João XXIII: Precursor e Padroeiro da Teologia da Libertação

Tudo começou com a nomeação do então Pe. Radini-Tedeschi para a modesta diocese de Bérgamo. Este sacerdote era capelão da Opera dei Congressi (1870-1904), uma associação leiga que, nos primeiros anos do século XX, começava a pender para o socialismo. A nova tendência, introduzida na forma de democracia cristã, levou a sua supressão pelo Papa São Pio X. O capelão, porém, foi mandado para Bérgamo e na posição de bispo começou a disseminar pela diocese essas visões heterodoxas. Foi lá que ele tomou o jovem seminarista Angelo Roncalli, futuro João XXIII, como seu secretário. As visões modernistas e socialistas da dupla logo se manifestaram, entrando na mira do Santo Ofício. Essa história foi narrada em detalhe pelo Dr. Thomas Cahill (currículo abaixo) em sua biografia de João XXIII:

Na foto: Dom Giacomo Radini-Tedeschi (1857-1914)

“Radini-Tedeschi tomou posse da igreja-catedral a 9 de abril de 1905, e em breve começou o que Angelo chamaria de “seus inumeráveis projetos” de modernização… Ele apoiou os trabalhadores grevistas e fez uma contribuição bem pública e substancial ao fundo da greve, ultrajando os conservadores. Sua primeira carta pastoral tomou por tema a Ação Católica que, escreveu o bispo, “deve ser particularmente ativa onde quer que a justiça ou a caridade sejam mais obviamente negligenciadas… Ela deve harmonizar a autoridade com a liberdade, encontrar sua unidade na cooperação de todos os homens pelo bem comum e na confiança mútua entre todos os homens e classes sociais.” No contexto da Itália Católica, isso estava tão perto do limite de discordância com o Vaticano que um bispo ousava chegar.

Radini-Tedeschi pagou o preço pela sua independência. Sua diocese foi repetidamente alvo de “visitas apostólicas”, amplas investigações na diocese por inquisitivos legados papais, feitas sem aviso prévio (as quais Radini-Tedeschi rotulou “vexações apostólicas”). Ele se viu cercado por informantes que sempre estavam enviando notícias da última “heterodoxia” ao Vaticano. “Gradualmente”, Angelo sabia, “ele passou a suspeitar que com o Papa ele já não desfrutava da estima dos anos passados, e assim temia que ele desse mais crédito aos relatos dos informantes do que ao seu próprio referente ao verdadeiro estado da diocese.”

Mas Angelo estava entusiasmado. Ele particularmente admirou o apoio sonoro e financeiro de seu bispo à Liga dos Operários, o sindicato que em 1909 paralisou a imensa fábrica têxtil Ramica, nas redondezas de Bérgamo. “As esmolas do bispo”, reclamou Perseveranza, jornal local de direita, “é uma consagração da greve, uma benção dada a uma causa francamente socialista.” Angelo contestou eloquentemente com um artigo no jornal diocesano, La Vita Diocesana: “O sacerdote que vive à luz da doutrina do Evangelho não deve passar pelo outro lado da rua.” Esta é uma alusão à poderosíssima parábola de Jesus, em que um herege samaritano [sic] realiza a tarefa “cristã” essencial de ajudar alguém em necessidade – nesse caso, um homem que os ladrões deixaram à beira da morte – enquanto sujeitos da religião oficial “passaram pelo outro lado da rua.” Um bispo tem ‘um dever de caridade perante os fracos que [estão] sofrendo para o triunfo de justiça.” Dizer que “um bispo não deveria abraçar a causa dos oprimidos” seria ignorar que nos Evangelhos “a preferência de Cristo é pelo deserdado, fraco e oprimido.” Eis aqui Angelo já na primeira década do novo século antecipando  o conceito principal dos teólogos da libertação da América Latina dos anos 1970s, e mesmo advogando aquilo que se tornaria o seu termo central, ‘a preferência pelos pobres.’

