a Fé. Ou alguém que não é santo, mas que não fez nada de particularmente mal, que permaneceu com a integérrima Fé católica, que fazia algumas coisas boas, mas não tão grandes para merecer a santidade.

Ao venerá-lo erro, presto culto a uma pessoa a quem não é devido (já me parece demasiado grave admitir essa possibilidade), rezo para alguém que não é particularmente amigo de Deus, o que é menos útil, de fato, mas não é tão grave; posso, por exemplo, rezar às almas do purgatório, que não são santas no sentido mais restrito. Em suma, a Fé e a Moral da Igreja não caem por causa disso.

[AFIRMAÇÃO CONTRÁRIA À FÉ, CONTRÁRIA À INDEFECTIBILIDADE]

Mas e se eu, por exemplo, canonizasse Martinho Lutero? Já quase o fizeram. Giulio Andreotti disse “chegará o dia em que canonizarão Buonaiuti (o maior exponente do Modernismo)”.

Como essas canonizações poderiam não induzir os fieis ao erro em matéria de moral? Por exemplo, Buonaiuti abandonou o sacerdócio? Posso fazê-lo também eu? Evidentemente, não. Ah, mas estou imitando um santo! Ou então, em matéria de Fé: Buonaiuti negava a divindade de Cristo, logo posso negá-la também? Evidentemente, não.

Portanto, é muito mais grave canonizar alguém que é um exemplo para evitar do que canonizar um santo que não existe ou alguém que não é santo.

Entendem a diferença?

Eu excluo que a Igreja tenha canonizado alguém que não é santo ou alguém que não existe; infalivelmente, creio que não é possível.

Mas admitamo-lo. Admitamos também que a Igreja não canonizou infalivelmente ninguém, nem mesmo São Domingos, nem mesmo Francisco, etc., etc..

Mas, ao menos admitamos que a Igreja não pode ensinar o erro dando um ímpio como modelo para os fiéis ou fazendo-o venerar nos altares.

Isso é inadmissível pela santidade mesma da Igreja, pela verdade da Igreja.

G. Qual a real pedra no sapato?

E é o problema diante do qual nos encontramos. Todos esses bravos católicos, como Monsenhor Gherardini, professor de Mattei, sacerdotes da Fraternidade São Pio X, etc., por que se agitam tanto? Não porque canonizaram um santo do qual se sabe pouco da vida histórica, se existiu ou não – quem sabe se São Jorge existiu(?), se o dragão existia ou não(?)

(Que fique claro: eu creio que São Jorge é santo)

Também não se agitam porque fizeram santo, sei lá, um operário chamado Núncio Sulprízio, de quem nunca ouvi falar. Mas eu não me agito, nem aqueles da Fraternidade. Deve ser santo de verdade, como vou saber? Se é santo mesmo, paciência, rezemos para ele, não faz mal.

O problema, por exemplo, é um Paulo VI. Aí, então, todos nos agitamos. Por quê? Porque não podemos imitar o exemplo que nos deu. Aliás, devemos fazer o contrário, como tentarei explicar na segunda conferência.

Eis o motivo de tantos começarem a duvidar da infalibilidade da Igreja nas canonizações. Esse é o problema: tantos tradicionalistas, para salvaguardar a legitimidade dos ocupantes da sede de Pedro, preferem negar a infalibilidade da Igreja e do Papa. Essa é a verdade.

Preferem dizer “posso pensar que São Francisco não está no céu, que era um impostor” em vez de dizer que o impostor, talvez, é quem ocupa a Sede de Pedro neste momento. Isso não. É isso que é grave.

H. O Dogma tradicionalista.

Pode-se colocar o ensinamento da Igreja em discussão, mas a legitimidade desses todos que propagam o modernismo, não.

Esse é o único ponto infalível que não pode ser tocado. Montini, Luciani, Wojtyla, Ratzinger e Bergoglio são papas. Isso é infalivelmente certo.

Que São Francesco é santo talvez seja duvidoso. Mas que esses são papas é absolutamente certo.

É o dogma do tradicionalismo lefebvriano que deixa à margem aqueles feios, sujos e maus, que somos nós, evidentemente.

E, porque aceitam esse dogma, agora têm as portas abertas nas igrejas, nas paróquias, nas catedrais, etc., enquanto que a nós perguntam “Mas… vocês são sedevacantistas? – Sim! – Ah, então, não. Xô!”. Por quê? Porque negamos o único dogma que não se pode negar hoje: a legitimidade dos modernistas que estão devastando a Igreja.

Exposição Escolástica do Sedevacantismo

É tempo de sintetizar alguns argumentos que colhi ao longo de meus estudos em torno da questão do sedevacantismo. Enquanto minha conclusão continua a mesma de cinco anos atrás, na medida que fui explicando o tema, respondendo a objeções e ampliando minhas leituras, passei a ver as coisas com mais clareza do que antes e novas evidências surgiram para corroborar com o que eu já havia descoberto.

Então, penso ser muito oportuno coligir os principais argumentos à maneira escolástica, prová-los brevemente e remeter a estudos mais detalhados. Assim, os principais trabalhos já escritos sobre esse assunto serão reaproveitados e reforçados pelo fato de ora fazerem parte de um todo orgânico que conduz à mesma conclusão: a religião do Vaticano II não é a religião católica.

Dedico este trabalho a Monsenhor Daniel Dolan, Padre Anthony Cekada, Padre Rodrigo da Silva, a meus pais, Silvio e Adriana, e, na pessoa deles, a todos os meus benfeitores, sem os quais o presente estudo teria sido impossível.

4 de agosto de 2020,
Festa de São Domingos de Gusmão,
Fundador da Ordem dos Pregadores.

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EXPOSIÇÃO ESCOLÁSTICA DO SEDEVACANTISMO

Por Irmão Diogo Rafael Moreira

Definição Nominal e Real. Em sentido estrito e nominal, sedevacantismo é a junção de duas palavras latinas: sedes, sedis (Sé, cátedra) e vacans, tis (que está vaga, não sendo ocupada por alguém) e significa a posição dos católicos que acreditam que a Santa Sé está vacante, isto é, sem um Papa verdadeiro e legítimo pelo menos desde 1965, data do encerramento do Concílio Vaticano II. Contudo, em sentido mais amplo e real, o sedevacantismo é a percepção e reconhecimento da natureza não católica da religião do Vaticano II.

Essa definição real tem a vantagem de assinalar para o que os sedevacantistas em geral tem insistido nas últimas três décadas: o problema não é simplesmente a Sé vacante em Roma, mas toda a apostasia decorrente dela, isto é, a nova religião inaugurada pelo Concílio Vaticano II, com sua nova doutrina, lei e culto do homem. É esse fato assaz evidente que torna a posição sedevacantista uma conclusão incontornável e não uma mera questão de opinião. Como se verá, não é difícil provar que a religião do Vaticano II é tudo o que a Igreja Católica não pode ser, enquanto carece de todas as qualidades próprias ao catolicismo.

Além disso, tal definição tem o mérito de distinguir o sedevacantismo das soluções rivais: tanto do neoconservadorismo, que falha em perceber a religião do Vaticano II como não católica (negação do fato constatado pelo sedevacantismo); quanto do tradicionalismo, que, na teoria ou na prática, percebe a religião do Vaticano II como não católica, mas, em vez de reconhecê-la como tal, ainda assim a trata como se fosse católica (uma estranha negação da consequência lógica do fato constatado pelo sedevacantismo).

ESTUDOS COMPLEMENTARES

COOMARASWAMY, Rama P. O Sedevacantismo: contra “Padre” Gruner e Christopher Ferrara.

MATATICS, Gerry. Sedevacantismo: a palavra e a coisa [tradução parcial de Is Gerry Matatics a ”sedevacantist”?].

ROMAN CATHOLIC MEDIA. Sedevacantismo em três minutos.

SANBORN, Monsenhor Donald J. Opinionismo: A questão papal seria apenas matéria de opinião?

____. A solução sedevacantista e suas rivais [tradução parcial de Resistance and Indefectibility].

Divisão. Esta exposição se constitui de cinco argumentos, divididos em afirmativos e negativos.

Os três primeiros são afirmativos e se chamam respectivamente argumento histórico ou genérico, eclesiológico ou específico e escatológico ou diferencial, os quais se ocupam de descrever o que a religião do Vaticano II é do ponto de vista do seu gênero ou com relação ao passado (parte de um processo revolucionário), do ponto de vista de sua espécie ou com relação ao seu presente estado (uma seita herética) e do ponto de vista de sua diferença específica ou com relação ao “futuro”, isto é, à luz da profecia católica (apostasia da religião revelada).

Os dois últimos são argumentos negativos e consistem respectivamente no argumento caracterológico e gnosiológico, os quais simplesmente explicam que a religião do Vaticano II não é a Igreja Católica, seja do ponto de vista de suas propriedades internas ou dotes (indefectibilidade, infalibilidade e autoridade), seja do ponto de vista de suas propriedades externas ou notas (unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade).

Portanto, os argumentos afirmativos ou da primeira divisão demonstram a seguinte tese: a religião do Vaticano II é a seita herética resultante de séculos de revolução anticatólica, distinta das demais defecções por ser o resultado de uma apostasia geral da religião revelada. Já os argumentos negativos ou da segunda divisão demonstram a seguinte tese: a religião do Vaticano II não é a Igreja Católica, pois carece de suas sete propriedades ou qualidades essenciais, a saber, de indefectibilidade, infalibilidade, autoridade, unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade.

Eis uma breve sinopse dos argumentos: 

I. ARGUMENTOS AFIRMATIVOS

1.º Argumento Histórico ou Genérico
– A religião do Vaticano II faz parte da revolução anticatólica:
a) Segundo seus promotores oficiais;
b) Segundo seus princípios;
c) Segundo o programa revolucionário.

2.º Argumento Eclesiológico ou Específico
– É uma seita herética:
a) Por suas falsas doutrinas;
b) Por seu novo conceito de Igreja;
c) Pelos seus maus frutos.

3.º Argumento Escatológico ou Diferencial
– É a apostasia geral da religião revelada:
a) Por ser uma defecção em massa da verdadeira fé;
b) Por ser uma paródia do catolicismo;
c) Pelas circunstâncias que a acompanham.

II. ARGUMENTOS NEGATIVOS

4.º Argumento Caracterológico (dos Dotes)
– A religião do Vaticano II carece dos três dotes ou propriedades internas da Igreja:
a) Não é indefectível em sua constituição.
b) Não é infalível no ensino da fé e da moral católica.
c) Não tem autoridade no governo dos fiéis.

5.º Argumento Gnosiológico (das Notas)
– Carece das quatro notas ou propriedades externas da Igreja:
a) Não é una em sua constituição.
b) Não é santa por sua eficácia intensiva ou interna.
c) Não é católica por sua eficácia extensiva ou externa.
d) Não é apostólica em sua origem.

I. ARGUMENTOS AFIRMATIVOS

Qui non est mecum contra me est et qui non congregat mecum spargit.
Quem não está comigo, está contra Mim; quem não ajunta comigo, dispersa.

(Mt 12, 30).

Militans Ecclesia est coetus eorum fidelium, qui adhuc in terris vivunt: quae ideo militans vocatur, quod illis cum immanissimis hostibus, mundo, carne, satana, perpetuum sit bellum.
A Igreja militante é o conjunto de todos os fiéis que ainda vivem na terra: que chama-se militante, pois move uma guerra sem tréguas aos mais assanhados inimigos: o mundo, a carne e o demônio.

(Catechismus Romanus, Pars 1, c. 10, n. 5).

Os argumentos afirmativos demonstram que a religião do Vaticano II não está com Cristo, mas contra Cristo e que esta não pode ser reconhecida como parte da Igreja Militante, porque, enquanto a última está em guerra sem tréguas contra o mundo, a carne e o demônio, a primeira está a serviço do mundo (com a revolução), da carne (com as seitas heréticas) e do demônio (com a apostasia geral).

A. Argumento Histórico ou Genérico

Este argumento mostra como a religião do Vaticano II é uma etapa bastante avançada da revolução anticatólica, fruto da conspiração do mundo judeo-pagão contra a Igreja de Deus. Ele enuncia-se assim:

O processo revolucionário não é católico.
A religião do Vaticano II faz parte deste processo revolucionário.
Logo, a religião do Vaticano II não é católica.

Prova-se a maior, o processo revolucionário não é católico, pelo seguinte:

1.ª Prova. Revolução significa substituição da ordem antiga por uma nova. Em nossa civilização, a ordem antiga era católica, pode-se dizer até distintamente católica, pois era esse elemento que convertia os diferentes povos do Ocidente em irmãos e partes de uma mesma civilização. Logo, o movimento revolucionário é de caráter distintamente anticatólico, e é aí que todas as convulsões políticas e religiosas acham o seu ponto de convergência. 

2.ª Prova. Isso se verifica também pela marcha da revolução ser sempre no sentido de divorciar a civilização do catolicismo: a Renascença pôs modelos pagãos no lugar de modelos cristãos; o protestantismo trocou a autoridade da Igreja pelo juízo privado do indivíduo; o racionalismo advogou a independência da razão das verdades da fé católica; o liberalismo separou a Igreja do Estado e, por conseguinte, da educação do povo. Tudo o que os revolucionários chamam “progresso” consiste em substituir alguma coisa genuinamente católica por outra não católica. 

3.ª Prova. Ademais, o mesmo se infere pelas consequências da revolução: o efeito cumulativo de séculos de revolução foi a vulgarização do antropocentrismo ou naturalismo, uma visão de mundo diametralmente oposta ao teocentrismo ou sobrenaturalismo católico.

Prova-se a premissa menor, a religião do Vaticano II faz parte deste processo revolucionário, pelo seguinte: 

1.ª Prova. Esse fato foi reconhecido pelos seus promotores oficiais. Cardeal Suenens chamou o Vaticano II de “1879 dentro da Igreja” (alusão à Revolução Liberal em França, que mediante força e fraude separou a religião católica do Estado francês), Cardeal Ratzinger chamou seus documentos mais característicos de “o anti-Syllabus” (assim fazendo deste a antítese daquele documento, composto sob o Pontificado de Pio IX, que condenava justamente os erros do liberalismo). 

2.ª Prova. Além disso, esse juízo se verifica pelo fato da religião do Vaticano II possuir as mesmas notas características da Revolução Liberal: liberdade, igualdade e fraternidade. De fato, ela ensina essencialmente isto: 

a) Liberdade moral (direito) de culto e proselitismo das seitas no âmbito civil (Declaração Dignitatis Humanae Personae), tese condenada na Bula Quanta Cura do Papa Pio IX. 

b) Igualdade, promovida entre as denominações cristãs pelo falso ecumenismo (Decreto Unitatis Redintegratio), condenada na Encíclica Mortalium Animos do Papa Pio XI.

c) Fraternidade, pela “sincera admiração” das falsas religiões do mundo, inclusive o paganismo idólatra e o judaísmo deicida, e seu compromisso de promovê-las (na Declaração Nostra Aetate), condenada na Encíclica Pascendi do Papa São Pio X como um corolário do sistema modernista.

Portanto, essas heresias principais do Vaticano II são uma síntese dos princípios da revolução e colocam-no como a versão religiosa da revolução civil ou social ocorrida em França e outros países católicos: uma espécie dentro do mesmo gênero revolucionário.

3.ª Prova. Por fim, uma tal “revolução de tiara e casula”, “com as bandeiras das chaves apostólicas”, estava nos planos da Maçonaria, órgão diretor da revolução, o que demonstra o quanto o Vaticano II e sua nova religião estão dentro do esquema revolucionário.

Logo, a religião do Vaticano II não é católica.

ESTUDOS COMPLEMENTARES

CAMPBELL, Padre Louis. A revolução dentro da Igreja.

DELASSUS, Monsenhor Henri. A Conjuração Anticristã: O Templo Maçônico que quer se erguer sobre as ruínas da Igreja Católica. [Tomo 1 | Tomo 2 | Tomo 3]. [sem local]: [sem editora]: 1910.

DILLON D.D., Monsenhor George F. The war of Antichrist with the Church and Christian Civilization. Dublin: M. H. Gil & Son, 1885.

GAUME, Monsenhor Joseph. O Verme Roedor das Sociedades MOdernas ou O Paganismo na Educação. 3 ed. Porto: Cruz Coutinho, 1886.

HUGHES, Padre. What does Vatican II Really Teach?

SANBORN, Monsenhor Donald J. As heresias do Concílio Vaticano II.

PINAY, Maurice. El complot contra la Iglesia. [Tomo 1 | Tomo 2]. 2 vols. [S.l.]: Ediciones de la Libertad, [s.d.].

PIVARUNAS, Monsenhor Mark Anthony. Os erros doutrinais do Concílio Vaticano II.

Argumento Eclesiológico ou Específico

Este argumento revela o que a religião do Vaticano II realmente é no âmbito religioso atual: uma seita herética, uma entidade não católica. Enuncia-se assim:

Seitas heréticas não são católicas.
A religião do Vaticano II é uma seita herética.
Logo, a religião do Vaticano II não é católica.

