Pacem in Terris e abertura à esquerda: como a Teologia da Libertação nasceu da pena de João

Na foto: João XXIII (Angelo Roncalli).

O filomarxismo e a associação com este não se limitou à sua versão democrática, i.e. à social-democracia, senão que se estendeu ao bolchevismo. Na encíclica Pacem in Terris, João XXIII fez uma inusitada distinção para justificar a aliança com os marxistas, que se levou a cabo com seu beneplácito:

“Cumpre não identificar falsas idéias filosóficas sobre a natureza, a origem e o fim do universo e do homem com movimentos históricos de finalidade econômica, social, cultural ou política, embora tais movimentos encontrem nessas idéias filosóficas a sua origem e inspiração. A doutrina, uma vez formulada, é aquilo que é, mas um movimento, mergulhado como está em situações históricas em contínuo devir, não pode deixar de lhes sofrer o influxo e, portanto, é suscetível de alterações profundas. De resto, quem ousará negar que nesses movimentos, na medida em que concordam com as normas da reta razão e interpretam as justas aspirações humanas, não possa haver elementos positivos dignos de aprovação?

Pode, por conseguinte, acontecer que encontros de ordem prática, considerados até agora inúteis para ambos os lados, sejam hoje ou possam vir a ser amanhã, verdadeiramente frutuosos. Decidir se já chegou tal momento ou não, e estabelecer em que modos e graus se hão de conjugar esforços na demanda de objetivos econômicos, sociais, culturais, políticos, que se revelem desejáveis e úteis para o bem comum, são problemas que só pode resolver a virtude da prudência, moderadora de todas as virtudes que regem a vida individual e social. No que se refere aos católicos, compete tal decisão, em primeiro lugar, aos que revestem cargos de responsabilidade nos setores específicos da convivência em que tais problemas ocorrem, sempre, contudo, de acordo com os princípios do direito natural, com a doutrina social da Igreja e as diretrizes da autoridade eclesiástica.” (26) Ou seja, que uma coisa é a doutrina marxista e outra a atuação dos partidos marxistas, de tal modo que o suposto partido católico, a democracia cristã, pode aliar-se com ele quando considera oportuno. O respeito à doutrina social da Igreja é retórico, posto que, como já disse, a hierarquia pós-conciliar lhe abandonou. Enquanto às diretivas da dita autoridade não haverá problema porque é ela que insta a tal aliança, e deixa a decisão nas mãos dos dirigentes daquela. Por conseguinte, Roncalli “se opôs firmemente a que a Igreja de Itália tomasse posição oficial contra a apertura a sinistra“. (27) É chamativo que esse tosco argumento, utilizado também por outras tendências pós-conciliares, não seja aplicado ao fascismo, ao nacional-socialismo e aos restantes movimentos nacionalistas.

 A dita encíclica se aparta por completo do ensinamento tradicional da Igreja e, entre outros conceitos, suplanta a Paz Cristã por um pacifismo democrático e filomarxista. (28) João XXIII encarregou a sua redação ao sacerdote Pietro Pavan, professor da Universidade Pontifícia de Latrão, antifascista e demo-cristão, com o qual estava relacionado desde há tempo. (29) Havia escrito Democrazia e crestianesimo (1952), título igual ao de Murri, onde expunha as teorias maritaineanas. (30) Para guardar as formas, Roncalli fez algumas consultas a respeito da encíclica, p. ex., a George Jarlot SJ, catedrático de sociologia da Universidade Gregoriana, “não ocultava que muitos e ele o primeiro, se haviam sentido maravilhados, senão mais bem estupefatos, ante a linguagem da encíclica: ‘Não era acaso o problema mais urgente a ameaça comunista contra o Ocidente e a civilização cristã?”. (31) Os comunistas, como é de imaginar, receberam o documento com grande alvoroço: “Na União Soviética a Trass difundia um amplo resumo da encíclica. Frases da Pacem in Terris adornavam as caminhonetes da propaganda eleitoral do partido comunista italiano, que circulavam pelas ruas de Roma.” (32)

Há pouco de iniciar-se o concílio, Roncalli já havia declarado que “temos algo mais importante que fazer que lançar pedras contra o comunismo” (33). E acerca da URSS e EUA em relação à paz mundial, na primeira entrevista de novembro de 1962 disse a Pavan: “Eu não posso supor má fé em nenhuma das partes” (34). Tudo isso explica como os soviéticos lhe concederam o prêmio da Fundação Balzan da paz (35).

“Devo sublinhar com particular amargura de meu espírito a constatação da pertinácia observada em alguns por sustentar a todo custoa chamada abertura a esquerda contra a clara decisão tomada pela hierarquia da Igreja, transparentes nas augustas manifestações verbais e escritas do Santo Padre; evidentíssima na mensagem natalícia do episcopado trivêneto, e em sucessivas comunicações repetidas de viva voz, sob a forma de amável persuasão, em público e em privado.