O artigo foi grampeado, por quem não sabemos ao certo, e enviado ao Cardeal Gaetano De Lai da toda-poderosa Congregação Consistorial, o departamento do Vaticano que monitora os seminários, nomeações e (quando necessário) deposições de bispos. Ele irá permanecer no crescente arquivo intitulado ‘Roncalli’, próximo do arquivo intitulado ‘Radini-Tedeschi.’ Ali João XXIII o encontrará quando, logo depois de sua ascensão e muito para a consternação da Curia, ele exigiria ver o arquivo ‘Roncalli’.

(CAHILL, Thomas. Pope John XXIII. New York: Penguin, 2002, p. 94-95.)

Na foto: Dom Radini-Tedeschi com Angelo Roncalli (seta vermelha) e outros.

Infelizmente para todos nós, este episódio da vida de João XXIII não foi somente um erro da juventude que passou. Como diria o embaixador Burckhardt, cinco décadas depois, ele seguiu sendo “um deísta e um racionalista, com a melhor tendência para se colocar a serviço da justiça social.” (BURCKARDT, 1970 apud Testemunho do embaixador Carl J. Burckardt sobre João XXIII)

Sem dúvida, a influência exercida por Radini-Tedeschi sobre João XXIII foi notável e duradoura. Também vale dizer que nessa história  o discípulo superou o mestre. De fato, Roncalli ainda seria grande apoiador dos Padres Operários, publicaria a comunística Pacem in Terris e seria o protagonista do vergonhoso Pacto de Metz. Ele tornou-se assim muito mais ousado que o velho bispo de Bérgamo.

Por fim, a relação entre Roncalli e o seu mentor nos ensina aquela lição que os neoconservadores não desejam aprender, a saber, que um Gutiérrez ou um Boff, um Hélder Câmara ou um Sergio Méndez, não surgem do nada. Eles precisam antes ser formados na escola do democrata-cristão Roncalli, na mesmíssima escola que eles, por sinal, engano ou respeito humano, encontram-se atualmente. O próprio Roncalli precisou passar pela escola dos subversivos Radini-Tedeschi, Ernesto Buonaiuti, Marc Sangnier, Louis Duchesne et caterva. para cair na habitual infidelidade modernista. O processo pode até ser lento e gradual, mas se você conserva o erro e continua seguindo falsos mestres, acabará caindo no mesmo abismo, se é que já não caiu.

Como bem se vê pelo estilo da narrativa, o autor do livro citado é ele mesmo um modernista e admirador de João XXIII. A seguinte notícia biográfica foi retirada de seu website oficial:

Thomas Cahill nasceu em Nova York, filho de pais irlandeses, foi educado por jesuítas e estudou grego e latim. Ele continuou seus estudos de literatura grega e latina, bem como filosofia medieval, escritura e teologia, na Fordham University, onde completou tanto o curso de literatura clássica e filosofia quanto recebeu um grau pontifical em filosofia. Ele passou a completar seu M.F.A. em cinema e literatura dramática na Universidade de Columbia. Ele estudou escrituras no Union Theological Seminary, em Nova York, e também passou dois anos como professor visitante no Seminário Teológico Judaico da América, onde estudou hebraico e a Bíblia hebraica, preparando-se para escrever Os Dons dos Judeus. Ele também lê francês, italiano e alemão. Em 1999, foi premiado com um doutorado honorário da Alfred University, em Nova York.

Thomas Cahill lecionou no Queens College, na Fordham University e na Seton Hall University, serviu como correspondente norte-americano de educação do Times de Londres e foi durante muitos anos um colaborador regular do Los Angeles Times Book Review. Antes de se aposentar para escrever em período integral, ele foi Diretor de Publicação Religiosa na Doubleday por seis anos. Cahill discursou no Congresso dos EUA sobre as raízes judaico-cristãs da responsabilidade moral na política americana. Ele e sua esposa, Susan, autora do Jardim Secreto de Paris: Um Guia para os Parques, Praças e Florestas da Cidade da Luz, fundaram a agora lendária Cahill & Company, cujo catálogo de leitores era muito apreciado em casas literárias de todo o país. Eles dividem seu tempo entre Nova York, Roma e Paris.

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