Prova-se a maior, seitas heréticas não são católicas, pelo seguinte:

1.ª Prova. Por seita herética entende-se o conjunto de cristãos batizados que simplesmente não professam a mesma fé cristã que os católicos sempre professaram. Ora, a própria definição clássica de Igreja o demonstra: Igreja é o conjunto de homens unidos pela profissão da mesma fé cristã e pela comunhão dos mesmos sacramentos, sob o governo dos legítimos pastores, principalmente do único vigário de Cristo na Terra, o Romano Pontífice. (São Roberto Belarmino, De Eccl., 3, 2, 9). Essa mesma definição aparece na Mystici Corporis Christi de Pio XII e, de maneira simplificada, em qualquer catecismo católico. Dessa definição estão necessariamente excluídos os batizados que não professam a fé católica, isto é, os hereges e suas seitas heréticas.

2.ª Prova. Historicamente, a Igreja “considerou como rebeldes declarados, e tem expulsado para longe de si todos aqueles que não pensavam como ela, fosse sobre que ponto fosse da sua doutrina”, pois sempre entendeu que “nada poderia ser mais perigoso do que esses hereges que, conservando em tudo o mais a integridade da doutrina, por uma só palavra, como que por uma gota de veneno, corrompem a pureza e a simplicidade da fé que recebemos da tradição dominical, e depois apostólica… Tal foi sempre o costume da Igreja, apoiada pelo juízo unânime dos santos Padres, os quais sempre consideraram como excluído da comunhão católica e fora da Igreja quem quer que se separe o menos que seja da doutrina ensinada pelo magistério autêntico.” (Leão XIII, Satis Cognitum). 

3.ª Prova. Os promotores oficiais da religião do Vaticano II admitem que esta concepção foi deliberadamente abandonada por eles para fazer das seitas heréticas, de algum modo, parte da Igreja Católica (Ratzinger, Kasper, Libânio etc.). Isso significa que “procurar-se-ia em vão por tais afirmações positivas sobre igrejas e comunidades não católicas em qualquer documento papal anterior ao Vaticano II.” (Sullivan, The meaning of subsistit in). Procurar-se-ia em vão, porque antes se ensinava que “qualquer seita separada deste corpo, pela profissão de uma fé diferente da dela, não faz parte da Igreja de Cristo, mas é, na melhor hipótese, uma invenção humana; e a fé que eles professam é falsidade e erro, que procede do pai das mentiras.” (Hay, The Sincere Christian).

Prova-se a menor, a religião do Vaticano II é uma seita herética, pelo seguinte:

1.ª Prova. Prova-se que é uma seita herética pelo que ficou dito na 2.ª Prova da menor do 1.º Argumento, a saber, a religião do Vaticano II professa doutrinas heréticas previamente condenadas pelo magistério autêntico, contrárias ao segundo e nono artigo do Credo: Creio em Jesus Cristo um só seu Filho, Nosso Senhor (pela negação do reinado de Nosso Senhor sobre os povos), e Creio na Santa Igreja Católica (pela negação da unidade e unicidade da Igreja de Cristo). Obviamente, os princípios modernistas por trás dessas doutrinas são contrários à lei natural, isto é, aos deveres do homem para com Deus ou, dito de outro modo, os direitos de Deus sobre os homens.

2.ª Prova. Prova-se também pelo que ficou dito na 3.ª Prova da maior deste argumento, isto é, os corifeus da religião do Vaticano II admitem professar uma nova doutrina sobre a Igreja (eclesiologia), na qual os hereges também, de algum modo, fazem parte da Igreja de Cristo. Embora herética, tal escolha não carece de coerência interna: não seria justo que uma religião herética recém-criada rejeitasse as suas irmãs mais velhas. 

3.ª Prova. Assim como a grandeza de um povo se manifesta pelas suas realizações militares, artísticas e científicas, a grandeza da verdadeira religião se manifesta pelas suas realizações missionárias, litúrgicas e teológicas. Ora, se tal pode dizer-se da verdadeira Igreja, o inverso se aplica à falsa: a vileza de uma religião se dá a conhecer pelos seus péssimos frutos. Separada da verdadeira fé, a seita herética não produz verdadeiras conversões, não apresenta um culto digno e não possui uma sã doutrina. Ora, a religião do Vaticano II é mundialmente conhecida e reconhecida como um desastre em todos esses pontos. Em vez de converter os pagãos e os hereges, saiu convertida por eles com a inculturação e o diálogo com o erro; além disso, especializou-se em destruir vocações e perder fiéis onde quer que esteja. Em vez de uma liturgia digna, ela produziu uma Missa Nova com elementos protestantes e modernistas. Em vez de obras teológicas ao menos comparáveis aos manuais escolásticos do passado, produziu obras prolixas e desinteressantes, imbuídas de um existencialismo ou materialismo tão cru, que faz ver de longe a nulidade intelectual de seus autores. Assim, se continua verdadeiro o antigo adágio escolástico, agere sequirtur esse (o agir segue o ser), e se “pelos frutos os conhecereis” (Mt 7, 16), não há a menor dúvida de que a religião do Vaticano II é uma seita herética.

Logo, a religião do Vaticano II não é católica.

ESTUDOS COMPLEMENTARES

CEKADA, Padre Anthony. A profissão de heresia modernista do Papa Pachamama.

____. Resisting the Pope, Sedevacantism and Frankenchurch.

____. Work of Human Hands: A Theological Critique of the Mass of Paul VI. West Chester: SGG, 2010.

CONTROVÉRSIA CATÓLICA. A Heresia e o Papa Herético.

____. Qual é a doutrina católica sobre o ecumenismo?

____. São Pedro Canísio condena o ecumenismo do Vaticano II.

LANE, John. Conference on the Pope Heretic Problem and the Vacancy of the Holy See.

NOVUS ORDO WATCH-CONTROVÉRSIA CATÓLICA. A Nova Eclesiologia do Vaticano II.

SANBORN, Monsenhor Donald J. Culpado, culpado, culpado!

3.º Argumento Escatológico ou Diferencial

Este argumento faz ver que a religião do Vaticano II é, à diferença de qualquer revolução ou seita precedente, a apostasia geral da religião de Jesus Cristo, tal como profetizada na Sagrada Escritura e explicada por teólogos autorizados da Igreja. Ele enuncia-se assim:

A apostasia geral não é católica.
A religião do Vaticano II é essa apostasia geral.
A religião do Vaticano II não é católica.

Prova-se a maior, a apostasia geral não é católica, pelo seguinte:

Conforme a interpretação mais autorizada, a apostasia mencionada na 2.ª Epístola aos Tessalonicenses, cap. 2, v. 3 significa a separação dos povos cristãos do seio da Igreja Romana, evento que deve preceder a manifestação do Anticristo, culminação do mistério da iniquidade no mundo (São Tomás, Estio, Cornélio a Lapide, São Roberto Belarmino, Suárez etc.).

É desnecessário estender-se sobre o caráter religioso dessa apostasia, pois isso hoje é evidente, quer por sua relação direta com a manifestação do Anticristo, quer pelos fatos contingentes que demonstraram ser falsa a interpretação alternativa de São Jerônimo, na Carta a Algasia, segundo a qual a apostasia seria a rebelião dos povos contra o já extinto Império Romano, salvo que se reconcilie essa interpretação com a primeira, entendendo a Igreja Católica como a legítima herdeira e continuadora do Império Romano (Manning, The Present Crisis).

Prova-se a menor, a religião do Vaticano II é essa apostasia geral, pelo seguinte:

1.ª Prova. Ninguém nega que a apostasia já começou (cf. 2Ts 2, 7), não só nos ambientes intelectuais, mas também nos populares, o que Pio XI caracterizava como o grande escândalo do nosso tempo (Straubinger, Biblia Platense). Contudo, antes do Vaticano II, guiada pelo Vigário de Cristo, a Igreja fazia frente ao movimento de apostasia pela promoção do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Encíclica Quas Primas de Pio XI), servindo como aquele obstáculo que impede a manifestação do Anticristo (Manning). Isso tudo acabou com a religião do Vaticano II, pois aí não só se renunciou formalmente ao direito exclusivo da Igreja de educar os povos na única religião verdadeira (com a consequente secularização dos últimos estados católicos), mas também houve, da parte do Papa putativo com os Bispos do mundo inteiro, uma clara ruptura com a pureza e integridade da fé tradicional da Igreja (mediante a promulgação dos erros já mencionados acima e outros mais). Ora, essa é a plena realização da apostasia dos povos cristãos predita na Sagrada Escritura.

2.ª Prova. A religião do Vaticano II é propriamente a apostasia, pois esta última não se daria universalmente sem a fraude deliberada dos maus e o engano da maior parte dos bons (Faber). Esse engano geral se produz pela sua aparência de catolicismo: a falsa religião dos últimos tempos é uma amti-Igreja, possui falsos chefes, falsos sacramentos e falsos milagres; seu representante visível (o falso profeta do Apocalipse) aparece ante o mundo com toda a aparência de um verdadeiro Vigário de Cristo, enquanto, na verdade, a Sé está vacante (Berry, Kramer, Manning, Arminjon). Eis um retrato perfeito da organização revolucionária e herética do Vaticano II.

3.ª Prova. Além da apostasia, a preparação para a vinda do Anticristo, segundo os Santos Padres e teólogos, deve ser acompanhada pelo ressurgimento do paganismo, a proeminência dos judeus na sociedade, uma organização mundial e alta tecnologia (Arminjon). Ora, todos esses fatores passaram a se verificar a partir do final da Segunda Guerra Mundial, especialmente depois dos anos 60, o que coincide com o surgimento da religião do Vaticano II e que, em uma grande medida, não poderia ter ocorrido sem ela. 

ESTUDOS COMPLEMENTARES

ARMINJON, Padre Charles. El Fin del Mundo y los Misterios de la Vida Futura. [s.l.]: Editorial Gaudete, [s.d.].

BERRY, Padre E. Sylvester. The Apocalypse of St. John. Columbus, OH: John W. Winterich, 1921.

____. The Chruch of Christ: An Apologetic and Dogmatic Treatise. London: B. Herder, 1927.

FABER. Frederick William. Sermão de Pentecostes em 1861. In: FAHEY C.S.Sp., Padre Denis. The Mystical Body of Christ in the Modern World. Dublin: Browne and Nolan, 1839.

KRAMER, Padre Herman Bernard F. Leonard. The Book of Destiny: An Open Statement of the Authentic and Inspired Prophecies of the Old and and New Testament. Rockford: TAN Books, 1956.

MANNING, Cardeal Henry Edward. The present crisis of the Holy See tested by prophecy. London: Burns & Lambert, 1861.

NOVUS ORDO WATCH. O Papa e o Anticristo: A Grande Apostasia Predita.

SANBORN, Donald J. Predictions on the End World.

II. ARGUMENTOS NEGATIVOS

Proprietatum deletio naturae negatio est.
A destruição das propriedades é a negação da natureza.

(Teodoreto, Dial. 3)

Os argumentos negativos demonstram que a religião do Vaticano II não possui os dotes e notas que derivam da própria essência do catolicismo. A constatação da falta dessas propriedades revela que tal instituição difere da Igreja Católica em natureza, assim como a água difere do vinho ou o humano do divino.

4.º Argumento Caracterológico

Este argumento mostra que a religião do Vaticano II não é a Igreja Católica em suas três principais características, atributos, propriedades internas ou dotes, a saber, indefectibilidade, infalibilidade e autoridade. Segue o enunciado:

Indefectibilidade, infalibilidade e autoridade são propriedades da Igreja Católica.
A religião do Vaticano II não possui tais propriedades.
Logo, a religião do Vaticano II não é a Igreja Católica.

Prova-se a maior, indefectibilidade, infalibilidade e autoridade são propriedades da Igreja Católica, pelo seguinte:

A Igreja, na pessoa dos Apóstolos, recebeu de Jesus Cristo o tríplice poder de ensinar, santificar e governar as almas, para dar continuidade ao seu ministério de salvação sobre a terra e estabelecer no mundo a observância da Nova e Eterna Aliança. Daí procede o caráter magisterial, sacerdotal e pastoral da Igreja (Spirago, Catecismo Católico Popular). Ora, quem quer o fim, quer os meios: para que a Igreja possa fazê-lo, ela recebeu do mesmo Jesus Cristo os dotes da indefectibilidade, infalibilidade e autoridade. Pela indefectibilidade, ela permanece a mesma em sua constituição e doutrina até o fim dos tempos; pela infalibilidade, ela não erra em matérias de fé e moral; pela autoridade, ela governa os fiéis com segurança para o Céu (Scüller, Explicação da Doutrina Christã).

Prova-se a menor, a religião do Vaticano II não possui tais propriedades, pelo seguinte:

As três qualidades mais características da religião católica são justamente aquelas que tanto os defensores quanto os críticos da religião do Vaticano II mais enfatizam como ausentes da nova religião. Em última análise, sua falta é o que faz dela a “Igreja da mudança”, como assinalam os modernistas, e a “Igreja da crise”, como assinalam os neoconservadores e tradicionalistas.

A religião do Vaticano II não é indefectível no seu ser, pois está em uma constante “crise de identidade”. Ela não é a mesma religião do passado: ela possui novas doutrinas, novos sacramentos e um novo clero, bem diferente das antigas doutrinas, dos antigos sacramentos e do antigo clero. Um católico de antigamente não reconheceria como sua a religião do Vaticano II e vice-versa. Qualquer pessoa imparcial, mesmo um acadêmico moderno, que resolvesse comparar a Igreja dos tempos de Pio IX ou São Pio X com aquela nascida do Vaticano II, perceberia que se tratam de duas religiões claramente distintas, cada qual com sua própria doutrina, culto e autoridades.

A religião do Vaticano II não é infalível na sua doutrina, pois vive em uma constante “crise de fé”. O Concílio Vaticano II, assim como a Liturgia, o Código de Direito Canônico, o Catecismo e as canonizações dele resultantes, apresentam defeitos graves que não somente comprometem a infalibilidade do Magistério Ordinário Universal da Igreja, mas também não fazem desta mestra segura da fé e do modo de vida cristão. Ora, toda a base de nossa obediência à autoridade eclesiástica, nasce da Igreja Católica ser infalivelmente segura em fé e moral, tal como se infere do ensinamento de Pio XII na Encíclica Humani Generis, de Pio IX no Syllabus, de Leão XIII na Encíclica Sapientiae Christianae etc. Se a religião do Vaticano II erra na fé e na moral em seu Magistério autêntico (como se demonstrou nos argumentos precedentes), então ela não é infalivelmente segura em sua doutrina, culto e lei.

A religião do Vaticano II não tem autoridade, pois o que mais a caracteriza é justamente uma “crise de autoridade”, a intenção de não ser dogmática e, por conseguinte, não obrigar os fiéis a crerem em um corpo definido de doutrinas e preceitos. Ela já não vigia e pune os rebeldes, como a Igreja do passado, mas supõe uma “maioridade” nos fiéis e dá-lhes toda liberdade (liberalismo), de modo que até recomenda que eles entrem em diálogo com os incrédulos (ecumenismo). Por isso, o Santo Ofício, o Índice de Livros Proibidos e antigas condenações a hereges e cismáticos foram desfeitas: a era dos anátemas acabou, como demonstram, por exemplo, o levantamento da excomunhão dos gregos e a Declaração Conjunta com os luteranos. Muito irônico é o fato de darem a essa nova orientação o nome de pastoral, visto que o Bom Pastor é justamente aquele que defende as ovelhas dos ataques dos lobos e que busca trazer de volta para o aprisco as ovelhas desgarradas. Ora, uma Igreja que, movida pelo liberalismo e ecumenismo, decididamente não faz nenhuma dessas coisas por décadas, de modo algum pode chamar-se “pastoral” no sentido próprio do termo: ela de fato carece de autoridade, uma propriedade essencial da Igreja Católica.

Logo, a religião do Vaticano II não é a Igreja Católica.

ESTUDOS COMPLEMENTARES

BILLOT, Cardeal Louis. A Infalibilidade da Igreja na Disciplina Universal.

CEKADA, Padre Anthony. Tradicionalistas, a Infalibilidade e o Papa.

DALY, John S. The Impossible Crisis.

DOLAN, Monsenhor Daniel L. Como ser um católico hoje.

PIVARUNAS, Monsenhor Anthony Mark. A Infalibilidade da Igreja.

5.º Argumento Gnosiológico

Este argumento examina as quatro propriedades externas ou notas clássicas da Igreja Católica (unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade), e verifica que elas não constam na nova religião do Vaticano II. Eis o enunciado:

Unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade são notas da Igreja Católica.
A religião do Vaticano II não possui tais notas. 
Logo, a religião do Vaticano II não é a Igreja Católica.

Prova-se a maior, unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade são notas da Igreja Católica, pelo seguinte:

As notas da Igreja são aquelas propriedades que manifestam aos homens qual é a verdadeira Igreja de Cristo. É possível encontrar muitas notas na Sagrada Escritura que permitem chegar ao conhecimento da verdadeira Igreja de Cristo e assim distingui-la facilmente das falsas igrejas. Por isso, alguns teólogos chegaram a propor bem mais do que quatro, por exemplo, São Roberto Belarmino em De Eccl., 4, 3 sqq. fala de quinze notas. Contudo, o mesmo doutor afirma que elas podem ser reduzidas àquelas quatro notas clássicas, contidas no Credo Niceno-Constantinopolitano: una, santa, católica e apostólica. De fato, todas as notas podem ser reduzidas “à sua origem, que é apostólica; à sua constituição, que é de uma hierarquia monárquica, princípio de unidade; ou à sua eficácia extensiva ou externa, que pertence à catolicidade; ou à eficácia intensiva ou interna, cujo fruto é a santidade.” (Persch, De Eccl. Chr. II, 3, XXXIX). 