Deixemos que Roncalli refute Roncalli:”Certas palavras que anunciam a distensão como o remédio dos males presentes não são, em realidade, mais que um invento para adormecer as consciências e trazer-nos a confusão e a ruína (36)” No entanto, vemos que fez logo uma defesa ante o Santo Ofício de Wladimiro Dorigo, dirigente demo-cristão que propunha em seu jornal a colaboração que ele acabava de condenar. Ante a reação do Tribunal, o patriarca se viu obrigado a simular ortodoxia. Em vista das eleições municipais emitiu uma Mensagem de 6-V-1956, que já conhece o leitor, donde ratificou a proibição de que os católicos votassem nos comunistas e seus aliados socialistas, assinalando que “a preocupação permanente de quem cuida dos interesses religiosos e sociais do povo cristão é estar com o evangelho ou contra o mesmo, segundo direções definidas e seguras” (37). A 12-VIII-1956, Roncalli tornou pública uma carta onde rechaça de maneira contundente a aliança com o marxismo, que propunha na encíclica. Convém recordá-la:

“Me é doloroso assinalar também que, neste ponto, pelo que se refere aos católicos, nos encontramos ante um erro doutrinal gravíssimo; e há uma flagrante violação da disciplina católica. O erro consiste em tomar praticamente partido e associar-se com uma ideologia, a marxista, que é negação do cristianismo e cujas aplicações não podem estar de acordo com os pressupostos do Evangelho de Cristo.

“Não nos venha dizer que este caminhar para a esquerda tem um simples significado de mais sinceras e mais amplas reformas de natureza econômica; posto que também neste sentido o equívoco segue, a dizer: o perigo de que penetre nas consciências o especioso axioma de que, para realizar a justiça social, para socorrer aos pobres de toda a categoria, para impor o respeito às leis tributárias, é necessário absolutamente associar-se com os negadores de Deus e os opressores das liberdades humans e dobrar-se a seus caprichos. O que é falso nas premissas e tristemente funesto nas aplicações.

“A violação da disciplina consiste em ir direta e explicitamente contra a Igreja viva e operante, como se carecesse de autoridade e competência nesta grave matéria, para por-se em guarda contra aproximações e compromissos que se julgam perigosos.

“Ou estamos com a Igreja, e seguimos suas normas e merecemos o nome de católicos. Ou preferimos obrar por conta própria, promover e favorecer divisões e secessões, e devemos então assumir a responsabilidade conseguinte: o nome de católica já não nos pertence” (38).  

26 – Juan XXIII, Pacem in Terris, IV, Relaciones entre católicos y no católicos en el campo económico-social-político pp. 50-51.

27 – Zizola, ob. cit., p. 159; v. it. pp. 278-286.

28 – O pacifismo parte da ideia errada da paz perpétua, negada pela história e pela natureza humana. Por outra parte, a paz não se alcança pela utopia do desarmamento senão pelo justo ordenamento entre os Estados, como ocorreu durante a Cristandade, onde não existiram guerras universais e os conflitos, ainda que sangrentos, eram em realidade “querelas de família”. O pacifismo, que desarma as consciências e debilita o caráter, é um instrumento útil do comunismo. É o complemento do antimilitarismo, que ensinam os comunistas para abater seus inimigos, mas logo, no poder, formam um exército maior do que o deles e desenvolvem uma política belicista, certamente em nome da paz e contra os agressores dos povos. O antimilitarismo não se achava ausente no seminarista Roncalli, que logo que cumpriu o serviço militar (X/1901-X/1902) escreveu em seu Giornale dell’anima: “O exército é uma fonte desde onde aflui a podridão para inundar a cidade” (v. João XXIII, Diario del alma y otros escritos piadosos, pp. 154-155, Madrid, 1964, apud Zizola, ob. cit., p. 45).

29 – Zizola, ob. cit., p. 28.

30 – Ib.

31 – Ib., p. 39.

32 – Ib., pp. 159-160.

 33 – Estas palavras de João XXIII foram recolhidas por Henri Fesquet (v. Zizola, ob. cit., p. 39).

34 – P. Pavan, Intrevista sulla “Pacem in Terris”, CORRIERE DELLA SERA, 11-IV-1963, apud Zizola, ob. cit., p. 29.

35 – Zizola, ob. cit., p. 147 et passim.

36 – Cardeal Roncalli, Notificação de 14-XII-1955, em id., Scritti e Discorsi, vol. II (1955-1956), p. 265, Roma, 1959, apud Zizola, ob. cit., p. 289. Recorda-se que a por causa da “admoestação de Pio XII”, o então patriarca de Veneza redigiu esse documento para condenar o que depois seria chamado de apertura a sinistra (v. cap. 32, A, § 4).

37 – Ib., p. 296.

38 – Ib. pp. 296-297.

RIVANERA CARLÉS, Federico. La judaización del cristianismo y la ruina de la civilización. 3 vol. Buenos Aires: Instituto de Historia S. S. Paulo IV, 2008, pp. 87-90.

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