Prova-se a menor, a religião do Vaticano II não possui tais notas, pelo seguinte:

Não é una pela constituição. Embora um tempo de vacância da Sé Apostólica, mesmo um tempo prolongado, não afete a constituição monárquica da Igreja (Dorsch, De Eccl. 2, 196-7), um Concílio Vaticano II é o bastante para destruí-la. Em primeiro lugar, o próprio conceito tradicional de autoridade foi abolido, como se demonstrou acima. Além disso, a noção de colegialidade febroniana, ensinada na Lumen Gentium, fez da Igreja um corpo de duas cabeças: governada pelo Papa com os Bispos (colegial) ou pelo Papa somente (monárquica), sempre se preferindo a primeira cabeça à última. Prova-o a auto-deposição da tiara papal por Paulo VI, o costume de “quebrar protocolos” que realcem a autoridade pontifícia e os amplos poderes concedidos às Conferências Episcopais. Nada, porém, exprime melhor esse novo estado que o Sínodo dos Bispos. Essa instituição pós-conciliar dá aos bispos controle sobre o governo da Igreja e não simplesmente de suas dioceses, como era antigamente. Essa “democratização do poder” não é de origem divina, mas sim uma inovação humana que usurpa do Romano Pontífice o seu direito de jurisdição universal sobre todos os fiéis, tal como ensina a Pastor Aeternus.

Não é santa pela eficácia intensiva ou interna. O que ficou dito na 3.ª prova da menor do 2.º Argumento demonstra que a religião do Vaticano II carece da santidade que produz bons frutos na atividade missionária, cerimônias litúrgicas e produção teológica. Em realidade, a falta de santidade é uma das coisas que mais saltam aos olhos no âmbito pós-conciliar: falsos santos, falta de reverência ao Santíssimo Sacramento e muitas doses de heterodoxia são o feijão com arroz da religião do Vaticano II.

Não é católica pela eficácia extensiva ou externa. A religião do Vaticano II não é católica, pois, apesar de estar difusa pelo mundo como a maçonaria e o judaísmo, ela, assim como eles, não abrange, pela fé verdadeira, “os crentes que existiram desde Adão até o fim do mundo”, nem tampouco exige que todos os homens a professem para que alcancem a salvação “como os que deviam entrar na Arca, para não perecerem nas águas do Dilúvio” (Catecismo Romano, 9.º Art. do Credo). “Normalmente”, ensina João Paulo II, “será pela prática sincera daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas e seguindo os ditames de sua própria consciência que os membros de outras religiões respondem positivamente ao convite de Deus e recebem a salvação em Jesus Cristo, mesmo enquanto eles não o reconhecem ou aceitam como seu Salvador.” (As sementes da Palavra nas religiões do mundo, 9 set. 1998). Nessa nova concepção, o catolicismo deixou de ser o meio ordinário e universal pelo qual os homens se salvam e sem o qual “não podem estar seguros de sua eterna salvação.” (Pio XII, Mystici Corporis).

Não é apostólica pela origem. A religião do Vaticano II carece de sucessão apostólica pela invalidade do Rito de Sagração Episcopal de 1968, o qual provocou uma mudança substancial na oração contendo a forma do sacramento. Isso significa que os bispos ordenados com o rito reformado do Vaticano II não são verdadeiros sucessores dos apóstolos (Cekada). Além disso, sua doutrina também não é de origem apostólica, mas de origem revolucionária e herética, como se demonstrou acima.

ESTUDOS COMPLEMENTARES

CEKADA, Padre Anthony. A invalidade do Rito de Consagração Episcopal de 1968.

CONTROVÉRSIA CATÓLICA. Como se tornar um apologista conciliar.

____. Como se tornar um santo conciliar (versão João Paulo II).

____. Como se tornar um santo conciliar (versão Paulo VI).

MOREIRA, Irmão Diogo Rafael. Carlos Nougué: Paranoia ou Mistificação?

RUBY, Griff. The Resurrection of the Roman Catholic Church.

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A inferência seis vezes repetida de que a religião do Vaticano II não é católica deve nos levar à adoção de um saudável realismo.

Aquelas pessoas que se encontram, de algum modo, ligadas à religião do Vaticano II devem desligar-se dela, porque, como se mostrou acima, a comunhão com ela não significa a comunhão com a Igreja Militante, mas antes quer dizer a comunhão com a revolução anticatólica, a heresia das seitas e a apostasia geral destes últimos tempos.

Por outra parte, com uma fé viva nas sete propriedades estudadas acima, devemos buscar a Igreja Católica onde ela realmente está, junto daqueles que seguem lutando pela preservação da fé e dos sacramentos tradicionais da Igreja, a fim de que tenhamos forças para nos manter firmes nestes tempos de paixão, com os olhos fixos na Cruz, nossa única esperança sobre esta terra.

O Crux ave, spes unica,
hoc Passionis tempore!
piis adauge gratiam,
reisque dele crimina.

Te, fons salutis Trinitas,
collaudet omnis spiritus:
quibus Crucis victoriam
largiris, adde praemium.

Amen.

Resposta ao Instituto Cidade de Deus sobre o Sedevacantismo

Este vídeo é uma resposta aos comentários tecidos pelo Instituto Cidade de Deus sobre o Sedevacantismo. A ocasião em que o tema foi abordado foi uma live intitulada “Combater o Bom Combate”, o tema só começa a ser tratado a partir de 37:31 (https://www.youtube.com/watch?v=qiW6pt8SE1Q&feature=youtu.be&t=2251).

Insisto sobretudo no fato de a falta de aprofundamento não vir da parte dos sedevacantistas, que normalmente compreendem os argumentos colocados contra a sua posição e sabem de suas limitações, mas da parte dos não sedevacantistas que trocam vagas analogias pela realidade. Assim, o argumento das “portas do Inferno”, do “marido mau” e dos “papas indignos” serve antes para provar ou reforçar o sedevacantismo do que para refutá-lo.

Sedevacantismo para Leigos: Como falar de sedevacantismo a quem não sabe nada sobre o tema

O sedevacantismo é uma conclusão teológica solidamente fundamentada nas Sagradas Escrituras, na Santa Tradição, na Liturgia Romana, no Direito Canônico e no Magistério da Igreja. Sendo as fontes assim tão seguras, a conclusão é certíssima.

Porém, não se espera que o leigo beba das fontes diretamente. A fé exige a submissão da inteligência a um ministro de Deus, portanto, ao simples fiel compete receber o alimento da sã doutrina da boca dos legítimos pastores.

Isso quer dizer que cabe aos leigos o bom entendimento do Catecismo e não da Teologia Sagrada em todas as suas nuances. Mesmo o Catecismo lhe deve ser explicado não de modo puramente especulativo, mas sim com exemplos e imagens bastante vivas, que ajudem a reter com mais facilidade a doutrina de Jesus Cristo.

Esse método de ensino da doutrina cristã nos veio diretamente de Nosso Senhor, que sempre se serviu de parábolas para comunicar aos homens as verdades mais elevadas; e, mais recentemente, esse caminho foi particularmente encorajado por Sua Santidade o Papa São Pio X na encíclica Acerbo Nimis.

Cientes disso, Padre Rodrigo e eu resolvemos gravar este vídeo explicando de maneira simplificada, a partir de pontos elementares da doutrina cristã – tais como, a religião verdadeira, os deveres do cristão e as notas da Igreja -, quais são as bases do sedevacantismo.

Esperamos que esta exposição possa ajudar nossos colaboradores a melhor compreender e explicar aos menos instruídos a situação em que nos encontramos. Poque, de fato, a Sé está vacante.

O que você precisa saber sobre a Missa Una Cum

Por Missa una cum se entende toda a Missa Tridentina que nomeia tanto o papa como do bispo modernista entre os defensores da fé católica. Como tal, ela é um ato ecumênico, uma grande blasfêmia e objetivamente um escândalo. É unir em torno de um mesmo Altar, Cristo e Belial, luz e trevas, catolicismo e modernismo.

O tema da Missa una cum já foi tratado no Controvérsia Católica, ele foi habilmente explicado por Monsenhor Dolan por volta de um ano atrás, no vídeo intitulado “Monsenhor Dolan: Perguntas e Respostas sobre a Missa una cum” (https://www.youtube.com/watch?v=RKrYbAVF7Y4).

Neste novo vídeo sobre o tema, Padre Rodrigo e eu temos a intenção de salientar mais uma vez a importância de evitar a frequência da Missa una cum mediante um pequeno comentário daquilo que se passa no momento em que o sacerdote coloca os nomes dos modernistas no cânon da Santa Missa.

Para mantê-lo simples e acessível mesmo àqueles pouco familiarizados com a questão, escolhemos utilizar um manual popular que, gozando de um justificado prestígio, pode ser facilmente encontrado na internet. Trata-se do livro Missa Tridentina: Explicações das orações e das cerimônias da Santa Missa pelo famoso liturgista Dom Prosper Guéranger.

A parte que aqui nos interessa é a seguinte:

“Em seguida o padre acrescenta: Una cum famulo tuo Papa nostro N. et Antistite nostro N. et omnibus orthodoxis, atque catholicae et apostolicae fidei cultoribus. Nem uma só missa é celebrada sem que ela aproveite a toda a Igreja. Todos os seus membros participam de cada missa, e esta oração nos dá o detalhe. Primeiro é mencionado o Vigário de Cristo na Terra, não sem uma inclinação de cabeça do celebrante para honrar a Nosso Senhor no seu Vigário…

Para que todos os seus membros, sem exceção, sejam mencionados, a Santa Igreja fala aqui de todos os fiéis, expressos nesta palavra: cultoribus, ou seja, todos os fiéis observantes da fé católica, pois é necessário estar dentro desta fé para ser incluído no número dos que são aqui mencionados pela Igreja. É preciso ser ortodoxo, omnibus ortodoxis, ou seja, ter o pensamento reto e professar a fé católica, a fé que nos vem dos Apóstolos. A Santa Igreja, ao insistir sobre estas palavras, omnibus orthodoxis, atque catholicae et apostolicae fidei cultoribus, mostra que nesse lugar do rito ela não reza por aqueles que não têm fé, que não têm a reta doutrina e que não receberam a fé dos Apóstolos.”

(GUÉRANGER, Dom Prosper. Missa Tridentina: Explicações das orações e das cerimônias da Santa Missa. Niterói-RJ: Permanência, 2010, pp. 92-93.)

Em suma, por mais incenso e latim, por maior que seja o esplendor das cerimônias, por mais barroco ou gótico que seja o templo e por mais dignas que sejam as vestes litúrgicas utilizadas, o padre e o fiel que está em uma Missa una cum afirma categoricamente que ele está em comunhão com os hereges modernistas, nomeadamente o que ora usurpa a Sé Petrina e seu auxiliar local, o herege diocesano, e que eles são pastores fiéis e ortodoxos, que têm o pensamento reto e professam a fé católica e apostólica.

O mínimo de bom senso aqui bastaria para qualquer sedevacantista ou tradicionalista perceber que, uma vez que ele está plenamente ciente de que os papas modernistas e seus asseclas não cabem dentro dessa categoria nem sonhando, porque é óbvio que eles foram e são, por tudo o que se sabe sobre eles, cultores da heresia e da heterodoxia, então eles jamais devem ir a uma Missa una cum, que é um ato público onde se afirma totalmente o contrário.

Também basta o mínimo de bom senso para que os conservadores que operam dentro da estrutura pós-conciliar decidam de uma vez se querem ser católicos ou modernistas. Com efeito, a Missa una cum os faz confessar a hierarquia modernista como perfeitamente católica. Nada há, portanto, que criticar sobre as novas doutrinas e disciplinas pós-conciliares… portanto, seu próprio movimento não tem razão de existência, salvo como uma “experiência tradicional” que não é mais verdadeira e boa que a experiência de comunhão com comunistas e protestantes, mais conhecidas como Teologia da Libertação e Renovação Carismática. Devem então, em solene procissão com bandeira de arco-íris e o ídolo de Pachamama, caminhar junto com eles, pondo-se de corpo e alma no trem modernista rumo a um reino ainda desconhecido, em constante evolução, que fica cada vez mais distante do catolicismo. Ou, então, se for para serem coerentes com as suas mais sinceras convicções, não dirão ou irão mais à Missa una cum, pois a verdade os obriga a admitir que os modernistas podem ser cultores de tudo, do surrealismo, da luta de classes, de abusos doutrinais, litúrgicos e morais de todo tipo, até mesmo cultores de árvores e do estilo de vida indígena… realmente de tudo, menos da fé católica e apostólica.

É por isso que pedimos aos nossos ilustres leitores e espectadores que deixem de ir não só à Missa Nova, que está totalmente fora de cogitação como uma alternativa ao católica, mas inclusive às missas em latim, tradicionais ou tridentinas rezadas por padres em comunhão com os modernistas.

Padre Anthony Cekada escreveu um artigo de 19 páginas somente sobre essa matéria, respondendo inclusive às objeções comumente feitas contra essa nossa posição. Embora creiamos que o que foi dito acima resolve o problema da maior parte das pessoas, também forneceremos uma tradução deste seu artigo bem mais extenso e detalhado, o qual, se Deus quiser, deve sair ainda neste mês de novembro.

Discurso de São Pio X aos padres da União Apostólica

DISCURSO DE SUA SANTIDADE O PAPA SÃO PIO X
AOS PADRES DA UNIÃO APOSTÓLICA
POR OCASIÃO DO QUINTO ANIVERSÁRIO
DA FUNDAÇÃO

Segunda-feira, 18 de novembro de 1912

Agradeço-vos, diletos irmãos, pelo delicado pensamento que vos conduziu ao Vaticano para celebrar aqui, com o antigo confrade, o cinquentenário da fundação da União Apostólica. Agradeço-vos de todo o coração e rezo ao Senhor para que Ele vos recompense por esse ato de requintada caridade. Também vos parabenizo por serdes filiados a esta União, porque com tal ato vos comprometestes a cumprir fielmente todas as obrigações sacerdotais: obrigações que me esforcei por resumir no Exhortatio ad clerum, publicado por ocasião do meu Jubileu sacerdotal, e com cujo cumprimento poderemos permanecer fieis à vocação para a qual o Senhor nos chamou: vocavit vocatione sua sancta: ou seja, seremos capazes de alcançar a santidade necessária ao sacerdócio para o qual fomos chamados. Se, falando dos simples cristãos, São Pedro os chamou gens sancta, genero electum, regal sacerdotium, quanto mais isso deve ser dito de nós, representantes de Deus na Terra e de seus ministros, quos elegit Deus in Christo ante mundi constitutionem, ut essemus sancti et imrnaculati in caritate, quos non dixit servos sed amicos, pro Christo legatione fungentes, ministros Christi et dispensatores mysteriorum Dei?

Portanto, para alcançar essa santidade, exorto-vos a permanecer sempre fieis à observância das regras de vossa União, tomando o cuidado de não dispensar em nenhum dia e por qualquer motivo as obrigações que vos são impostas, isto é, da meditação, da leitura espiritual, do exame, da visita ao Ss. Sacramento, porque, observando essas ordens, vos conservareis bem e vos tornareis santos.

Distraídos por tantas outras ocupações, é fácil esquecer as coisas que levam à perfeição da vida sacerdotal; é fácil se iludir e acreditar que, ao lidar com a saúde das almas dos outros, a pessoa também trabalha na própria santificação. Mas não vos engane essa lisonja, pois nemo dat quod non habet; e, para santificar os outros, não devemos negligenciar nenhum dos meios propostos para nos santificar.

Vós dissestes muito bem que a característica dos padres da União Apostólica e sua divisa particular deve ser, e é de fato, o amor ao Papa, e isso também contribuirá admiravelmente à vossa santificação. Para amá-lo, basta refletir quem é o Papa:

O papa é o guardião do dogma e da moral; ele é o depositário dos princípios que faz honesta a família, grandes as nações, santas as almas; é o conselheiro de príncipes e povos; é o chefe sob a qual ninguém se sente tiranizado, porque ele representa o próprio Deus; é o pai por excelência que, por si só, reúne tudo o que pode haver de amoroso, terno e divino.

Parece incrível, e é também doloroso, que haja padres a quem essa recomendação deva ser feita, mas infelizmente estamos hoje nessa condição dura e infeliz de ter que dizer aos padres: amai o Papa!

E como se deve amá-lo? Non verbo neque lingua, sed opere et veritate. Quando alguém ama uma pessoa, tenta se conformar a seus pensamentos em tudo, executar suas vontades, interpretar seus desejos. E se nosso Senhor Jesus Cristo disse de si mesmo “si quis diligit me, sermonem meum servabit”, da mesma forma, para mostrar nosso amor ao Papa, é necessário obedecer-lhe.

Portanto, quando se ama o papa, não se discute sobre o que Ele dispõe ou exige, ou até onde deve chegar a obediência e em que coisas se deve obedecer; quando se ama o papa, não se diz que ele não tenha falado com clareza suficiente, como se fosse obrigado a repetir ao ouvido de cada um aquela vontade claramente expressa com tanta frequência não apenas por voz, mas por cartas e outros documentos públicos; não se põe em dúvida suas ordens, aduzindo ao fácil pretexto de quem não quer obedecer – que não é o papa quem comanda, mas aqueles que o rodeiam – ; o campo em que ele pode e deve exercer sua autoridade não é limitado; à sua autoridade não se antepõe a de outras pessoas que dele discordem, por mais instruídas que sejam, pois, se são instruídas, não são santas, uma vez que quem é santo não pode discordar do papa.

Este é o desabafo de um coração dolorido que faço com profunda amargura, não por vós amados irmãos, mas convosco para lamentar a conduta de tantos padres que não apenas se permitem discutir e rever os desejos do Papa, mas que não têm vergonha de chegar às descaradas e atrevidas desobediências, com tanto escândalo dos bons e com tanta ruína das almas.

Esta queixa não é provocada (repito) por vós, amados irmãos, que, observando as regras da União, professam solenemente seu respeito, sua afeição, sua piedade em relação ao Papa. Que Deus vos mantenha nessas santas intenções e vos console com sua bênção; esta bênção que eu invoco sobre vós, vossos irmãos, vossas famílias, todos os vossos entes queridos e aqueles que tendes em mente, para que a todos possa ser portadora de toda consolação.

Um cardeal excomungado pode ser eleito ao Papado?

UM CARDEAL EXCOMUNGADO PODE SER ELEITO AO PAPADO?

Pelo Reverendo Padre Anthony Cekada
Quidlibet, 25 jun. 2007

PERGUNTA: A Constituição do Papa Pio XII, que estabelece as regras para o Conclave Papal, diz o seguinte:

“34. Nenhum Cardeal, à pretexto ou em razão de qualquer excomunhão, suspensão, interdito ou outro qualquer impedimento eclesiástico, pode ser excluído de qualquer maneira da eleição ativa e passiva de Sumo Pontífice. Além disso, suspendemos tais censuras apenas para efeito da eleição papal, ainda que, para outros efeitos, sejam mantidas.” (Constituição Vacantis Apostolicae Sedis,, 8 de dezembro de 1945).

Tenho várias perguntas sobre isso:

1. Como a Igreja interpreta essa passagem?

2. São levantadas todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras para todos os participantes do conclave papal? Inclusive para o cardeal que tenha sido eleito Papa, porque é isso o que parece significar o termo “eleição passiva”?

3. Se é assim, a passagem quer dizer que um Cardeal excomungado pode ser eleito validamente Papa? Isso não derruba o princípio fundamental por trás de todo o argumento sedevacantista?

RESPOSTA: Por muitos anos vários autores tradicionalistas pertencentes à FSSPX, como o Padre Carl Pulvemacher, Michael Davies, Padre Dominque Boulet e os dominicanos de Avrillé, e até autores conservadores como o Padre Brian Harrison, tem citado essa passagem como uma resposta definitiva ao sedevacantismo. Se Pio XII explicitamente suspendeu qualquer excomunhão, impedimentos eclesiásticos e censuras de qualquer tipo a quem quer que seja eleito Papa, logo (segue seu argumento) um herege poderia ser eleito como um verdadeiro Papa.

Mas será que este é o princípio certo a ser tirado dessa passagem? Abordemos primeiro, pois, a questão mais ampla a da interpretação.

I. A INTERPRETAÇÃO DA LEI

De maneira geral, a “intepretação” no direito canônico provém de uma autoridade pública, como o Papa, a Cúria etc. (o que se denomina interpretação autêntica) ou de outra fonte reconhecida, como o ensino de canonistas (o que se chama interpretação doutrinal). (Para uma discussão completa, vide Abbo e Hannon, 1:17.)

Não fui capaz de encontrar um pronunciamento papal ou curial que interprete ou explique essa passagem. Ela aparece com essencialmente a mesma redação na legislação de eleições papais promulgada por Clemente V (1317), Pio IV (1562), Gregório XV (1621) e Pio X (1904). Por isso, o significado da norma deve ter sido considerado evidente, ao menos para pessoas de tipo curial.

Quando não existe uma interpretação por uma autoridade pública, e isso é frequente em direito canônico, deve-se consultar outras passagens do Código e o ensinamento dos canonistas, para se descobrir o que os termos significam. Depois de seguido esse procedimento, fica claro o significado dessa passagem na Constituição de Pio XII. Por essa razão, vamos agora empreender uma averiguação na terminologia.

(a) Censuras. A “excomunhão, suspensão ou interdito” que o Pontífice mencionou são censuras, castigos que a lei eclesiástica inflige a um malfeitor para que se arrependa. (Para uma descrição mais geral, consulte-se Bouscaren, Canon Law 815-6). Os cardeais estão eximidos de incorrer em censuras, exceto nos casos em que a lei especifique o contrário. (Cânon 2227.2)

Em um conclave papal, o cardeal eleitor ou o papa eleito que, não obstante, de alguma maneira tivesse sido excomungado, enfrentaria obstáculos quase insuperáveis. Os efeitos dessa censura impedem que um excomungado administre ou receba os sacramentos, exerça a sua jurisdição, vote, nomeie outrem para cargos e, de fato, seja eleito para qualquer cargo eclesiástico. (vide Bouscaren, 831-4). Isso não permitiria ao papa-eleito senão o saudar a multidão da sacada do seu palácio e circular de papamóvel. (não mencionado por Bouscaren).

As censuras são às vezes denominadas penas medicinais, porque o seu propósito é curar a teimosia do malfeitor. Isso as distinguia das penas punitivas, que expiam diretamente um crime, independentemente de o malfeitor se arrepender ou não. (Bouscaren, 846).

(b) Impedimentos Eclesiásticos. O termo “outro impedimento eclesiástico” mencionado na Constituição de Pio XII pertence a uma categoria mais genérica.

Um desses impedimentos é, por exemplo, a pena punitiva de infâmia: a perda da reputação devido a um crime horrível. Entre outras coisas, esta pena faz com que um criminoso não seja passível de eleição a cargos eclesiásticos, dignidades, etc. (Bouscaren, 849.)

Este impedimento, então, como a excomunhão, impediria um cardeal de votar em um conclave ou de ser eleito papa.

II. SUSPENSÃO DE CENSURAS E IMPEDIMENTOS

Tendo estabelecido o significado desses termos no parágrafo 34 da Constituição de Pio XII, pode-se ver com facilidade o que almeja alcançar a lei: evitar a discussão interminável sobre a validade das eleições papais.

Então fica fácil responder à segunda pergunta: “Ela levanta todas as excomunhões, impedimentos eclesiásticos e censuras para todos os participantes de um conclave papal”?

A resposta é sim.

O parágrafo 34 também compreende o caso de um cardeal excomungado que tenha sido eleito papa?

Novamente a resposta é sim, porque a Constituição se utilizou dos termos eleição ativa e passiva, o que significa respectivamente ser capaz de votar e ser capaz de ser eleito. Portanto, é correto dizer que a Constituição de Pio XII permite explicitamente que um cardeal excomungado seja eleito papa validamente.

III. UM ARGUMENTO CONTRA O SEDEVACANTISMO?

Eis então a pergunta final: Isso não derruba o princípio fundamental por trás da tese sedevantista?

Mas aqui a resposta é não.

A maioria dos que pertencem à FSSPX, muitos sedevacantistas e até acadêmicos inteligentes como o Pe. Harrison presumem que a excomunhão é o ponto de partida para a tese sedevacantista, que eles acreditam ser algo como o isso:

  • O direito canônico impõe uma excomunhão automática a um herege.
  • A excomunhão impede que um clérigo vote para eleger alguém a um cargo, que ela própria seja eleita ou que permaneça em um cargo uma vez que se tenha tornado um herege público.
  • Paulo VI e seus sucessores incorreram nessa excomunhão por heresia pública.
  • Logo, eles não foram verdadeiros papas.

Elimine a possibilidade de excomunhão por conta do parágrafo 34 da Constituição de Pio XII (segue a argumentação anti-sedevacantista) e desaparece o argumento sedevacantista.

Mas eles não entenderam. A excomunhão é uma criação da lei eclesiástica, e ela não é o ponto de partida para a tese sedevacantista. Na verdade, esta não tem nada a ver com aquela.

Em vez disso, ponto de partida para o sedevacantismo é um princípio inteiramente outro: é que a lei divina impede que um herege se torne um verdadeiro papa (ou que permaneça como tal, se um papa adota a heresia durante o curso de seu pontificado). Esse princípio vem diretamente daquelas partes de grandes comentários pré-Vaticano II ao Código de Direito Canônico que tratam da eleição ao ofício papal e das qualidades requeridas na pessoa eleita.

Eis aqui algumas citações:

Hereges e cismáticos estão excluídos do Supremo Pontificado pela própria lei divina…Eles certamente devem ser considerados como excluídos de ocupar o trono da Sé Apostólica, que é a mestra infalível da verdade e da fé e o centro da unidade eclesiástica.” (Maroto, Institutiones IC 2 784)

Apontamento para o Ofício do Primado. 1. O que se requer por lei divina para esse apontamento…Também se requer para a validade que o eleito seja membro da Igreja; portanto, hereges e apóstatas (ao menos os públicos) estão excluídos.” (Coronata, Institutiones, IC 1:312).

“Todos aqueles que não sejam impedidos por lei divina ou por uma lei eclesiástica invalidante são validamente passíveis de eleição [ao papado]. Portanto, um homem que que goze do uso da razão suficiente para aceitar a eleição e exercer jurisdição, e que seja um verdadeiro membro da Igreja, pode ser validamente eleito, ainda que seja um leigo. São, porém, excluídos como incapazes de eleição válida todas as mulheres, crianças que ainda não tenham chegado à idade da razão, os afetados de insanidade habitual e hereges e cismáticos.” (Wernz-Vidal, Jus Can. 2:415)

Portanto, a heresia não é um mero “impedimento eclesiástico” ou censura do tipo que Pio XII enumerou e suspendeu no parágrafo 34 da Vacantis Apostolicae Sedis. Ao contrário, é um impedimento de lei divina que Pio XII não suspendeu – e de fato nem poderia ter suspendido, precisamente porque é uma lei divina.

IV. RESUMO: MAÇÃS E LARANJAS

O parágrafo 34 da Vacantis Apostolicae Sedis suspende os efeitos das censuras (excomunhão, suspensão, interdição) e outros impedimentos eclesiásticos (por exemplo, infâmia legal) para os cardeais que estão elegendo o papa e para o cardeal que venha a ser eleito. Portanto, um cardeal que tenha incorrido em uma excomunhão antes de sua eleição como papa seria, não obstante, eleito validamente.

Contudo, esta lei só concerne aos impedimentos da lei eclesiástica. Com tal, ela não pode ser invocada como argumento contra o sedevacantismo, que se baseia nos ensinamentos dos canonistas pr´-Vaticano II de que a heresia é um impedimento da lei divina ao recebimento do o papado.

Portanto, os polemistas anti-sedevacantistas devem deixar de reciclar argumentos baseados na passagem em questão. Ele não tem nada a ver com a posição a que eles se opõem.

BIBLIOGRAFIA
ABBO, J & J. Hannon. The Sacred Canons. St. Louis: Herder 1957. 2 vols.
BOUSCAREN, T. & A. Ellis. Canon Law: A Text and Commentary. Milwaukee: Bruce 1946.
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WERNZ, F. & P. Vidal. Ius Canonicum. Rome: Gregorian 1934. 8 vols.

Sacerdotes Tradicionais, Sacramentos Legítimos

Sacerdotes Tradicionais, Sacramentos Legítimos

Pelo Reverendo Padre Anthony Cekada

O Direito Divino nos obriga a conferir os Sacramentos.

De tempos em tempos, o católico tradicional ouvirá alguém afirmar que os sacramentos que recebe são “ilícitos”. Às vezes, os membros do organismo Novus Ordo – o bispo diocesano ou o pároco local, por exemplo – exercerão este ofício, referindo-se a uma ou outra disposição do direito canônico. Também pode acontecer que um católico tradicional encontre um panfleto escrito por um tipo de tradicionalista popularmente chamado “home alone”. Trata-se de alguém que rejeita o Vaticano II e a Missa Nova, mas ao mesmo tempo denuncia a administração dos sacramentos de todos (ou da maioria) dos sacerdotes católicos tradicionais como ilegal, pecaminosa, punível com excomunhão, contrária ao direito canônico ou, no caso da confissão, inválida. Assim, em vez de receber sacramentos, ele recomenda que você fique em casa.

No início dos anos 1990, escrevi dois artigos que tratavam destas questões: “Direito Canônico e Senso Comum” e “Home alone”, ambos amplamente difundidos nos meios de comunicação tradicionais. Decidi voltar ao assunto porque nos últimos anos surgiram vários novos panfletos “Home Alone”, o mais recente dos quais afirmava que o clero tradicionalista violava não só a lei canônica, mas também a lei divina.

Ora, a formulação de argumentos credíveis com base em tais conceitos requer um nível bastante alto de conhecimento especializado em teologia moral, direito canônico, direito sacramental e teologia dogmática. Ordinariamente, isto só pode ser adquirido através de cursos formais nestas disciplinas em um seminário ou universidade católica, e então aperfeiçoando este conhecimento básico com um estudo comparativo das principais obras canônicas e teológicas, todas elas em latim (algumas das quais são citadas na bibliografia abaixo). Nenhum dos “Home Alone”** que conheço tem esses antecedentes e nem sequer suspeitam da extensão da sua ignorância nessas disciplinas. Portanto, não é surpreendente encontrar em seus escritos mais recentes dois erros fundamentais.

Primeiro: estes escritores assumem que a pergunta mais importante que um sacerdote católico deve sempre fazer a si mesmo sobre um sacramento é se ele é “permitido” ou “proibido” de conferi-lo. Isto inverte tudo na sua mente. O sacerdócio não é simplesmente um privilégio que quase nada permite; é um múnus ou officium (dever) de fazer algo: oferecer o sacrifício e dispensar os sacramentos. Portanto, a verdadeira questão para o sacerdote é sempre: Qual sacramento estou obrigado a conferir agora?

Segundo, provavelmente porque obras menos especializadas às vezes usam termos indiscriminadamente, os escritores confundem dois conceitos distintos de direito canônico enquanto relacionados com a administração dos sacramentos:

(1) delegação (faculdade legítima ou permissão da Igreja para administrar os sacramentos) e

(2) jurisdição (poder de governo sobre outros nas coisas espirituais)

Um sacerdote ou bispo deve ter delegação legítima para todos os sacramentos que confere, porque a sua “confecção e administração é divinamente confiada ao ministério da Igreja” (Cappello, de Sacramentis 1, 49.) A jurisdição, por outro lado, só é exigida para a confissão. Os supostos canonistas leigos, no entanto, parecem pensar que a lei exige que um sacerdote tenha jurisdição cada vez que ele confere um sacramento, e baseiam a maior parte de suas críticas nesta suposição implícita. Mas como a delegação é suficiente, tais argumentos não são relevantes. Abaixo vou desenvolver brevemente ambos os tópicos. A maior parte do que se segue serve igualmente bem para responder aos “Home Alone”** e aos membros do organismo Vaticano II.

I. Direito Divino

Os mandamentos do Senhor para batizar (Mt 28, 19), para perdoar os pecados (Jo 20, 22), para oferecer a Missa (Lc 22, 19), etc., constituem uma lei divina que obriga todos os sacerdotes e bispos católicos até ao fim dos tempos. Alguns sacerdotes são obrigados por justiça a administrarem os sacramentos; outros são obrigados por outras causas: pela caridade ou em virtude da sua ordenação. Estes são os princípios:

A. Obrigação de justiça (ex justitia). Esta categoria inclui todos os sacerdotes com cura animarum (cura das almas). Este termo técnico de direito canônico se refere aos sacerdotes que, em razão do seu ofício ou de um título especial de jurisdição, seja ordinário (um bispo diocesano, um superior geral, um pároco ou seus equivalentes) ou delegado (um vigário coadjutor ou assistente do pároco), são obrigados a “apascentar uma determinada parte do rebanho de Cristo” (Merkelbach, Summa Theologiae Moralis 3, 86).

A sua obrigação de administrar os sacramentos deriva do “direito divino [várias citações] que ordena aos pastores que apascentem as suas ovelhas e certamente procurem o seu bem espiritual e a sua salvação” (Hervé, Manuale Theologiae Dogmaticae 4, 491). Os sacerdotes com cura animarum estão gravemente obrigados por direito divino de prover os sacramentos aos fiéis católicos em condições de recebê-los.

B. Obrigação de caridade (ex caritate). Outros sacerdotes que não têm este tipo de jurisdição ordinária ou delegada – por exemplo, professores de seminário, administradores, professores não designados, aposentados, etc. – são, contudo, também obrigados a fornecer os sacramentos aos fiéis, segundo a gravidade da necessidade de um indivíduo ou de uma comunidade. Alguns autores dizem que a sua obrigação se baseia na virtude da caridade: “Quando faltam sacerdotes com cura animarum, outros sacerdotes são obrigados pela caridade a administrar os sacramentos… em caso de grave necessidade de uma comunidade, [tais sacerdotes] são obrigados a administrar os sacramentos, mesmo correndo risco de vida, desde que haja razoável esperança de assistir e ninguém mais atenda”. Esta obrigação se impõe sob pena de pecado mortal (Merkelbach 3, 87; ênfase minha).

C. Obrigação em virtude da ordenação. Outros autores dizem que tais sacerdotes são obrigados a fornecer os sacramentos não só por caridade, mas em virtude da própria ordenação sacramental. Eis uma explicação: “Eles estão vinculados por certa obrigação geral que vem da ordem sagrada que receberam. Porque Cristo, nosso Senhor, os fez sacerdotes para que se dedicassem à salvação das almas. Para este fim, o seu dever especial é administrar os sacramentos. Isso é evidente pelo rito da ordenação, que lhes confere o poder de oferecer o sacrifício e de absolver os pecados, e que especifica a administração dos restantes sacramentos entre os seus outros deveres… Esta obrigação liga-se mais gravemente em função da gravidade da necessidade espiritual dos fiéis da diocese onde o sacerdote deve ministrar, ou do lugar onde ele vive. Quando tal comunidade se encontra em grave necessidade – quando, por exemplo, por falta de sacerdotes ou confessores, as pessoas não têm um modo conveniente de assistir à Missa aos domingos e às festas de guarda e receber a Eucaristia, ou quando é inconveniente para as pessoas frequentar o sacramento da penitência, de modo que muitos permanecem no pecado – o sacerdote tem a grave obrigação de administrar esses sacramentos e de se preparar adequadamente para o dever de confessor.” (Aertnys-Damen, Theologia Moralis 2, 26): “Generali quadam obligatione tenentur ex ordine suscepto … in needitate simpliciter gravi talis communitatis… gravis est obligatio…” (ênfase do autor citado).

Esses princípios são aplicados da seguinte forma: Depois do Vaticano II, quase todos os bispos e sacerdotes com cura animarum desertaram para a nova religião. Os poucos sacerdotes que resistiram, por outro lado, eram professores, marginalizados em suas ordens religiosas ou dioceses, aposentados, etc. Esses sacerdotes foram então obrigados pelo direito divino a fornecer os sacramentos aos católicos, que, como os seus pastores haviam apostatado, neste momento estavam “obviamente em grande necessidade”. Os sacerdotes não eram obrigados a “pedir permissão”. Pelo contrário, eram obrigados, tanto pela caridade como pela sua ordenação, a batizar, absolver, celebrar a Missa, etc.

Além disso, entre eles, os Bispos – Arcebispos Lefebvre e Thuc – foram obrigados a conferir ordens sagradas a candidatos dignos que, então, continuariam a fornecer os sacramentos aos fiéis católicos em todo o mundo. A sua obrigação vinha da ordem sagrada do episcopado que ambos tinham recebido. A exortação – contida numa única frase – dirigida ao candidato no rito da consagração episcopal exprime sucintamente esta obrigação: “É dever do bispo julgar, interpretar, consagrar, ordenar, oferecer o sacrifício, batizar e confirmar. Além disso, aqueles de nós que derivam suas ordens dos Arcebispos Lefebvre ou Thuc obviamente não têm título de cura animarum. Mas, como todos os outros sacerdotes, estamos igualmente vinculados pelo direito divino, pela caridade e pela ordenação, a prover os sacramentos aos fiéis que permanecem em grave necessidade comum.

II. Delegação legítima e missão apostólica

Adicionalmente, com respeito à legitimidade… “Toda a autoridade para dispensar os sacramentos tem origem na missão dada aos apóstolos” por meio dos mesmos mandatos divinos citados acima: batizar, absolver, celebrar a Missa, etc. (Billot, De Ecclesiae Sacramentis 1, 179). Isto é assim porque: “Ninguém dispensa legitimamente a propriedade de outrem, a menos que o faça com base numa ordem do outrem. Ora, os sacramentos são propriedade de Cristo. “Portanto, somente aqueles que têm uma missão da parte de Cristo – isto é, aqueles aos quais deriva a missão apostólica – os dispensam legitimamente” (Billot, ibid.). Aqueles a quem Nosso Senhor vinculou pelo direito divino de conferir os sacramentos recebem d’Ele, então, simultaneamente, a delegação legítima e a missão apostólica de conferir os sacramentos.

III. Direito eclesiástico

Embora alguns cânones do Código recordem expressamente os princípios do direito positivo divino (cf., por exemplo, Michels, Normae Generales Juris Canonici 1, 210 ss.), os cânones que prescrevem como a delegação legítima é conferida ou obtida para batizar, absolver, oferecer missa, etc., não são eles mesmos lei divina, mas somente lei humana. De acordo com os princípios gerais da lei, uma lei humana:

A. Cessa automática e positivamente quando sua observância se torna prejudicial (nociva). Para isso, confira as obras dos seguintes teólogos moralistas e canonistas Abbo-Hannon, Aertnys-Damen, Badii, Beste, Cappello, Cicognani, Cocchi, Coronata, Maroto, McHugh-Callan, Merkelbach, Michels, Noldin, Regatillo-Zalba, Vermeersch, Wernz-Vidal, etc., na bibliografia abaixo.

B. Cessa na “necessidade comum”, mesmo que a lei invalide um sacramento. Assim, por exemplo, um impedimento dirimente ao casamento que normalmente exigiria uma dispensa por parte de um oficial da Igreja com jurisdição ordinária deixaria de vincular “por necessidade comum”, quando o acesso a alguém com a autoridade requerida é impossível (Merkelbach 1, 353). Tal necessidade comum também ocorreria, por exemplo, “durante um período de perseguição ou turbulência em um determinado país.” Neste caso, “se o propósito da lei cessasse de uma maneira oposta à comunidade – isto é, se dela resultasse um prejuízo comum – a lei não seria vinculativa, pois seria considerada justamente suspensa, por causa da interpretação benigna da intenção do legislador” (Cappello 5, 199).

C. Não obriga quando em conflito com a lei divina. “Em um conflito de obrigações, a mais alta tem prioridade… A lei divina positiva tem prioridade sobre a legislação humana” (Jone, Moral Theology, 70). “A regra suprema na matéria é esta: a obrigação que prevalece é aquela que vem da lei que, considerando a sua natureza e propósito, é de maior importância… Os preceitos da lei divina positiva devem prevalecer sobre os preceitos da lei humana positiva” (Noldin, Summa Theologiae Moralis 1, 207).

IV. Aplicação

Em relação às referidas leis humanas eclesiásticas que proíbem os sacerdotes católicos tradicionais de administrar os sacramentos na situação atual:

A. Bem comum. A aplicação destas leis privaria os católicos dos sacramentos, impedindo assim diretamente o bem comum (bonum commune) que a Igreja persegue em todas as suas leis. O bem comum, diz o teólogo Merkelbach, é “a adoração de Deus e a santificação sobrenatural do homem” (Summa Theol. Mor. 1, 325: “Dei cultus et sanctificatio sobrenaturalis hominum…”).

B. Cessação. Tais leis eclesiásticas humanas tornar-se-iam, portanto, prejudiciais (nocivae) e, como tais, de acordo com os princípios gerais do direito estabelecidos pelos teólogos moralistas e canonistas, cessariam automaticamente (ver III. A). Isso inclui os cânones 953 e 2370, que de outra forma proibiriam a consagração de um bispo sem um mandato apostólico (o documento papal que autoriza a consagração), porque observá-los acabaria por privar os fiéis dos sacramentos cuja administração requer um ministro com ordens sagradas.

Isso também inclui o cânon 879.1, que rege a jurisdição para absolvição: “Para ouvir confissões válidas, a jurisdição deve ser expressamente concedida, seja oralmente ou por escrito. O moralista e canonista Prümmer caracteriza especificamente este cânon como “direito eclesiástico” (Manuale Theologiae Moralis 3, 407: “A jure eclesiástico statuitur, ut jurisdictionis concessio a) sit expressa sive verbis sive scripto…” (ênfase dou autor citado). Uma vez que o cânon é de direito eclesiástico e não de direito divino, a exigência de uma concessão expressa de jurisdição poderia, portanto, cessar por causa da “necessidade comum” (ver III.B), porque os católicos que estão em pecado mortal precisam de absolvição e porque os sacerdotes têm a obrigação de conferi-la. Nossa obrigação surgiria, como explica Santo Afonso, “da própria natureza do ofício sacerdotal, ao qual a instituição de Cristo associou este dever, e porque um sacerdote é obrigado a cumpri-lo quando a necessidade do povo o exige” (Aertnys-Damen 2, 26n. “…ex proprio Sacerdotis officio… quod Sacerdos exercere tenetur…” (ênfase do autor citado).

C. Obrigação prevalente. Em todo o caso, a grave obrigação de dispensar os sacramentos que o direito divino impõe aos sacerdotes católicos tradicionais por caridade e em virtude da sua ordenação tem precedência sobre as leis humanas eclesiásticas contra eles citadas (cf. III.C).

D. Delegação legítima e missão. apostólica. Simultaneamente, o mesmo direito divino confere necessariamente aos bispos e sacerdotes católicos tradicionais a delegação legítima ou missão apostólica para dispensar os sacramentos (ver II). Além disso, se fosse de outra forma, Deus imporia uma obrigação grave, bloqueando todos os meios moralmente lícitos de cumpri-la – quod impossibile.

V. Jurisdição para a Absolvição

No caso da delegação legítima para a confissão, o direito divino exige que, para a válida absolvição dos penitentes, o sacerdote possua também o poder de jurisdição, além do poder da ordem sagrada. Nenhum padre católico tradicional conhecido discute isso. A jurisdição é “um poder moral para governar súditos em coisas pertencentes ao seu fim sobrenatural” (Merkelbach 3, 569). Como mencionado acima, a jurisdição é ordinária (adjunta a um oficio) ou delegada (concedida a uma pessoa por direito ou por um superior). Ela é exercida no foro externo (a Igreja como sociedade) ou no foro interno (o indivíduo diante de Deus – que geralmente se refere à confissão). A jurisdição que os sacerdotes católicos tradicionais possuem é-nos delegada pelo próprio Cristo em virtude do direito divino e é exercida no foro interno porque:

A. O Canon 879 cessa. O direito eclesiástico (cân. 879), que exige que a jurisdição para as confissões seja expressamente concedida por escrito ou oralmente, cessou (cf. IV. B).

B. O Direito Divino provê a jurisdição. A lei divina pela qual Cristo concede jurisdição àqueles que estão ordenados a perdoar os pecados (ao contrário do poder sacramental para fazê-lo) está baseada em João 20, 21: “Assim como o Pai me enviou, assim eu vos envio” (Merkelbach 3:574). Esta lei divina permanece sempre, junto com a jurisdição de Cristo necessária para cumpri-la. É óbvio, diz o teólogo Herrmann, “que este poder das chaves durará para sempre na Igreja. Porque, como Cristo quis que a Igreja durasse até ao fim do mundo, Ele também lhe deu os meios sem os quais ela não poderia alcançar o seu fim, a salvação das almas” (Institutiones Theologiae Dogmaticae 2, 1743; grifo meu).

Certamente, a Igreja de Cristo deve suprir a jurisdição para a absolvição em circunstâncias extraordinárias: “A Igreja, pelo seu propósito especial, deve provê-la para a salvação das almas e assim ela está, pois, obrigada a prover tudo o que dependa de seu poder” (Cappello 2, 349; grifo meu).

Pois, como diz o Cardeal Billot, embora a lei eclesiástica esteja mais voltada para atar do que desatar, e a lei divina esteja mais voltada a desatar do que atar, em última análise, “a jurisdição instrumental da Igreja está voltada para desatar – de fato, a desatar os laços que não dependem da lei eclesiástica, mas da lei divina” (Tractatus de Ecclesia Christi 1, 476; grifo meu).

C. Deus exerce a autoridade. Nossa jurisdição delegada para o foro interno “não é um poder eclesiástico, mas um poder divino concedido pela própria autoridade de Deus (o único que pode tocar diretamente a consciência e o vínculo do pecado). No entanto, ela opera através do Papa como ministro e instrumento da divindade e portanto não pela autoridade própria à Igreja, mas sim por Deus exercendo a sua própria autoridade” (Merkelbach 3, 569; ênfase minha).

Resumindo o sobredito:

  • O direito divino obriga os sacerdotes e bispos católicos tradicionais a administrarem os sacramentos aos fiéis (cf. I).
  • O mesmo direito divino confere-lhes também delegação legítima e missão apostólica para o seu apostolado (cf. II).
  • As leis eclesiásticas (canônicas), cuja aplicação impedem o cumprimento da lei divina, cessaram por serem agora prejudiciais (nocivae) (cf. III e IV).
  • Isso inclui o cânon 879, que requer uma concessão expressa de jurisdição para a validade da absolvição (cf. III. B e IV. B).
  • Em vez disso, o direito divino delega diretamente a jurisdição no foro interno aos sacerdotes católicos tradicionais para a absolvição que eles transmitem (cfr. V).

Apresso-me a acrescentar que nada disso justifica que se ignorem as muitas outras disposições da lei eclesiástica que regulam a administração e a recepção dos sacramentos, especialmente as que proíbem a administração das ordens sagradas aos ignorantes e aos ineptos. O próprio Cristo ordena aos seus sacerdotes que entreguem os seus sacramentos ao seu rebanho. Uma vez que os pastores com jurisdição para a cura animarum desertaram todos para a religião modernista, a obrigação deles agora recai sobre nós, os poucos sacerdotes fiéis remanescentes.

Nós conferimos os sacramentos de Cristo, porque Ele fez disso o nosso dever.

(Julho de 2003.)

BIBLIOGRAFIA
Abbo, J & J. Hannon. The Sacred Canons. St. Louis, Herder 1957. 2 vols.
Aertnys, I. & C. Damen. Theologia Moralis. 17a ed. Roma, Marietti 1958.
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Beste, U. Introductio In Codicem. CollegevilleMN, St. John’s 1946.
Billot, L. (Cardinal). De Ecclesiae Sacramentis. Roma, 1931. 2 vols.
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Cappello, F. Institutiones Iuris Canonici. 5a ed. Santander, Sal Terrae, 1956. 2 vols.
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Cocchi, G. Commentarium in Codicem Iuris Canonici. 6a ed. Roma, Marietti 1938. 8 vols.
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Coronata, M. De Sacramentis. Tractatus Canonicus. Turín, Marietti 1943. 3 vols.
Institutiones Juris Canonici. 4a ed. Turín, Marietti 1950. 3 vols.
Herrmann, P. Institutiones Theologiae Dogmaticae. Roma, Della Pace 1908. 2 vol.
Hervé. J. Manuale Theologiae Dogmaticae. París, Berche 1932. 4 vols.
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McHugh, J. & C. Callan. Moral Theology. New York, Wagner 1929.
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Noldin, H. & A. Schmitt. Summa Theologiae Moralis. Innsbruck, Rauch 1940. 3 vols
Prümmer, D. Manuale Theologiae Moralis. 10a ed. Barcelona, Herder 1946. 3 vols.
Regatillo, E. & M. Zalba. Theologiae Moralis Summa. Madrid, BAC 1954. 3 vols.
Vermeersch, A & I. Creusen. Epitome Iuris Canonci. 7a ed. Roma, Dessain 1949. 3 vols.
Wernz, F. & P. Vidal. Ius Canonicum. Roma, Gregoriana 1934. 8 vols.

É oficial. Em novembro, Monsenhor Dolan vem ao Brasil em visita pastoral

É oficial. Em novembro do corrente ano, Monsenhor Daniel Dolan vem ao Brasil em visita pastoral ao Seminário São José.

Já está tudo confirmado. Monsenhor Daniel Dolan ficará no Brasil do dia 7 a 12 de novembro. O que lhe traz pela segunda vez à Terra da Santa Cruz é principalmente a ordenação ao subdiaconato de Frei Pedro Maria OFM, cuja profissão solene dos votos religiosos realizou-se nesta última sexta-feira, dia 4, na festa de São Francisco de Assis (fotos exclusivas em breve).

O bispo católico, mundialmente conhecido por sua adesão sem compromissos à posição sedevacantista, também fará a tonsura dos demais candidatos ao sacerdócio do Seminário São José, assim como administrará o Sacramento da Confirmação aos fiéis. Para inscrever-se e obter mais informações sobre o evento, entre em contato pelo número +55 22 98173-7253 ou +55 47 99101-3580 (whatsapp).

Os montes de Gelboé

Os Montes de Gelboé

Por Sua Excelência Reverendíssima Dom Donald J. Sanborn

Um dos primeiros seminaristas de Monsenhor Lefebvre lamenta a queda de sua Fraternidade

(Sacerdotium, nº. 12, verão de 1994)

No final do Primeiro Livro dos Reis, pode-se ler a terrível derrota do exército israelita após uma batalha desesperada contra os filisteus. Seu rei Saul tinha sido distraído por uma obsessão de longa data, matar a Davi, e isso pela simples e única razão de que este o tinha superado no combate. Surpreendido, o exército israelita foi massacrado; Saul, mortalmente ferido, comete suicídio deixando-se cair sobre sua espada. Tudo isso aconteceu nas montanhas de Gelboé. Então os filisteus lutaram contra Israel; e os homens de Israel fugiram dos filisteus e caíram mortos nas montanhas de Gelboé (I Reis XXXI, 19).

Davi, que não havia participado da batalha, estava imerso em tristeza. Chorou por Saul, seu perseguidor, porque era também seu rei. Chorou por Jônatas, seu melhor amigo. Chorou pelos valentes homens de Israel, caídos na montanha. Os ilustres, ó Israel, foram mortos nas suas montanhas. Como caíram os fortes? (II Reis I, 19).

O compositor George Frideric Handel fez uma tocante música dessa cena dramática do Antigo Testamento em seu oratorio chamado Saul. Estas palavras, com acentos sombrios de um hino fúnebre, lamentam a perda da brava juventude de Israel:

Lamenta Israel, chora a beleza perdida
A flor de vossa mocidade em Gelboé ferida!
Vossa mais bela esperança desaparecida!
Que pilha de fortes soldados na planície caída!

A cada ano, em junho e julho, o padre, ao ler seu breviário, recita várias vezes o lamento de Davi pelos acontecimentos de Gelboé:

Montes Gelboe, nec ros nec pluvia veniant
super vos, ubi ceciderunt fortes Israel.

(Montes de Gelboé, que a chuva ou o orvalho não caia
sobre ti, onde os bravos de Israel caíram)

Onde caíram os valentes de Israel

Quando se considera que Israel no Antigo Testamento é a prefiguração da Igreja Católica no Novo, e que os filisteus, inimigos de longa data dos israelitas, são uma prefiguração dos inimigos da Igreja, é difícil não fazer a comparação com o nosso próprio tempo.

A Igreja nunca foi tão encurralada por seus inimigos; nunca com tanto sucesso. Nunca antes a Igreja travou uma batalha tão decisiva contra seus inimigos. São verdadeiramente para ela o momento de Gelboé.

A batalha é feroz. Os filisteus são naturalmente os modernistas, os israelitas são os católicos fiéis à sua santa Fé. Assim como os filisteus se reuniram com uma força terrível para vingar a humilhação sofrida na morte de Golias; em nosso tempo, são os modernistas, humilhados sob o reinado de São Pio X, que assaltam a Igreja com novo vigor enquanto os bravos de Israel – os fiéis católicos – caem pouco a pouco, massacrados nessa batalha sombria.

A formação de um grande exército

Um domingo de novembro de 1964, quando retornava da missa dominical, lembro-me de ter me sentido seriamente decepcionado. Foi o primeiro domingo do Advento e as primeiras mudanças operadas por Paulo VI foram introduzidas na missa. Não havia mais orações ao pé do altar, nem último Evangelho. A missa dialogada foi introduzida e alguns hinos com letras protestantes ressoaram em nossos ouvidos. Embora inofensivas comparadas aos padrões atuais de aberração litúrgica; eu no entanto percebia, instintivamente, que alguma coisa de muito errado se passava na Igreja Católica. Apesar dos meus quatorze anos, sentia que a religião protestante havia se infiltrado na Igreja Católica.

Minha vida nunca mais seria a mesma. A impressão interior provocada em mim pelas mudanças só piorou com o tempo. As mudanças aconteceram uma após a outra; A Igreja – ou o que parecia ser – ficava cada vez mais protestantizada.

Em 1967, entrei no seminário diocesano para continuar meus estudos universitários. Ingenuamente pensava que o seminário seria um paraíso de ortodoxia e conservadorismo, comparado à paróquia liberal. De fato, com grande tristeza, descobri desde o primeiro dia que era o contrário. Lembro-me de estar horrorizado ao ouvir os seminaristas mais antigos reivindicando o casamento para os padres, entre outras mudanças liberais.

Em 1970, entendi que nunca seria capaz de cumprir uma função no contexto do Vaticano II, de sua religião do futuro. Percebi o que a religião do Novus Ordo se tornaria, exatamente o que ela é agora. Os seminaristas liberais daquela época são agora padres ou bispos, e ainda há mais por vir da parte deles.

Com alguns outros seminaristas, partimos em busca de dioceses mais conservadoras. Naquela época, tudo o que queríamos ou esperávamos era um certo conservadorismo, um pequeno refúgio para resistir à tempestade do liberalismo.

Quase todos os conservadores pensavam que a tempestade passaria logo, a partir do momento em que o Santo Padre, Paulo VI na época, descobrisse a trama dos malvados liberais e os punisse. Todos nós pensávamos que: o Santo Padre ignorava tudo o que acontecia, eis a razão do liberalismo. Todo ano o seminário se tornava mais liberal, e todos os anos eu dizia: “No ano que vem, isso acabará.” Isso nunca aconteceu.

Na cabeça de todo conservador estava sempre a ideia implícita de que os liberais eram verdadeiros católicos, mas que se deixavam enganar. Uma vez que vissem que as mudanças não vingavam, voltariam atrás.

Foi no decorrer daqueles anos que, com outros seminaristas, começamos a frequentar a Fordham University, no Bronx, para ouvir as palestras do Dr. Von Hildebrand sobre as mudanças. Ele foi apresentado pelo Dr. William Marra, hoje bem conhecido. Além disso, liA a revista Triumph e todas as publicações tradicionais ou conservadoras que chegavam às minhas mãos.

Mas não consegui nada. Tudo ia de mal a pior.

Finalmente, no final dos anos 1970, um dos meus colegas seminaristas teve a idéia de escrever para o The Voice, um jornal tradicional publicado no norte do condado de Nova York, para perguntar se alguém tinha ouvido falar da existência de um seminário tradicional em algum lugar do mundo.  A carta foi publicada. Um sacerdote, Padre Ramsey, respondeu. Disse-nos que não sabia de nada viável nos Estados Unidos, mas ouvira falar de um pequeno seminário, recém-fundado na Suíça, por um arcebispo francês. Além disso, este arcebispo viria aos Estados Unidos na próxima primavera.

Evidentemente interessado, escrevi ao arcebispo e rapidamente recebi uma resposta amável. Chegaria em março e ficaria feliz em receber a mim, assim como aos outros seminaristas interessados. Este encontro com o Bispo Lefebvre ocorreu em Nova York na segunda-feira, 15 de março de 1971. Mais uma vez, minha vida nunca mais seria a mesma.

A conversa com o Bispo Lefebvre continha em germe todas as virtudes e todos os problemas que fariam parte do movimento tradicionalista no futuro.

Sua Excelência estava a caminho de Covington, Kentucky, onde conheceria outro membro da Congregação do Espírito Santo, o Bispo de Covington.

O Arcebispo inicia a conversa mostrando-nos a aprovação que obteve da Diocese de Friburgo para a Fraternidade. Ficou claro, portanto, que ele pretendia trabalhar dentro da estrutura do Novus Ordo. Na época, nenhum de nós teria pensado em fazer o contrário, estávamos apenas procurando por um refúgio, um lugar onde pudéssemos ser católicos e cuidar de nossos próprios assuntos.

Mas durante a conversa, Monsenhor Lefebvre explicava que era necessário manter a missa exclusivamente em latim, que era a missa em uso em seu seminário. Embora feliz com a idéia de redescobrir a missa tradicional em latim, já que eu detestava a Missa Nova, a ideia de preservar a Missa Tradicional me preocupava. Considerando que Paulo VI era o Papa, o que todos pensávamos na época, como ele poderia resistir-lhe nesse ponto? Lembro que um dos seminaristas fez essa objeção. O Arcebispo deu uma resposta vaga sobre sua legalidade e insistiu na necessidade de preservar a Missa tradicional para salvaguardar a Fé. Evidentemente, ele estava certo, mas a questão da legalidade permanecia desconcertante e perturbadora.

Essa conversa prefigurou todos os eventos que se seguiriam. O desejo de colaborar com o Novus Ordo iria finalmente entrar em conflito com a resolução de manter a Missa Tradicional e a Fé Católica em geral. O Arcebispo, e com ele a Fraternidade, iria passar vinte e cinco anos de agonia, tentando casar dois elementos contraditórios: o Novus Ordo e a Fé Católica. E como o Novus Ordo é promulgado pelo “papa”, o Arcebispo e a Fraternidade buscarão um caminho intermediário impossível, entre reconhecer nele a autoridade de Cristo e resistir nele à autoridade de Cristo.

Estas duas tendências contraditórias do bispo Lefebvre, trabalhar com o Novus Ordo por um lado, e, por outro, preservar a Fé Católica estará na origem das duas tendências nascidas em Ecône: a linha dos brandos, liberais, que pretendiam comprometer a fé católica a fim de obter a aprovação do Novus Ordo; e a linha dura, que preferia abandonar toda esperança de aprovação do Novus Ordo antes de comprometer a Fé.

Como eu disse, há dez anos, em um artigo intitulado The Crux of the Matter, o Monsenhor deu esperanças às duas facções. Alguns atos e declarações eram bem brandos, outros atos e declarações eram bem linha dura. O resultado foi que cada uma lado podia arrogar-se intérprete das ideias e do espírito do Monsenhor.

Na verdade, este seguia um caminho que não era nem de uma e nem de outra parte. O método que preconizava para resolver a crise da Igreja consistia em preparar um grande exército de sacerdotes tradicionalistas que seriam enviados a todos os lugares para rezar a Missa; pela missa e pelo apostolado, atrairiam os católicos. O Novus Ordo pereceria por falta de vocações, pensaa ele, e rapidamente o Vaticano e os bispos deveriam capitular diante do fato de que os únicos padres restantes seriam tradicionalistas. De bom ou mau grado, teriam que retornar à Tradição. Além disso, Monsenhor pensava ser absolutamente necessário preservar a doutrina, a liturgia e a prática católicas, portanto, resistir à autoridade do Novus Ordo, ou seja, em particular de Paulo VI.

Dessa dupla afirmação nasceu a única solução possível: o filtro. Reconhecer a autoridade do Novus Ordo como autoridade católica, mas filtrando suas doutrinas, suas leis e sua liturgia, para ficar com o que é católico e rejeitar o que não o é

Além disso, Monsenhor Lefebvre procurou formar seminaristas que aceitassem essa solução e, com base nela, tivessem a Fraternidade – isto é, ele – como autoridade para desempenhar esse papel de “filtro”. Foi assim que nasceu o “culto a Monsenhor”. Incapazes de resolver o problema da autoridade, os seminaristas consideravam Monsenhor Lefebvre como o porta-voz especial de Deus nessa crise. Roma não era mais um problema desde que Monsenhor estivesse lá para interpretar o pensamento e nos conduzir entre os vários obstáculos modernistas que surgiam.

De 1970 a 1975, essas três correntes, a linha dura, a linha branda e a linha do Monsenhor, desenvolveram-se paralelamente e tiveram apenas choques esporádicos de baixa escala. Os “duros” manifestavam abertamente suas opiniões sedevacantistas sobre Paulo VI. Eles não viam mais a necessidade de esconder seu alinhamento com o Breviário e as rubricas de São Pio X, e os seminaristas podiam ser vistos em todos os lugares com esses breviários em todo o seminário.

Em sala de aula, os linha dura discutiam com professores de tendência modernista; um certo bispo britânico, hoje bem conhecido, liderava as tropas. A ala branda defendia os professores e assediava a dura. Monsenhor Lefebvre geralmente ficava de fora.

Em 1974, o Vaticano decidiu realizar uma investigação sobre Ecône e enviou visitantes para interrogar professores e seminaristas. Prevendo que o relatório seria mal recebido, Monsenhor Lefebvre faz sua famosa Declaração, que deixou muito felizes os duros e foi um golpe para os brandos. Um ano depois, em maio de 1975, Paulo VI aboliu a Fraternidade. Monsenhor Lefebvre decide resistir e mantém aberto seu seminário em Ecône. Os duros exultaram, cheios de entusiasmo por essa nova guerra aberta contra o modernismo, particularmente localizado no Vaticano. Estes não levaram em conta a supressão, considerando os atos de Paulo VI nulos, sem efeito.

Para os brandos, foi a tempestade. Muitos deixaram Ecône. Aqueles da linha de Monsenhor continuaram a segui-lo lealmente.

Os eventos de 1975 a 1978 prenunciavam o triunfo do duros. Monsenhor parecia abandonar toda esperança, e até mesmo todo desejo, de se reconciliar com o modernista Montini. Ele falava da igreja do Vaticano II como “uma igreja cismática” e da Nova Missa como uma “missa bastarda”. Naquela época, parecia que a dicotomia de Monsenhor Lefebvre nos anos anteriores seria resolvida pela decisão lógica e coerente de continuar a guerra contra o Novus Ordo. A Fraternidade teria sido o grande exército da Igreja Católica diante de seus inimigos modernistas, os filisteus dentro dos muros, principalmente dentro dos muros do Vaticano. Ela teria atraído as vocações de todo o mundo, ela as teria formado de acordo com o espírito da Igreja Católica, antimodernista, para enviá-las mais tarde aos campos de batalha de todos os pontos da terra. O futuro se anunciava brilhante, certo, glorioso.

Foi então que a 6 de agosto de 1978, Paulo VI fez algo que deixaria muitas pessoas felizes: Ele parou de viver.

João Paulo II: O Abraço de Urso

Passaram-se os poucos dias concedidos a Luciani e foi eleito o atual [este artigo é de 1994.], e aparentemente imortal, Wojtyla, em outubro de 1978, como o terceiro “papa” do Vaticano II. Monsenhor queria ver o novo “papa”. A reunião aconteceu logo depois da eleição de Wojtyla. No decorrer dessa conversa histórica, Wojtyla declara a Monsenhor Lefebvre que poderia viver “aceitando o Concílio à luz da Tradição”, uma fórmula que Monsenhor sempre usou em sua velha tentativa de coexistir com o Novus Ordo. Isso significava: Para Lefebvre, isso significava filtrar o Concílio para reter apenas o que era católico; para Wojtyla, significava outra cor no espectro modernista de ideias. Para Monsenhor Lefebvre, era renovação das esperanças, alimentadas durante o pontificado de Paulo VI, de receber a aprovação da parte do Novus Ordo; para Wojtyla, era o meio de integrar os tradicionalistas em uma High Church. Para o bispo Lefebvre, era a esperança de obter uma capela lateral tradicionalista dentro da catedral modernista; para Wojtyla. também.

Conjugada a essa esperança de reconciliação, Wojtyla dá um abraço de urso em Monsenhor. A guerra acabou.

Pelo menos aquela. Depois dessa entrevista, só restava ao Monsenhor  uma coisa a fazer: transformar a linha dura de sua Fraternidade, organizada em ordem de batalha, em um instrumento de compromisso pleno de flexibilidade. O diálogo deveria ser a ordem do dia para os próximos anos, e ele precisava de um clero que trabalhasse, não com espada, mas de caneta na mão para a assinatura de um pacto de paz com os sabotadores do catolicismo.

Seguiu-se um reino de terror dentro da Fraternidade. Convencido de que, a partir de agora,  teria que preparar um exército de diálogo e pessoas dispostas a concluir sua longa busca pela aprovação do Vaticano modernista, Monsenhor entendeu que precisaria ou converter ou eliminar a oposição, coisa que fez com uma decisão implacável e, mais ainda, cruel. O sedevacantismo foi banido. Era necessário reconhecer que João Paulo II era um papa ou viver no exílio e na pobreza.

Com grande alegria dos brandos, cada duro da Fraternidade foi sistematicamente derrubado, ou pela conversão obtida por pressões, ou por expulsão. É com a expulsão de quatro padres italianos que o procedimento termina, em 1986, e nenhum daqueles que considerava Wojtyla como o inimigo permanecerá na Fraternidade. Desde então, o caminho tem sido aberto para um compromisso que permite a coexistência, a capela lateral na catedral modernista do ecumenismo.

Apesar do revés do Encontro de de Assis e outros crimes ultrajantes de Wojtyla, as negociações com o inimigo seguiram seu curso, até o fatídico dia do Protocolo:  5 de maio de 1988, festa de São Pio V – que coincidência!

Após meses de negociações com Ratzinger, um documento, considerado preparatório antes do último acordo definitivo mais formal, foi apresentado à firma de Monsenhor Lefebvre. Nesse protocolo fatídico, como é chamado, Monsenhor Lefebvre:

1) Prometia fidelidade a João Paulo II e ao corpo dos bispos Novus Ordo.

2) Concordava em aceitar o capítulo 25 da Lumen Gentium, reconhecendo assim o Vaticano II como o ensinamento da Igreja Católica, sem qualquer reserva.

3) Aceitava o diálogo com o Vaticano sobre os pontos discutidos do Vaticano II, a nova liturgia, os problemas disciplinares, “evitando toda controvérsia”, ou seja, abandonando a denúncia pública de erro.

4) Reconhecia a validade da nova missa e dos novos sacramentos como foram promulgados por Paulo VI e João Paulo II em suas edições oficiais, o que implica que são ritos católicos promulgados pela Igreja, e, portanto, não podem ser inválidos.

5) Reconhecia o Código de Direito Canônico, que por sua própria boca declarara cheio de erros, para não dizer de heresias.

Em retorno, Ratzinger concedia à Fraternidade um lugar no que Monsenhor Lefebvre sempre chamou de “a igreja conciliar”. Além disso, ele concordava em sugerir ao “Santo Padre” que nomeasse um bispo eleito dentre os membros da Fraternidade. Além disso, o Vaticano também aceitava criar uma “Comissão de Tradição” para ajudar a salvaguardar as práticas tradicionais.

No dia seguinte, 6 de maio, Monsenhor Lefebvre violou o acordo recém-aceito, dizendo a Ratzinger que se o “papa” não nomeasse um bispo e não preparasse o Mandado Apostólico (permissão para consagrar) em meados de junho, ele continuaria sem esperar mais para a cerimônia. Ele apresentou como razão o fato de que deixar o evento para mais tarde causaria um sentimento de desilusão entre os tradicionalistas. Além disso, acrescentou, “hotéis, meios de transporte, grandes empresas para montar a cerimônia, já tinham sido alugadas.”

Ratzinger e Monsenhor se reuniram em 24 de maio. Ratzinger assegurou a Monsenhor que o “Santo Padre” elegeria um bispo da Fraternidade, que aprovaria uma consagração feita em 15 de agosto, apenas quarenta e cinco dias depois do tão desejado 30 de junho. Monsenhor respondeu com duas cartas, uma para Ratzinger e outra para Wojtyla; ele insistiu no número de três para os bispos, na data de 30 de junho para a consagração, e pediu que a “Comissão para a Tradição” fosse a maioria dos membros da Fraternidade.

Ratzinger respondeu no dia 30 de maio insistindo nos termos do Protocolo de 5 de maio, e na submissão do arcebispo ao “Papa” no que se refere à consagração. Em 2 de junho, Monsenhor respondeu denunciando o espírito do Vaticano II e anunciou a Ratzinger que pretendia prosseguir com a consagração em 30 de junho, sob a “permissão” concedida por Roma para o dia 15 de agosto.

As deturpações continuaram. Em 15 de junho, Monsenhor Lefebvre ofereceu uma coletiva de imprensa, na qual declarou que João Paulo II não era católico, que havia sido excomungado, que estava fora da Igreja, mas que era, no entanto, o chefe da Igreja. No dia 16, ele disse a um jornalista que mudaria de idéia se João Paulo II – que não era católico ontem – aprovasse seus quatro bispos.

Em 30 de junho, Monsenhor Lefebvre consagrou seus quatro bispos. Em 2 de julho, João Paulo II excomungou-os, bem como todos aqueles que os seguiram.

Os dois lados do Arcebispo

O desenvolvimento dessas negociações com o Vaticano modernista mostrou claramente que existiam em Monsenhor Lefebvre dois aspectos opostos, cada um capaz de ditar sua própria teoria diferente e contraditória, bem como seu próprio modo de ação.

Por um lado, havia a fé do Monsenhor. Eu o conheci por muitos anos, posso atestar o fato de que ele era profundamente católico, antiliberal, antimodernista. Ele detestou as mudanças do Vaticano II e, como todos nós, queria o retorno da Fé Católica.

Por outro lado, havia a diplomacia do Arcebispo. Ele acreditava firmemente e, bem inclinado a essa arte por ter sido um Delegado Apostólico, achou que pudesse resolver os problemas da Igreja por meio da diplomacia.

Livre de considerações diplomáticas, sua fé brilhava inflamada por sua grandeza de alma. As declarações que fez nesses momentos de humor não-diplomático e sem cálculo foram excelentes. Eram exatamente o que a Igreja precisava: uma simples declaração de verdade sem ambigüidade, uma denúncia direta dos modernistas, um forte programa de ação positiva contra eles através da formação e ordenação de padres tradicionais. É neste último aspecto que reside toda a grandeza do Monsenhor Lefebvre.

Pelo contrário, quando a diplomacia ditava seus pensamentos e ações, ele parecia uma pessoa completamente diferente. Pronto para fazer capitulações vergonhosas para alcançar seu objetivo, ele oferecia afirmações ambíguas aos modernistas em uma bandeja, esperando que eles concordassem em dar-lhe um lugar à mesa modernista. Por exemplo, apesar de não querer saber da missa nova, ele aparentemente aceitou permitir a celebração de uma missa nova na vasta igreja parisiense de Saint-Nicolas-du-Chardonnet:

“O Cardeal (Ratzinger) deixou-nos saber que seria necessário autorizar a celebração de uma Missa Nova em Saint-Nicolas-du-Chardonnet. Ele insiste na existência de uma única Igreja, a do Vaticano II. Apesar dessas decepções, assino o protocolo de 5 de maio.” (Dossier on Episcopal Consecration, Ecône, 1988, p. 4).

Sob a influência da diplomacia, sua coragem habitual transformava-se em uma fraqueza indescritível, temerosa dos inimigos da Igreja. Assim, em 1974, dizendo que sua brilhante declaração era uma gafe diplomática, apresentou uma desculpa ao cardeal Seper, uma desculpa indigna de sua fé e sua força, dizendo que foi composta em um momento de indignação.

Para Ratzinger, na tentativa de conseguir que o Vaticano aprovasse as esperadas consagrações, Monsenhor argumenta que as “tendas já estavam alugadas”, como se as consagrações não passassem de uma festa de casamento.

Ele realmente achava que o Vaticano se deixaria levar pela história das tendas? Ele realmente achava que o inconveniente de cancelá-las tinha algo a ver com o assunto em questão? Claro que não. Na verdade, Monsenhor sabia em seu coração que João Paulo II não era mais Papa do que você ou eu, suas relações com ele não eram a tradução de um espírito de submissão à sua “autoridade”, mas sim uma tentativa de obter de Wojtyla o que Wojtyla poderia lhe dar: uma aparência de legitimidade.

A prova está na posição que expressa aos quatro bispos em 28 de agosto de 1987, pouco antes de começar o longo processo de negociações finais: “A Cátedra de Pedro”, escreve ele, “e as posições de autoridade em Roma são ocupadas por anticristos” (Ibid., p.1). Alguém poderia se perguntar: “Como poderia Monsenhor Lefebvre honestamente entrar em negociações com esses anticristos, esforçando-se para obter reconhecimento deles, a fim de trabalhar em conjunto com eles?”. “Como poderia chamar de Vigário de Cristo quem ele mesmo condenava como anticristo?”

Como dois discos com registros diferentes que giram ao mesmo tempo, os dois aspectos de Monsenhor Lefebvre, o da fé e o da diplomacia, podiam se manifestar simultaneamente, às vezes no mesmo dia, em suas declarações, em suas tomadas de posição e em seus atos.

Um exército que luta pela coexistência com os hereges

Muitas vezes se ouve dizer que, se não houvesse Monsenhor Lefebvre, não haveria movimento tradicionalista, nem padres, nem missas tradicionais, nada.

Esta afirmação é em grande parte verdadeira. Deve-se a Monsenhor Lefebvre o crédito de ter concebido a ideia de um grande exército de padres espalhados pelo mundo, para trabalhar de maneira coerente e unificada contra o clero modernista. É ele que tem o mérito de ter arranjado um sistema para alcançar este objetivo, com a fundação de seminários, o estabelecimento de numerosas casas religiosas, escolas, conventos e noviciados. É também ele quem tem o mérito de ter formado um exército bem equipado, pelo menos no nível material e organizacional.

Graças a esse feito material e organizacional, bem como ao carisma que atraia tantas pessoas para ele, arrematou quase todas as vocações para o sacerdócio daqueles que resistiram às mudanças. A criação de Ecône, em 1970, foi o chamado das tropas da Igreja para a última batalha contra o poder das trevas, contra as portas do inferno. Muitos responderam ao chamado e continuam a responder. É a juventude escolhida de Israel, na feroz batalha contra os filisteus.

Porém, como na batalha nas montanhas de Gelboé, nossa elite de jovens está sendo massacrada e o exército está perdendo para os filisteus.

Pois enquanto o exército de sacerdotes que resistem ao modernismo não entende que os filisteus são o inimigo, este será aniquilado.

De fato, se é Monsenhor Lefebvre que tem o mérito de ter armado e equipado este exército de sacerdotes, é igualmente dele a responsabilidade por ter levado esses sacerdotes – assim como os simples leigos que os assistem – à armadilha do grande inimigo. Essa armadilha consiste em subornar a resistência ao modernismo, fazendo-a passar por um ramo tradicionalista da religião modernista, uma High CHurch, seguindo o modelo do ramo conservador do anglicanismo.

Essa armadilha, essa “solução” do problema do Vaticano II e suas reformas, serve perfeitamente aos propósitos do modernismo. Como a aranha em sua teia, este capta virtualmente no interior de sua religião reformada – e herética – qualquer resistência que pudesse ser oposta pelo catolicismo. Ela a captura, impõe as regras, prende-a e desviriliza-a. A Igreja “Católica” então apareceria aos olhos de todo o mundo semelhante à Igreja Anglicana, uma igreja na qual a adesão à Fé Católica seria reduzida à pompa litúrgica, e onde “a crença católica” estaria em comunhão com a heresia. Tal sistema reduz a Igreja Católica a uma seita, pois ela não pode emprestar o nome de católico aos hereges modernistas e, ao mesmo tempo, chamar-se a verdadeira Igreja de Cristo.

No entanto, os lefebvristas veem como a solução dos problemas da Igreja: a coexistência dos modernistas com os católicos na mesma Igreja, em cujo seio eles teriam suas igrejas e nós as nossas, todas sob o mesmo papa, que seria o Santo Padre de hereges e católicos.

Essa atitude não vem de Deus. Nunca na história do Antigo ou do Novo Testamento, Deus fez compromissos com seus inimigos. Ele nunca permitiu a mistura de falsas religiões com Sua Doutrina Sagrada. De fato, foi precisamente por essa razão que, procurando sempre misturar sua fé divinamente revelada com as religiões pagãs dos povos vizinhos, que no Antigo Testamento o povo judeu era continuamente castigado.

Não, ou o Vaticano II vem de Deus ou não vem de Deus. Ou as mudanças trazidas por este Concílio vêm do Espírito Santo, ou elas não vêm do Espírito Santo. Se vêm do Espírito Santo, devem ser aceitas e nossa resistência é pecado. Se não vêm do Espírito Santo, vêm do diabo e, nesse caso, há apenas uma resposta da Igreja e esta é anátema, mil vezes anátema e excomunhão de todos os hereges. Nenhuma coexistência com heresia e hereges. Exigir tal coexistência é reduzir a Igreja a uma seita, como a dos protestantes.

A resistência que opomos ao Vaticano II e suas mudanças não têm por fim a obtenção de uma capela lateral tradicional dentro da grande catedral modernista. Não, nossa voz se eleva para rejeitar e denunciar a heresia, é a voz da Fé contra esses hereges que invadiram nossos edifícios sagrados e os preencheram com a abominação herética.

Monsenhor Lefebvre forneceu a seus sacerdotes tudo, exceto uma teologia adequada para distinguir os inimigos da Igreja; ele formou um exército que não sabe onde está o inimigo. Seu exército luta pelo “reconhecimento” das “autoridades” modernistas. Eles procuram ser absorvidos pelos filisteus em vez de derrotá-los. Eles querem trabalhar com o modernismo dentro do Vaticano e não expulsá-lo. Sua batalha é pela coexistência com os modernistas, uma batalha para compartilhar compartilhar a mesma Igreja com os hereges.

O espírito de “negociação com Roma” continua a penetrar na Fraternidade. O próprio termo soa cismático, uma vez que católicos não negociam com Roma, mas a ela se submetem. Pouco depois das consagrações de 1988, Monsenhor Lefebvre declarou que as negociações continuariam e que previa que em cinco anos tudo estaria resolvido. Recentemente [artigo de 1994] também ouvimos falar de novas negociações, novamente com Wojtyla. A encíclica de Wojtyla, Veritatis Splendor, foi elogiada pelo então Reitor de Ecône (!), que a descreveu como “antiliberal, antiecumênica, anticolegial”, “não precisando de nenhuma revisão”.

A raiz do problema

A razão pela qual a Fraternidade continua o caminho da negociação com os modernistas com o objetivo final de ser absorvida por eles, é que considera que Wotjyla detém a autoridade papal. Eles sentem a necessidade de se submeter a ele, de ser reconhecidos por ele para estar sujeitos a Cristo, para ser reconhecidos por Cristo. Pois a autoridade papal é a autoridade de Cristo.

No entanto, ao mesmo tempo, a Fraternidade olha para quase tudo o que Wojtyla diz ou faz como herético, errôneo, escandaloso ou perigoso para as almas. Eles dizem abertamente que um católico não pode sobreviver espiritualmente no Novus Ordo. Quer dizer, que a Missa e os Sacramentos, a doutrina e a disciplina que nos foram oficialmente dadas pelo Papa (Papa aos seus olhos) são tão prejudiciais para as almas que são causa de morte espiritual.

Diante desse perigo de morte espiritual para as almas, a Fraternidade considera que tem carta branca para continuar todo o apostolado que quiser em qualquer diocese do mundo. Ao mesmo tempo, continua as negociações com o agente da morte espiritual, esperando poder trabalhar lado a lado com ele nas dioceses, como faz a Fraternidade São Pedro.

Se a Fraternidade abandonasse essa posição impossível – que é tal e qual a posição dos donatistas, jansenistas, galicanos e veterocatólicos -, e adotasse a posição católica, então ela se tornaria o verdadeiro e valente exército de resistência que ela foi feita para ser.

Sua posição é impossível, porque, na sua maneira de ver, eles lutam contra a verdadeira Igreja Católica da qual eles querem fazer parte. Mas os católicos não lutam contra a Igreja, mas se submetem a ela, pois ela é indefectível e infalível. Ela é a Igreja de Cristo e sua autoridade é a autoridade de Cristo.

É, portanto, impossível para a autoridade católica – a autoridade de Cristo – prescrever para toda a Igreja Católica, doutrinas, disciplinas, missas ou sacramentos errôneos ou fautores da morte; tal é a posição católica. Como as reformas do Vaticano II são falsas e causam a morte, é impossível para elas virem da autoridade católica, a autoridade de Cristo. Portanto, é impossível para Wojtyla possuir a autoridade papal que ele alega possuir. Ele não representa a Igreja Católica. As reformas do Vaticano II não vêm da Igreja Católica.

A conclusão prática da posição católica é evidente: não pode haver compromisso com os hereges do Vaticano e das chancelarias episcopais. É dever da Igreja denunciar os modernistas e impostores que afirmam ter autoridade católica e incitar os católicos a não darem crédito a eles, recusando-lhes o nome de católicos. Esta denúncia de sua falsa autoridade é essencial para a indefectibilidade da Igreja, uma vez que a Igreja seria defeituosa se aceitasse como católicas as doutrinas, disciplinas e liturgias não-católicas emanadas pelo Vaticano II, por Montini e Wojtyla.

A Fraternidade São Pedro, filha de Monsenhor Lefebvre

Os efeitos desastrosos da diplomacia de Monsenhor Lefebvre e da falsa eclesiologia em que se baseia são vistos na Fraternidade São Pedro e na Missa de Indulto. A única razão pela qual temos um e outro é que Monsenhor Lefebvre pediu por eles e trabalhou muito para obtê-los.

A ideia de uma congregação religiosa trabalhando dentro das estruturas diocesanas do Novus Ordo, preservando a missa e a teologia tradicional, foi, desde o início, o sonho de Monsenhor Lefebvre. Esse sonho foi realizado quando o Protocolo foi colocado diante dele para assiná-lo. Ele finalmente obteve o que, por tanto tempo e graças a uma diplomacia qualificada, projetou e buscou alcançar. E, se se pode dizer que sem Monsenhor Lefebvre não teríamos nenhum sacerdote tradicionalista, podemos igualmente dizer que sem Monsenhor Lefebvre não teríamos a Fraternidade São Pedro ou a Missa de Indulto. Acredito que, com o tempo, a Fraternidade São Pedro e a Missa de Indulto suplantarão a Fraternidade São Pio X. É uma questão de bom senso: se Wotjyla é o Papa e o Vaticano II um verdadeiro concílio católico, como podemos logicamente resistir quando ele nos oferece um nicho de tradição? Como podemos logicamente dizer que suas doutrinas estão erradas ou sua liturgia é fautora de morte? Obviamente, nós não podemos. Com a Fraternidade São Pedro, “você pode ter o seu bolo e comê-lo”, ou seja, você pode ter a Tradição e Wojtyla ao mesmo tempo. Se você estiver com a Fraternidade São Pio X, continuará com o constante e lacerante problema da autoridade. A “autoridade de Cristo” excomungou a Fraternidade São Pio X. O que ela pode apresentar como uma solução para este problema, se não que “a autoridade de Cristo está errada”?

Notamos também a queda da juventude corajosa da Igreja, no significativo número de deserções da Fraternidade São Pio X. Cada vez que alguns padres deixam este grupo, voltam-se sempre para a esquerda, isto é, sempre mais perto do Novus Ordo através da Fraternidade São Pedro ou da Missa de Indulto. Eles nunca deixam o Novus Ordo. Eis um fato que diz muito sobre o treinamento que recebem em seminários lefebvristas.

Padre John Rizzo é um exemplo disso. Ele foi um dos meus seminaristas em Ridgefield. Era muito duro na época em suas posições teológicas e não queria ter nada a ver com o Novus Ordo. Neste momento, lemos que ele foi aceito em uma diocese do Novus Ordo e que trabalha com os modernistas. O que aconteceu? Apenas dez anos de lefebvrismo. Durante esses dez anos, ele aprendeu que a difícil posição dos “nove padres maus” era cismática, já que eles não reconheciam o papa. Bem, parabéns para vocês da Fraternidade São Pio X por terem tido um bom seminarista e terem-no arruinado, pois este não fez mais do que tirar a conclusão lógica de suas posições teológicas! Se não abandonarem suas posições inconsistentes e perigosas, verão que o fiasco de padre Rizzo se multiplicará em grande escala.

Nenhuma base lógica para o apostolado

Por reconhecer há tanto tempo a posse plena da autoridade papal de Wojtyla, a Fraternidade não oferece nenhuma base lógica para justificar seu apostolado.

Quando um sacerdote exerce o apostolado em tempos normais, não pode praticar nenhuma atividade sacerdotal sem ser autorizado pela autoridade competente, isto é, o bispo da diocese. É essa autorização que torna a missa do sacerdote e seus sacramentos católicos; isto é, administrados por um agente da Igreja Católica devidamente autorizado. É esse defeito de autorização que faz da missa ortodoxa grega uma missa não-católica: embora validamente ordenada e mesmo que diga uma missa válida, o sacerdote não atua em nome da Igreja Católica, mas contra ela.

Quando o sacerdote tradicionalista exerce sua função, quando diz a missa e administra os sacramentos sem a permissão do bispo do lugar, ele deve justificar de uma forma ou de outra o fato de fazê-lo sem autorização. A única justificativa possível que poderia ser apresentada é a seguinte: “a Igreja quer que eu faça”. Nenhuma autoridade autorizou-o a dizer a missa e distribuir os sacramentos, então ele deve ter um argumento coerente e convincente para dizer que a Igreja-Cristo em última instância, quer que ele faça isso.

Mas se o padre tradicionalista diz que a autoridade é exercida por Wojtyla ou pelo bispo local, como pode ele então dizer que a Igreja quer que ele exerça um apostolado não-autorizado? Se a autoridade de Cristo repousa no bispo do lugar, como pode a autoridade de Cristo querer que o sacerdote tradicionalista aja contra o bispo local? Se a autoridade de Cristo reside em Wojtyla, como pode Cristo desejar que um grupo de sacerdotes exerça um apostolado desprezando Wojtyla?

Cristo está contra Cristo?

Vamos ver o outro lado da moeda? Se a autoridade de Cristo não reside em Wijtyla, como então Cristo ou a Igreja autorizariam o apostolado daqueles que afirmam com insistência que o herético Wojtvla é verdadeiramente o Papa? Como pode Cristo ou a Igreja desejar o apostolado de sacerdotes que tentam levar os fiéis ao rebanho de falsos pastores, pastores hereges, sacerdotes que denunciam como cismáticos aqueles que não reconhecem os falsos pastores?

Tudo isso para dizer que não é possível separar a autoridade da Igreja da autoridade de Cristo, não menos do que separar a autoridade da Igreja da própria Igreja. São uma única e mesma coisa. Portanto, não se pode pretender representar a Igreja Católica agindo contra sua autoridade. Tampouco se pode fingir representar a Igreja Católica se uma autoridade falsa é reconhecida. Onde Pedro está, está a Igreja. Se o seu apostolado não é o de Pedro, o seu apostolado não é o da Igreja, nem o de Cristo. Reconhecer como Pedro a quem você condena o apostolado significa condenar de acordo com a sua própria boca o seu próprio apostolado.

Esse fato de reconhecer a autoridade do Papa, por um lado, mas “agir por conta própria”, por outro, tem sido um sinal revelador de numerosos hereges e cismáticos. Foi a atitude dos jansenistas e galicanos, assim como a dos veterocatólicos. E foi condenada pelo Papa Pio IX:

“Do que adianta proclamar em voz alta o dogma do primado de Pedro e seus sucessores? Qual é a serventia de repetir a profissão de fé na Igreja Católica e de obediência à Sé Apostólica, se as ações desmentem as palavras? Ademais, o fato de a obediência ser reconhecida como um dever não torna a rebelião ainda mais inexcusável? E ainda, acaso a autoridade da Santa Sé não se estende à aprovação de medidas que Nós fomos obrigados a tomar, ou acaso é suficiente estar em comunhão de fé com a Sé Apostólica, sem acrescentar a submissão da obediência? Não é isto algo que não pode ser sustentado sem dano à Fé Católica? … Na verdade, veneráveis ​​irmãos e queridos filhos, trata-se de reconhecer a autoridade (desta Sé) também sobre suas igrejas, e não apenas no que diz respeito à Fé, mas igualmente no que diz respeito à disciplina. Quem o nega é um herege; quem, mesmo reconhecendo-o, teimosamente se obstina, é anátema” (Quæ in patriarchatu, 1 de setembro de 1876, ao clero e aos fiéis do rito caldeu).

“E não podemos passar em silêncio a audácia daqueles que, não suportando a sã doutrina, fingem que: ‘Quanto aos juízos e decretos da Sé Apostólica, cujo objeto toca claramente ao bem geral da Igreja, seus direitos e sua disciplina, é possível, a partir do momento em que não concernem aos dogmas relacionados à Fé e aos costumes, recusar-lhes o assentimento e a obediência sem pecado, e sem deixar em nada de professar o catolicismo;” (Quanta Cura, 8 de dezembro de 1864).

A posição da Fraternidade não é, portanto, uma posição católica. Que praticamente todos os jovens da Igreja, os bravos de Israel, tenha uma cabeça cheia de princípios não-católicos em sua luta contra o modernismo, eis aí um tremendo desastre. Isso significa que não há uma voz verdadeiramente católica de resistência ao modernismo senão alguns padres espalhados pelo mundo que denunciam os modernistas como privados de autoridade. Esse é o Gelboé da Igreja.

Uma falsa noção da Igreja

O problema fundamental da Fraternidade e de seus membros é que eles trabalham a partir de uma falsa noção da Igreja. Eles olham para a eleição de Wojtyla por um colégio de cardeais do Novus Ordo, e disso concluem que trata-se de um legítimo pontífice.

E como a dificuldade de estar em comunhão com um herege não lhes escapa, eles dizem que João Paulo II está à frente de duas igrejas: uma, a igreja conciliar; e outra, a Igreja Católica. Às vezes fala e age como chefe da igreja conciliar; outras, como chefe da Igreja Católica.

Como saber o que vem de um ou de outro? Por meio de Monsenhor Lefebvre, que recebeu de Deus a missão de pesar os feitos e palavras desses papas modernistas, e nos dizer em que acreditar, o que fazer e o que pensar. Agora que o Monsenhor morreu, essa autoridade é do Superior Geral.

A partir desse princípio, deve-se tirar a conclusão lógica de que a infalibilidade e indefectibilidade da Igreja Católica, o depósito da Fé, a salvação de todos os fiéis, estão nas mãos do Superior Geral. A Igreja Católica, a Fé Católica, a validade dos Sacramentos, o que devemos crer para nos salvar, tudo foi confiado ao juízo do Superior Geral.

Poder-se-ia comparar esse tipo de eclesiologia, ou teologia da Igreja, aos “diferentes timbres” das linhas telefônicas. Para a chegada de um fax, você tem um timbre; para um telefonema, outro. Assim, por analogia, se Wojtyla disser algo católico, você receberá da Fraternidade um certo som de toque; se disser algo modernista, você receberá outro som da Fraternidade.

É desnecessário dizer que tal sistema não é apenas absurdo, mas também reduz a infalibilidade da Igreja Católica a zero. Em um sistema desse tipo, o papa não é mais a autoridade, mas o Superior Geral da Fraternidade São Pio X.

Seu sistema é falho, no sentido de que eles não entendem que é a possessão da autoridade papal que faz do papa o papa. Esta autoridade, garantida pelo Espírito Santo em questões de doutrina, moral, liturgia e disciplina geral, não pode prescrever para a Igreja falsas doutrinas ou más leis que os fiéis precisam rejeitar, que devem necessariamente resistir. Mas, em geral, o movimento tradicionalista postula a rejeição sistemática da doutrina, moral, liturgia e disciplina geral do Novus Ordo, a ponto de desenvolver um apostolado em oposição ao do “papa” e dos bispos das dioceses. Age assim porque sabe, com razão, que a doutrina, a moral, a liturgia e a disciplina geral do Novus Ordo são condenadas pelos ensinamentos anteriores da Igreja Católica Romana. Mas então, se é necessário resistir à sua doutrina, moral, liturgia e disciplina geral, é necessário concluir que esses “papas” não detêm verdadeiramente a autoridade papal, que eles não são, por conseqüência, verdadeiros papas. E isso independentemente do procedimento eleitoral que os tenha designado para o cargo. Como a eleição não faz mais do que designá-los para receber o poder, ela não lhes comunica o poder por si só. O poder deriva de Cristo; É por essa mesma razão que nossa submissão ao papa é uma submissão a Cristo.

No entanto, considerar que os “papas” do Novus Ordo são verdadeiros papas – o que a Fraternidade pensa – é identificar a Igreja Católica com eles, porque onde está Pedro, está a Igreja. Mas identificar a Igreja Católica com eles estabelece uma espécie de atração gravitacional, exercida sobre os membros da Fraternidade, sobre João Paulo II e sua religião. De qualquer forma, de um modo ou de outro, a Fraternidade deve retornar ao colo de Wojtyla. Esta atração gravitacional para o Novus Ordo considerado como a Igreja, é responsável pelo liberalismo dos sacerdotes da Fraternidade, e as inúmeras deserções em favor do Novus Ordo ou da Fraternidade São Pedro.

Essa noção de duas igrejas, uma católica, outra conciliar, não está de acordo com a realidade. A realidade é que Wojtyla foi escolhido para ser um papa católico, e que ele afirma ser o papa católico. Ele não finge ser o chefe da Igreja Católica. A realidade é que ele tenta flanquear as estruturas da Igreja Católica com uma nova religião, o modernismo. Pelo próprio fato de tentar substituir a Fé Católica por uma nova religião, é impossível que ela possua a autoridade papal que afirma ter, ou parece ter, ou lhe foi designada para ter. Por quê? Porque a natureza da autoridade é levar a comunidade para seus próprios fins. E sendo um dos fins essenciais da Igreja Católica a manutenção da Fé católica, qualquer um que tente colocar um obstáculo para esse fim não pode ser mantido pela autoridade da Igreja Católica, que é a autoridade de Cristo. Consequentemente, é impossível que os papas do Vaticano II sejam verdadeiros, já que desejam para as estruturas da Igreja Católica um fim essencialmente desordenado.

A Fraternidade olha apenas para as estruturas externas da Igreja, enfatiza a continuidade que estas apresentam entre os períodos pré e pós-conciliar, a partir da qual conclui que o Novus Ordo é a Igreja Católica. O clero modernista está de fato em posse das estruturas católicas, mas isso não significa que elas representem a Igreja Católica.

Assim, a Fraternidade é presa de uma atração pela hierarquia modernista na posse de nossos edifícios católicos. Essa atração fatal é devastadora, porque faz de seu combate uma batalha pelo reconhecimento dos modernistas. Esta “legitimidade” que os modernistas podem conceder não tem nada de legitimidade, é apenas uma aparência, e à custa da pureza da Fé católica. No entanto, a Fraternidade é ofuscada, hipnotizada por essa vã esperança de “legitimidade”, um pouco como um cachorro perdido numa estrada que, deslumbrado, pára com o olhar fixo nas luzes de um carro que vem em sua direção, encontrando assim um fim trágico. Diante dessa tentativa iníqua dos modernistas de implementar seu plano, que consiste em preencher suas igrejas católicas com suas abominações, o dever mais solene dos católicos é denunciá-los como falsas autoridades, e então assumir uma posição católica que preserve a infalibilidade e a indefectibilidade, uma posição que se recusa a identificar a Igreja Católica com uma falsa hierarquia investida de uma falsa autoridade.

O futuro do movimento tradicionalista

Goste-se ou não, o futuro do movimento tradicionalista está largamente ligado ao da Fraternidade São Pio X, ou pelo menos aos seus atuais membros. Nestes tempos de crise da Igreja, são eles que têm as vocações sacerdotais, como tal, são os bravos de Israel.

Como um míssil lançado fora de seu caminho por má pontaria, essas vocações, sacerdotes e seminaristas, estão avançando rapidamente na direção de uma reconciliação com os inimigos da Igreja. Nada poderia agradar mais aos modernistas e ao diabo. Quase toda a energia, toda a força da fé católica, concentrou-se em um exército que não luta.

Assim, é inevitável que muitos membros da Fraternidade acabem se entregando ao Novus Ordo, de uma forma ou de outra. É provável que a Fraternidade conclua um acordo com o Novus Ordo, que obtenha “reconhecimento” nos termos considerados por ela mais aceitáveis ​​que os do acordo com a Fraternidade São Pedro, e que assim será absorvida pela religião modernista. Na minha opinião, tal acordo causaria a deserção de cerca de 20% de seus adeptos atuais, que sairiam e se reagrupariam, mas apenas para reiniciar o mesmo processo. Estes retomarão a tocha do lefebvrismo, uma teologia absurda da Igreja, um pé em cada uma das duas religiões, a católica e a modernista, continuando a filtragem de documentos e decretos do Vaticano. E, inevitavelmente, esse grupo de 20%, devido a tensões e contradições, dividir-se-á novamente.

O verdadeiro futuro do movimento tradicionalista, que é também o futuro da resposta católica ao inimigo modernista, está em uma posição católica acerca da autoridade papal e da natureza da Igreja Católica. É por isso que considero da mais urgente e suprema necessidade que nós, sacerdotes e leigos que não queremos compromissos com o inimigo, trabalhemos juntos no estabelecimento de seminários católicos. E não é menos importante que os jovens de nossas “paróquias” renunciem às múltiplas atrações do mundo e se ofereçam à Igreja para o santo sacerdócio.

Se não cumprirmos este dever de formar padres católicos, adequada e corretamente preparados, teremos falhado perante Deus em não termos protegido nosso bem mais precioso: nossa Fé católica. E esse tesouro sagrado que nos foi transmitido com zelo pelos nossos antepassados, às vezes a preço de seu próprio sangue, terá sido, por nossa negligência, jogado como migalhas aos cães modernistas.

Não podemos evitar o dever de formar padres católicos que, no nosso tempo, pensem corretamente, saibam quem é o inimigo da Igreja, saibam onde ele está e desejem combatê-lo com zelo e santo fervor, em vez de assinar um compromisso com ele. Se deixarmos de cumprir esse dever, receberemos o que merecemos: essas capelas e escolas que nos preservaram com tanto cuidado e esforço do modernismo serão levadas para as mãos dos sacerdotes – mesmo se forem validamente ordenados – que traíram a pureza da fé católica, fazendo-se reconhecer pelos hereges modernistas.

Apelo à Fraternidade São Pio X

Vocês têm quase toda a valorosa juventude da Igreja em suas tropas. Em seus seminários, eles foram treinados para pensar que a coexistência com a hierarquia modernista é a solução para os problemas da Igreja. Por isso, deram origem à Missa de Indulto, à Fraternidade São Pedro e a outras organizações do mesmo gênero.

Vocês continuam dialogando com os hereges, esforçando-se para serem absorvidos por eles. Vocês denunciam como cismáticos todos os sacerdotes que declaram que os hereges não têm autoridade sobre os católicos. Vocês os perseguiram, expulsaram, caluniaram e os reduziram em muitos casos à pobreza e à miséria.

Mesmo hoje, sua organização geme sob as tensões das contradições inerentes à sua posição e aloja dentro de seus muros “liberais” e “conservadores”, que são definidos de acordo com o preço que pagam pelo compromisso com os hereges modernistas, considerados por eles a verdadeira autoridade da Igreja Católica Romana.

Desistam, de uma vez por todas, do seu desejo de coexistência com os hereges. Declarem guerra de uma vez por todas àqueles que destruíram nossa Fé e os denunciem como hereges. Adotem a posição católica que acredita que não podem ter recebido de Cristo a missão de liderar a Igreja aqueles que impõem à Igreja uma fé diferente. A primeira missão da Igreja Católica, antes de tudo, é testemunhar a verdade. Nosso Senhor disse: “Para isso nasci e para isso vim ao mundo, para dar testemunho da verdade”. Se o Vaticano II não é a verdade, e vocês sabem que não é, quem o ensina à Igreja como verdade não pode ter recebido de Cristo a missão de ensinar a verdade.

Parem de apoderar-se da juventude da Igreja que vem até vocês para ser instruída, e de fazê-la apóstola de uma teologia impossível que a leva a abraçar o Novus Ordo.

Deixem de ser o Gelboé da Igreja em sua luta contra os filisteus.

Fraternitas, Fraternitas, convertere ad Dominum Deum tuum.